Gosto muito de ouvir e de contar histórias de automóveis. Elas trazem boas e más lembranças, mas sempre mexem com nossas emoções automobilísticas. Um verdadeiro deleite! Eu, ao longo de minha vida profissional como jornalista fiz quase todo tipo de reportagem que você, leitor, possa imaginar. Nos anos 70, já fazia testes no dinamômetro de rolo para avaliar a potência que chegava as rodas dos carros daquela época e até mesmo avaliações aerodinâmicas feitas com auxílio de pequenos pedaços de lã que eram fixados em toda a carroceria do automóvel, que depois de fotografado em vários ângulos, davam uma noção da performance do ar ao redor da carroceria do veículo. Junte-se a esses, testes de desempenho, velocidade, consumo, frenagem, estabilidade e aderência e por aí vai.
Claro que existiam também os testes de componentes, como amortecedores, pneus, componentes de freios e outros. Tudo isso e por longos anos me deram habilidades ao volante e a sensibilidade de andar em um carro, sentindo e ouvindo tudo o que nele funcionava bem ou mal. Nos 10 anos que trabalhei na revista Quatro Rodas, boa parte deles além de todos os testes anteriormente escritos, devido ao meu bom conhecimento de carros e de suas mecânicas, era responsável também pela frota dos carros de longa duração. Esses carros eram comprados pela Editora Abril nas concessionárias, como um cliente comum. Claro que nós da redação escolhíamos antecipadamente qual o modelo e a cor do carro que deveria ser adquirido. Essa escolha considerava primordialmente o interesse do leitor ou mesmo uma novidade técnica que surgisse no mercado.
Em 1992 a Volkswagen lançou no Santana, o primeiro carro nacional que poderia opcionalmente ser adquirido com ABS no sistema de freios. Produzido pela Bosch o auxiliar do sistema de freio melhorava a eficiência de frenagem do carro. Por isso, nós da Quatro Rodas, optamos por comprar um Santana GLS equipado com todos os opcionais oferecidos no modelo, inclusive o ABS, alvo de nossa avaliação. O carro que chegou para nós, na época, era lindo: o Santana havia acabado de passar por uma bela reestilização, e o modelo comprado pela Editora Abril possuía bancos Recaro, ar-condicionado, direção assistida hidráulica, rodas de liga leve BBS, entre outros equipamentos, e era pintado em um atraente e diferente branco perolizado. No motor e no câmbio, um powertrain semelhante ao do Gol GTi alimentado por uma injeção eletrônica Bosch analógica, o que de mais moderno tínhamos no mercado. Um show!
O carro passou a fazer parte da frota da Quatro Rodas e rodar ininterruptamente até que completasse a sua prova de 60 mil km, que foi cumprido depois de um ano e quatro meses. Com o término dos testes, ele foi desmontado para que seus componentes mecânicos fossem minuciosamente examinados e avaliados. Um trabalho de chinês. Assim foi feito e a reportagem foi exibida nas páginas da revista em agosto de 1993. Tanto o sistema eletrônico ABS dos freios, quanto a injeção eletrônica LE-Jetronic e o sistema de ignição mapeada EZK, produzidos pela Bosch, funcionaram de maneira exemplar durante todo o teste, indicando que o caminho de modernização do carro brasileiro seguia de maneira correta. Teste terminado, o carro foi remontado e vendido pela Editora Abril ao mercado de carros usados e o Santana GLS seguiu o seu caminho.
Nesse ponto crucial surge um anjo no caminho do velho e bom Santana GLS 1992: Jeison Paim, leitor da Quatro Rodas desde que tinha sete anos de idade, revendo uma revista antiga que falava do sedã VW, conseguiu descobrir o número da placa do carro e de posse dessa placa ficou por três anos pesquisando sobre o carro que ele leu a respeito com atenção quando ainda era criança. Depois de tanta pesquisa ele, que mora na cidade de Farroupilha, região das serras gaúchas, descobriu o valente Santana na cidade de Sananduva, perto da fronteira do Brasil com o Uruguai. Para completar um pouco mais da dificuldade, o Santanão vivia na área rural da cidade, bem afastado do centro. Mas Jeison não se deu por vencido e como já havia saído de Farroupilha e havia viajado 250 quilômetros até Sananduva, foi de fazenda em fazenda da região, perguntando sobre o carro. Bingo! Ele achou o carro em um sítio e o seu proprietário era o Sr. Solismar. Jeison fez uma proposta de compra para o carro que foi imediatamente aceita pelo Sr. Solismar.
Inacreditável! Aquele Santana GLS que Jeison tanto namorou nas páginas da revista, agora era seu. Meio capenga e sentindo o peso de seus 26 anos de vida dura, primeiro com os duros testes da revista Quatro Rodas e pelos cerca de 20 anos que rodou por estradas de terra e sítios no Rio Grande do Sul, a vida desse valente sedã não foi fácil. Mas o carro estava, de uma maneira geral, em bom estado de conservação. Por isso, Jeison tomou uma decisão dura: restaurar o Santana integralmente e deixá-lo exatamente igual quando a revista Quatro Rodas o comprou 0-km na concessionária Davox. E assim foi feito. Levado a Farroupilha, nossa heroico Santana parecia agradecer ao seu salvador Jeison, da mesma forma que faria um cachorro encontrado abandonado nas ruas ao seu salvador.
Jeison desmontou o Santana todo, repintou sua carroceria original branco perolizado, antes consertando todas as trincas e fadigas oriundas dos longos 26 anos de vida dura. Os sistemas de injeção e ignição foram totalmente restaurados e até mesmo a adaptação à nossa gasolina atual oficialmente com 27,5% de álcool anidro foi considerado. Todos os componentes externos do motor como correias, mangueiras e conectores foram substituídos por novos. O ar-condicionado, que já havia sido inutilizado, foi recuperado. O câmbio foi aberto e refeito e todas as peças desgastadas substituídas. O mesmo foi feito com todos os componentes dos sistemas de suspensão, tanto a dianteira quanto a traseira. O ABS, que já havia sido inutilizado, foi recuperado e hoje funciona esplendidamente bem. Rodas, pneus, tudo novo e tinindo.
No interior, a tapeçaria foi totalmente restaurada. Carpete e laterais de porta, tudo original do carro de 1992. E,olha que sorte, os bancos haviam sido forrados com courvin e por baixo dessa capa foi preservada a forração original dos bancos, que estavam em bom estado de conservação. O sistema de som original não existia mais, mas Jeison buscou e achou exatamente o rádio/toca-fita cassete original daquele Santana. Agora, seis meses depois do início da epopeia, o Santana GLS está pronto, exatamente igual de quando foi comprado novo. O patinho que já havia ficado feio, transformou-se em um lindo cisne branco! E o seu grande salvador, Jeison, transformou-se em seu herói. E agora? Jeison vai vender essa joia rara e, quem sabe, nosso Indiana Jones vai buscar novas aventuras em um outro carro a ser salvo e restaurado.
DM
A coluna “Perfume de carro” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.