Até a sisuda, e até ali séria e tradicional revista inglesa Autocar, do alto de sua autoridade de primeira revista sobre automóveis ainda em circulação (established 1895), e altamente pró-Inglaterra, pôde resistir. No seu primeiro teste do Alfasud, publicado na edição da semana de 20 de setembro de 1973, disse em sua conclusão:
“…é um carro familiar rápido e prático que oferece excelente economia de combustível, muito espaço interno, um incrível padrão de refinamento mecânico, um rodar fácil e silencioso aliados à uma estabilidade e dirigibilidade das quais nunca experimentamos antes em um carro de sua classe. Esperamos sinceramente que os outros fabricantes rapidamente comprem um Alfasud e com ele aprendam algumas lições sobre como fazer carros corretamente. ”
E a Autocar não estava sozinha, claro. Se você estudar uma coletânea de testes de época, garanto que não chegará ao meio sem desistir. Como sei isso? Porque eu mesmo não consegui, mesmo tentando por força de missão profissional. E não por outro motivo senão o fato de que todo mundo concorda, e cada texto parece uma repetição do que acabamos de ler. Todo mundo só tem um milhão de coisas boas a dizer sobre o carrinho.
Incrível. Ao ler esses testes e impressões ao volante, não importando por quem ou onde a resenha foi escrita, tem-se a distinta impressão que um certo dia o céu se abriu, e cavalgando um raio de sol através das nuvens, com uma auréola dourada pairando acima dele como num anjo, desceu a terra o Alfasud, uma dádiva divina para a humanidade. Parece uma sucessão apaixonada de odes apaixonadas por um carrinho italiano muito apaixonante mesmo..
E acima de tudo inesperado: O Alfasud deveria ser apenas mais um carro pequeno moderno, popular e barato, para as massas, mas se revelou, desde seu lançamento, como algo muito maior que isso. Um objeto de adoração e amor, algo totalmente inusitado para coisas deste tipo. Um clássico imortal, e uma prova de que não importam os ingredientes nem o preço do prato, mas a habilidade de quem o prepara. Um verdadeiro Alfa Romeo, embalado e vendido a preço e tamanho de Fiat.
E como uma banana histórica e metafísica para os que ainda não entenderam isso, é obra de autor, de um homem só. Mais uma prova de que todo carro realmente memorável é criação de uma só pessoa, e não colaborações em grupo. E feito assim traz uma personalidade única, cheia de qualidades incríveis e defeitos quase humanos, provocando assim o mais humano e terno dos sentimentos: a paixão. Mais que uma máquina, um carro assim transcende, e se torna algo maior que coisas criadas por comitês em reuniões intermináveis onde compromissos são tomados em todas as frentes até que o resultado não ofenda ninguém, polido em suas bordas furiosamente até que nenhum resquício de aspereza reste, fazendo-o inócuo e tão apaixonante quanto uma declaração de imposto de renda.
Mas ao invés de tornar a Alfa um gigante mundial sem precedentes, o carrinho foi o início de seu fim como entidade independente. Como isto foi acontecer? Como algo universalmente adorado é talvez o maior sucesso da empresa, e também o seu maior fracasso?
Esta é a história que vamos contar para você hoje, começando lá do comecinho, não na Itália, mas num trem de passageiros com destino a Ulm, na Alemanha, em 1938…
Rudolf Hruska
“Fate is like a strange, unpopular restaurant filled with odd little waiters who bring you things you never asked for and don’t always like.” – Lemony Snicket
Não há como conhecer a história de Rudolf Hruska e não se maravilhar em como a mão do destino interfere em nossas vidas, por mais que tentem nos convencer que o futuro é controlável totalmente. Nosso herói era um jovem vienense que acabara de se formar engenheiro em 1937. O jovem Rudi era um entusiasta do automóvel, mas seu primeiro emprego como engenheiro ainda não tinha muito a ver com sua vocação: projetava escadas de bombeiro móveis para a famosa Magirus em Ulm, às margens do rio Danúbio.
Hruska acompanhava maravilhado, como não poderia deixar de ser, os incríveis desenvolvimentos automobilísticos do governo de Adolf Hitler: as Autobahnen, a dominação das provas de Grand Prix pelos carros prateados da Mercedes-Benz e da Auto Union, e a promessa de um novo carro popular e estatal, capaz de levar as famílias alemãs pelas Autobahnen a 100 km/h o dia inteiro. De longe, sonhava participar mais ativamente deste novo mundo, mas sonho desses que se sonha para alimentar a cabeça apenas; era tão distante quanto a Lua para o jovem engenheiro austríaco.
Mas eis que numa viagem de trem de Stuttgart para Ulm, seu companheiro de cabine se mostra simpático, entusiasmado, falante. Se você conhece o povo alemão pode entender o quanto isso é raro, mas também será fácil de entender o porquê; o entusiasmo puro e inadulterado por tudo que acontecia consigo era impossível de se conter dentro de si sem ser partilhado. Ajudou também o fato de que ambos eram austríacos, e engenheiros formados na mesma escola. Logo engrenam numa conversa daquelas boas mesmo, longas e cheia de significado. E mal sabiam ambos ali, com incrivelmente importantes efeitos no futuro.
O companheiro de Hruska naquela cabine de trem, afinal de contas, era ninguém menos que Karl Rabe, o segundo em comando do jovem, mas extremamente influente escritório de engenharia do Professor Ferdinand Porsche. Era onde tudo acontecia naqueles anos: além de projetar os Auto Union de competição, estava projetando também o futuro Volkswagen, e a sua gigantesca fábrica em Fallersleben, um lugar deserto onde hoje está a cidade de Wolfsburg. Isto, é claro sem falar no que ali ainda era secreto: tanques de guerra, veículos de transporte, e versões militares dos VW.
O escritório de Porsche precisava desesperadamente de engenheiros dispostos a trabalhar incessantemente, independentemente do dia ou hora, para realizar tudo o que tinha para realizar sob contrato. Rabe o convida ali mesmo para se juntar ao time em Stuttgart. Rudi Hruska fica tão feliz que vai embora sem ao menos pedir demissão da Magirus, coisa que lhe daria uma série de dores de cabeças burocráticas só resolvidas mais tarde pelas conexões de Porsche na alta esfera do governo. Imediatamente é colocado para trabalhar no projeto e construção da fábrica do VW (então KdF-Wagen) e da cidade anexa, chamada então de KdF-Stadt. Dois anos depois, já no meio da guerra, é colocado no programa do tanque Tiger 70, e em outros projetos militares.
Logo ao ser contratado lhe é designado um VW protótipo para se locomover, e é com ele que roda para todo lado, inicialmente entre Stuttgart e a KdF-Stadt, mas depois, com os projetos militares, para localizações cada vez mais variadas. Como era fluente também em francês, italiano e inglês, frequentemente era enviado a Itália como elemento de ligação com projetos militares daquele aliado alemão na Segunda Guerra Mundial. Em 1943 começa a ficar mais tempo em um lugar apenas: Brescia, pertinho do magnífico lago de Garda, onde trabalhou com a fábrica de caminhões OM em um trator, cujo projeto fora contratado à Porsche.
Alfa Romeo
Enquanto isso, em Milão, a 100 km a oeste de Brescia, a marca criada por Nicola Romeo a partir dos restos da Darracq italiana, se tornava estatal em 1934, e um instrumento de Benito Mussolini para mostrar a capacidade técnica da Itália para o mundo. Vittorio Jano e Enzo Ferrari são as figuras centrais da marca. Jano, projetando carros fantásticos e avançadíssimos, com motores de duplo comando no cabeçote e compressores, que serviam tanto para competições, como para base dos mais incríveis carros esporte já vistos até então, e Ferrari com sua Scuderia, levando a marca aos pódios mundo afora.
Mas durante a segunda metade dos anos 30, progressivamente a fábrica de carros se tornava uma fábrica de motores de aviação para o esforço de guerra. A guerra, e um tempo difícil para a Itália, estavam num futuro próximo, bem sabemos. Em 1938, ano em que Hruska começava a trabalhar no projeto do VW, o presidente da Alfa, Ugo Gobatto, incorpora a Alfa Romeo Avio, divisão separada de motores aeronáuticos, e começa a construção de uma nova fábrica e aeroporto no sul do país, em Pomigliano d’Arco, um subúrbio de Nápoles bem aos pés do monte Vesúvio. Começa a operar efetivamente em 1942, fazendo motores Daimler-Benz série 600.
Durante a guerra, como vocês podem imaginar, tanto a fábrica original da Alfa em Portello (Milão) quanto a nova em Pomigliano d’Arco se tornam alvos estratégicos importantíssimos para os aliados. São bombardeadas pesadamente durante 1943, e efetivamente são transformadas em pilhas de escombros.
Preso na Itália
Como sabemos, a guerra não acaba bem para o Eixo (Alemanha, Itála e Japão). Em abril de 1945 começa a retirada das tropas alemãs da Itália, que é imediatamente ocupada pelos aliados. Hruska, ainda trabalhando na OM, ao saber do que transcorre, monta em seu VW e tenta voltar à Alemanha pelo Passo do Brennero, fronteira com a Suíça a aproximadamente 300 quilômetros de Brescia, morro acima. Se conseguisse chegar lá, o caminho para Stuttgart, via Munique, estaria livre. Chega até Merano, pertinho da fronteira, mas é parado pelo exército americano, e impedido de cruzar a fronteira. Graças à sua habilidade de falar inglês também, consegue convencer os americanos que era apenas um engenheiro alemão trabalhando na Itália, e que nada tinha a ver com o esforço de guerra. Não é preso, mas seu carro é confiscado, e é aconselhado a não sair de Merano por um tempo.
Meses se passam nesta situação, sem ele saber o que fazer. Com as notícias da Alemanha sendo invadida, percebe que a guerra acabaria logo, e resolve esperar. E é aí que recebe a visita de ninguém menos que Tazio Nuvolari. O piloto contata Hruska a mando de Piero Dusio, da Cisitalia de Turim. Então é Hruska que negocia o primeiro contrato pós-guerra do escritório de engenharia de Ferdinand Porsche. É um contrato hoje famoso: Cisitalia receberia o projeto de um avançadíssimo carro de Fórmula 1 com motor central, praticamente uma evolução dos Auto Union pré-guerra, e a Porsche receberia o dinheiro necessário para a fiança do Professor, então preso na França acusado de crimes de guerra.
Hruska, que acaba ficando na Itália, se descontarmos as visitas constantes ao escritório temporário da Porsche em Gmund, Áustria, para supervisionar o projeto da Cisitalia, e, se possível, conseguir outros; torna-se efetivamente o representante da Porsche na Itália. Um dos contratos que consegue é a suspensão independente do Siata 208 S, além de vários outros projetos pequenos, executados por Hruska sem auxílio do escritório central da Porsche.
Em 1951, Rudi Hruska se apaixona e pede a mão de Lidia Bongiovanni, uma linda e inteligente esquiadora que conhece em férias nos alpes. Lidia era também, ora vejam só, secretária pessoal do Dr. Giuseppe Luraghi, o chefão do IRI, poderosíssimo instituto do governo italiano para a reconstrução da indústria, entidade que controlava, entre um milhão de outras coisas, a Alfa Romeo.
Alfa no pós-guerra
O pós-guerra começa de maneira trágica para a Alfa: o presidente Ugo Gobatto é assassinado a tiros perto da fábrica, ao comprar um jornal em uma banca. Ao que tudo indica, os assassinos trabalhavam na Alfa, e eram conhecidos de Gobatto, pois testemunhas o viram sorrir e caminhar em direção do carro antes de ser surpreendido por uma rajada de metralhadora.
Mas dos escombros de Portello nascia no pós-guerra uma nova Alfa Romeo. Não mais militar e aeronáutica, o foco seriam agora os automóveis. Mas não os supercarros esporte do pré-guerra também; a empresa agora faria carros produzidos em grande escala, para uma parcela muito maior da população. Sua anterior posição na ordem natural das coisas, a de fazer superesportivos baseados em carros de competição, caríssimos e feitos à mão em baixíssimos volumes, foi efetivamente tomada por um antigo parceiro que conhecia muito bem este tipo de coisa: Enzo Ferrari.
Mas é claro que os engenheiros da Alfa, acostumados à alta tecnologia e alto desempenho, mesmo ao fazer carros para o povo, não poderiam fazer qualquer coisa. Seu primeiro carro pós-guerra era o sofisticado 1900, um carro emblemático do que seria a marca nos anos seguintes: um sedã produzido em série com alma puro-sangue, motor de duplo comando, e alta tecnologia.
O grande problema que enfrentava ao início de 1952, porém, é que nunca até ali tinha produzido automóveis em grande série. Antes da guerra, um ano com 500 carros produzidos fora um ano incrivelmente bom. Ainda patinava para produzir 20 carros por dia, quando o número ideal, pelos cálculos de Luraghi, era pelo menos 10 vezes maior. Alguém com experiência em produção em massa de carros sofisticados tecnicamente era necessário para fazer isso. Luraghi, é claro, conhecia uma pessoa que batia perfeitamente com esta descrição: o noivo austríaco de sua secretária, Rudolf Hruska. De novo, o cara certo no lugar certo na hora certa.
Hruska, treinado criando a imensa fábrica da VW em Fallersleben, logo mergulhou no trabalho para resolver isso. Com pulso de ferro, e com o apoio de Luraghi, comandou uma limpeza total da antiga fábrica, e uma renovação completa. Logo, il Portello deixava de ser um lugar onde artesãos criavam alguns poucos carros fantásticos à mão e se tornava uma fábrica de verdade, automatizada, moderna, com linhas de montagem, e uma capacidade de produzir até 250 carros por dia.
Hruska também cuidava de perto do produto, supervisionando a criação de clássicos como Giulia, Giulietta e os Spiders, sendo operacionalmente o chefe da empresa, visto que o cargo de presidente da estatal era político e não técnico. Mas em 1956 Luraghi deixa o INI por brigas políticas, provocando uma série de eventos que acaba por tirar Hruska da Alfa quatro anos depois, em 1960.
Imediatamente é contratado pela Fiat, que o coloca como o executivo encarregado da ligação com a Simca francesa de Enrico Pigozzi, associada então com o gigante turinense. O poliglota e simpático Hruska se dá muito bem na função, até que em 1964 Pigozzi vem a falecer e a Fiat vende a Simca para a Chrysler. Hruska volta para Turim, e é encarregado de todos os Fiat esportivos. Obviamente adora o cargo, onde é, por exemplo, instrumental na criação do clássico Fiat Dino.
Mas enquanto ainda estava na Simca, na ponte aérea Paris-Turim, seu padrinho Luraghi voltara à Alfa Romeo, como presidente. Na segunda metade dos anos 60, não obstante o imenso sucesso da Alfa, e seu prestígio internacional, Luraghi resolve que deve expandir. Somente com um volume de vendas dez vezes superior ao então corrente, acreditava, poderia criar um futuro sólido para a empresa. A Alfa dos anos 60 era invejada por todos: uma empresa de carros eminentemente esportivos, de alma latina e interessante, a preços médios. Fossem sedãs, cupês, peruas ou carros esporte, os Alfa eram sempre tecnologicamente avançadíssimos, belos, com um delicioso viés esportivo, e extremamente competentes. Quase exatamente a posição que nos anos 80 e 90 foi ocupada pela BMW.
Mas vários projetos de carros mais baratos dentro da Alfa, e a recente experiência de produzir Renault Dauphines sob licença mostravam que, para aumentar o volume significativamente, carros mais baratos e totalmente diferentes do que faziam até ali, eram necessários. Um Giulietta ainda menor e menos sofisticada, fabricada em Portello, nunca chegaria no preço de venda necessário.
A Alfa Romeo do sul
Então, em 1967 Rudolf Hruska volta à Alfa Romeo e Luraghi o coloca como chefe do projeto mais importante já pensado para o tradicional fabricante de Milão: o de aumentar o seu volume de produção em 10 vezes, tornando-o um rival da Fiat, e um gigante europeu. Para isso, tudo seria novo no projeto: uma nova fábrica no terreno da antiga fábrica de motores aeronáuticos em Pomigliano d’Arco, e um carro pequeno e barato, totalmente novo, sem nada em comum com os produtos de Portello. O local é escolhido também por motivos políticos: incentivar o desenvolvimento do sul da Itália, então pobre se comparado ao norte. Não esqueçamos que a Alfa Romeo ainda era uma estatal.
Hruska, então um veterano tarimbado da indústria, pede apenas uma coisa ao aceitar o cargo: liberdade absoluta. Carro e fábrica seriam entregues em quatro anos (pouquíssimo tempo, mesmo se fosse hoje), e dentro do orçamento, prometeu, mas somente se ele tivesse toda a autoridade sobre a empreitada. O sonho de um engenheiro e realizado impecavelmente.
A equipe que formou para o projeto foi invejável: da Autodelta, divisão de competição da Alfa, trouxe Domenico Chirico como gerente de projeto, e Carlo Chiti para assistir o engenheiro-chefe Aldo Mantovani. O desenho da carroceria ficaria com a Italdesign. Na verdade, como este é o primeiro projeto da empresa fundada por Giorgetto Giugiaro, muitos acreditam que foi fundada justamente para realizá-lo. Consalvo Sanesi, chefe dos pilotos de prova, faria a ligação do novo carro com a alma da empresa, garantindo que ele ainda seria um Alfa por detrás do volante, mesmo que completamente diferente mecanicamente.
E quão diferente seria? Bem, de todas as formas possíveis. Para começo de conversa, teria tração dianteira, para melhor aproveitamento do espaço, inédito em um Alfa. O motor também seria completamente novo, necessariamente menor e mais barato para atingir os objetivos de custo. Consequentemente, suspensões, direção, freio, rodas e pneus e parte elétrica também totalmente novas. Sobrariam talvez emblemas, parafusos e outros briquebraques em comum com os outros carros da marca, apenas.
Tanto o projeto quanto a fábrica ficariam conhecidos como Alfa Sud, literalmente Alfa Sul, e como consequência, Portello passaria a ser Alfa Nord.
O Alfasud
O carro, como sabemos, saiu absolutamente fantástico. Numa era de grandes carros pequenos (Fiat 128/127/147, Citroën GS, VW Golf MkI), o Alfasud se destacou claramente, tecnicamente superior a todos eles, por uma década depois de seu lançamento.
Foi lançado inicialmente em 1972 somente como um fastback de 4 portas. A traseira parece hatch, mas há uma tampa de porta-malas que não sobe até o vidro, por motivos estruturais. O carro ganharia uma tampa hatchback somente em 1981, e ganharia 25 kg no processo. Baixo peso, alta rigidez torcional e baixo coeficiente de arrasto aerodinâmico completavam o desenho moderno da carroceria monobloco. O motor era de 4 cilindros horizontais opostos, longitudinal, ficava atrás de uma parede de fogo dupla, o que com certeza ajudou a isolar suas vibrações, ruído e calor do habitáculo.
O motor em si era diferente dos contrapostos europeus de até então: enquanto VW, Porsche e Citroën usavam 4 cilindros arrefecidos a ar nesta configuração, o Alfasud era arrefecido a água. O bloco era diferente do normal também, não dividido ao meio no centro do virabrequim como a maioria dos boxers. O Alfasud tinha apenas uma janela desmontável abaixo do virabrequim, que continha a parte de baixo dos seus mancais, fazendo um conjunto equivalente a tampa de cárter integrada às capas dos mancais em um motor em linha comum.
O bloco era em ferro fundido, estranho para a Alfa, marca com vasta tradição em blocos de alumínio. Mas Hruska o fez por facilidade e rapidez de produção, estabilidade dimensional, e baixo nível de ruído. Some-se o material e o fato de que não era dividido ao meio, e se tem um dos mais rígidos e robustos blocos de motor boxer já criados. Mas era também pequeno e leve: feito para cilindradas de até 1,6 litro apenas.
Os cabeçotes eram em alumínio, e estes sim divididos em dois: o cabeçote em si e a gaiola superior, que incorporava o comando (um por cabeçote) e seus mancais. Era desenhado para baixa manutenção, e o ajuste de válvulas podia ser realizado por cima, pela abertura do capô, sem que fosse necessário tirar o motor do carro. Os comandos eram acionados por correia dentada, e o desenho da câmara, de novo estranho para os Alfa Romeo sempre hemisféricas, era do tipo cabeçote plano com válvulas alinhadas sob o comando, acionadas diretamente por tuchos-copo, e fazendo a câmara de combustão efetivamente alojada no bloco, acima do pistão.
O cabeçote dividido em dois, o desenho do trem de válvulas e do cabeçote em si, acaba por permitir cabeçotes totalmente simétricos, e, portanto, a mesma peça podia ser montada dos dois lados do motor. A gaiola do comando, claro, eram duas peças diferentes, uma esquerda outra direita.
Atrás do motor, uma capa de volante desmontável incorporava todos os elementos auxiliares e seus acionamentos: Bomba de óleo, filtro de óleo, distribuidor e bomba de combustível. Era acoplado a um transeixo com o diferencial encostado ao motor, e as 4 (depois 5) marchas sincronizadas, depois dele. A carcaça do transeixo tinha uma extensão que ia até debaixo do habitáculo, para que a alavanca de câmbio saísse diretamente dele, mantendo as dimensões constantes dos acionadores e por consequência, uma troca mais precisamente desenhada.
O motor, apesar de totalmente diferente de qualquer motor Alfa até então, incrivelmente tinha todo o brio, a facilidade de giro e a personalidade esportiva da marca de Milão. Era pequeno, leve, baixo, extremamente refinado em seu funcionamento. Uma verdadeira joia em miniatura.
O motor duraria bem mais que o carro em si: inicialmente com cilindrada de apenas 1,186 cm³ (80 x 59 mm, superquadrado), um carburador de corpo único, e 68 cv a 6.000 rpm, teve progressivamente a cilindrada e a potência aumentadas. O mais potente Alfasud tinha cilindrada de 1 490 cm³ (84 x 7 mm) e dois carburadores Weber duplos, para 105 cv.
Mas ainda estaria em dois sucessores: o Alfa-Romeo 33 de 1984 usou exclusivamente boxers até seu fim em 1995. O sucessor do 33, a família 145/146, foi desenhada para usar o boxer, além dos 4 em linha Fiat (dona da Alfa desde 1987). O último boxer saiu em um 145 em 1997, quase 30 anos depois do desenho original de Hruska ser colocado em papel em 1968. Era um 1.712-cm³ (87 x 72 mm) com duplo comando de válvulas (redesenho do cabeçote em 1990, para o 33 Quadrifoglio), injeção eletrônica Bosch e 137 cv.
Mas o carrinho não era somente motor. Na verdade, era o extremo refinamento mecânico, a direção leve e precisa, e o fantástico comportamento em curvas que realmente espantava. A base disso era a carroceria rígida, mas as suspensões, apesar de simples, eram muito bem desenhadas.
Na dianteira, adotaram-se freios internos, inboard, fixados nas semi-árvores perto do transeixo, e não na roda como hoje é universal. Desta forma reduzia-se a massa não suspensa, e fazia-se a direção mais leve e mais precisa, graças também ao moderno e leve conjunto pneu-roda: rodas em aço com pneus radiais 145SR13. Como o carrinho pesava apenas 830 kg, era bastante pneu para ele. A suspensão dianteira era McPherson, e a direção, sem assistência, claro, por pinhão e cremalheira.
Na traseira, eixo rígido, mas bem leve e bem localizado: um esquema de 4 braços, com barra Panhard transversal e os dois braços superiores virados para trás. Molas helicoidais e amortecedores telescópicos fechavam o conjunto. Os freios traseiros eram a disco também, uma tradição Alfa mantida, apesar de tantas outras que foram esquecidas. Na traseira, estes discos estavam nas rodas.
Recepção e evolução
Já no lançamento, e durante toda sua vida, a imprensa colocou o carrinho num pedestal. Além de todos os números que produzia, provando a sua superioridade técnica, havia mais nele, algo que era impossível de medir objetivamente, mas que todos sentiam ao dirigir. Era um carro divertidíssimo, uma alma latina e nervosa, mas com um refinamento nunca antes visto. O som do motor era baixo, entusiasmante mais refinado, a vibração naturalmente baixa, a suspensão absorvia os impactos sem barulho ou aspereza, e mesmo assim mantinha a compostura em curvas como nenhum outro carro.
Por isso, a única crítica no início era falta de potência, marca de um carro que tem mais chassis que motor. Mas logo isso mudaria, embora alta potência nunca tenha sido a característica mais marcante do Alfasud. Mas é claro que isso não importa. O carrinho é universalmente adorado, de uma forma clara e inequívoca. Talvez, numa história de vários modelos apaixonantes, o pequeno e barato Alfasud tenha sido o mais apaixonante Alfa de todos.
Logo, percebendo a paixão que gerava, a Alfa lança as versões mais esportivas: em 1974 aparece o Alfasud ti, com duas portas, faróis duplos redondos, cinco marchas e carburador de corpo duplo. Em 1975 aparece a perua de 3 portas, chamada Giardinera (infelizmente o infinitamente melhor nome usado nas peruas Giulia, Promiscua, foi abandonado aqui). A versão hatchback chega finalmente em 1981.
Em 1976, uma versão ainda mais esportiva era lançada: o Alfasud Sprint. Era um magnífico cupê hatchback desenhado de novo por Giugiaro obviamente na mesma época que o VW Passat e Polo originais. O Sprint é um dos mais fantásticos trabalhos de Giugiaro, emblemático desta época em que ele foi extremamente influente, e um cupê quase perfeito. O GTV da linha Alfasud.
Obviamente era a escolha do entusiasta, e recebia sempre as mecânicas mais quentes da linha, sempre compartilhados com o Alfasud ti: 1,2 ti inicialmente, depois 1,3 e 1,5 em 1978, ainda com apenas um carburador duplo. Em 1979, aparecia finalmente a versão Veloce, que significava dois carburadores duplos, configuração ideal para os boxer. O 1,3 Veloce entregava 85 cv e o 1,5, 95 cv. O Sprint viveria mais que o Alfasud; em 1984 mudava o nome para apenas Alfa Romeo Sprint, sem o Alfasud, e passaria a usar os motores do substituto dele, o 33. Em 1987, receberia o maior dos boxer, o 1,7 Veloce, com dois carburadores (mas ainda 8 válvulas e comando único) e 118 cv, um verdadeiro foguetinho capaz de mais de 200 km/h. Foi produzido até 1989, em alguns mercados com injeção Bosch e catalisador.
Mas, o que deu errado então?
Quando o projeto Alfasud foi anunciado, a Fiat não gostou nadinha da história. O dinheiro estatal, afinal de contas, estava sendo usado para criar um gigante que competiria diretamente com ela. E não esqueçamos que Hruska, e uma série de engenheiros indicados por ele, saíram da Fiat para fazer o seu novo concorrente. Mas a culpa era um pouco da própria Fiat; que com o 130 e o Dino tinha quebrado o velho acordo de cavalheiros entre as empresas e atacado diretamente o mercado da Alfa Romeo. Provavelmente a Fiat nunca imaginava que a Alfa reagiria com algo tão grandioso.
E era realmente grandioso: o volume de produção projetado para Pomigliano d’Arco era dez vezes maior.que o de Portello. Mas a Alfa Romeo em 1968, ano do início do projeto, era uma empresa que não errava. Seus carros eram universalmente invejados pela indústria, carros familiares de preço médio, mas esportividade, desempenho e tecnologia comparável aos puros-sangues caríssimos. Não tinha a péssima fama de confiabilidade de hoje; eram carros universalmente adorados pela qualidade. Uma posição na ordem mundial de coisas que foi tomada pela BMW nos anos 80. Com um carro avançado como o Alfasud seria, o sucesso estava garantido, certamente acreditavam.
Mas estamos falando da Itália, e em uma época turbulenta politicamente. Primeiro, havia a questão do aço de baixa qualidade. Certamente por causa de pressões política do governo socialista italiano de então, e um preço baixo para azeitar o negócio, o fornecimento de aço para o Alfasud viria do leste europeu, então atrás da cortina de ferro da URSS, e era reconhecidamente de qualidade inferior.
Depois, os problemas trabalhistas. Os sindicatos não se importavam que a fábrica devia levar trabalho a uma região subdesenvolvida. Mais de 700 greves estouraram na fábrica durante a produção do Alfasud. Uma força de trabalho sem experiência, desmotivada e ideologicamente desconfiada montava os carros de forma indiferente. A vezes até chegando a algo que podia se chamar de sabotagem.
As carrocerias sem pintura, durante as greves, ficavam no tempo, descobertas, corroendo e acabavam sendo pintadas por cima. O que já era ruim sem ajuda, recebia um belo empurrão. Carros começavam a corroer quase que imediatamente. E as tragédias não acabavam aí; os engenheiros desenvolveram espumas expansíveis para preencher as cavidades, melhorando teoricamente a proteção. Mas o tiro saiu pela culatra e a espuma segurava a água, piorando a situação.
Não se conseguia chegar nem perto do volume de produção projetado, no início, por quase dois anos, devido a greves e inexperiência da força de trabalho. E quando o volume máximo era possível, a má fama já era onipresente no mercado, segurando a demanda. Nunca chegou aos 1.000 carros/dia projetados.
Não foi um fracasso total, claro. De 1974 até 1982 uma média de 100 mil carros foram vendidos por ano, num total (1972-1983) de um milhão de Alfasuds. Mas se lembrarmos de que o volume planejado era de 300 mil carros/ano, vemos que o projeto na verdade nunca gerou lucro, e certamente contribuiu significativamente para a decadência financeira e de qualidade da Alfa Romeo nos anos 80, que culminou com a sua venda para a Fiat em 1987.
Sucesso e fracasso
Mas o mais impressionante desta história é mesmo a série de eventos do acaso que levaram Rudolf Hruska a criar sua obra-prima, o Alfasud. A história toda é de uma simetria, e com uma interferência tão clara do acaso, que não falha a nos impressionar. Ele mesmo disse, em retrospectiva:
“A coisa mais bonita da minha carreira foi ter a possibilidade, há exatamente 30 anos de distância, de fazer pelo governo italiano exatamente o mesmo trabalho que meu professor, Porsche, fez para o governo alemão.”
Mas foi uma pena realmente que um carrinho tão bem projetado e agradável, e vindo de uma empresa amada por todo entusiasta como a Alfa Romeo, tenha fracassado assim, e com ele carregado a empresa junto. Já imaginaram o que poderia ter acontecido sem os problemas de produção? Poderíamos ter uma Alfa Romeo hoje tão respeitada quanto uma BMW ou Audi.
Mas divago; o fato é que, na esteira do que aconteceu com o Alfasud, a Alfa se encontrou em má posição financeira, o que afetou a qualidade de todos os seus carros. Em 1987, é comprada pela Fiat, e apesar do esforço fenomenal da empresa de Turim em melhorar as coisas, a Alfa continuou na mesma toada: carros muito bons, muitas vezes sensacionais, mas pouco confiáveis. Uma fama que é difícil de esquecer, agora em 2018.
E nunca mais teremos um carro como o Alfasud. Nunca mais uma empresa de sucesso no mercado premium vai se lançar numa empreitada para fazer um carro realmente barato, mas tecnicamente tão bom quanto seus tradicionais produtos. Nunca teremos também um carro barato tão sofisticado, feito do zero, com tudo novo e diferente.Um carro barato tão bom quanto um puro-sangue? Muito difícil. Mas ainda há esperança. Achava que nossa sanha por airbags, ABS, por vidros elétricos e direções assistidas acabariam de vez com algo tão simples, leve e adorável quanto um carrinho para cinco pessoas de apenas 830 kg, como era o Alfasud. Mas aí veio o Renault Kwid e me provou errado. Mas em termos de sofisticação mecânica, o vazio permanece. Nunca mais teremos tanto por tão pouco quanto na época do sensacional Alfa Romeo Alfasud
MAO
Fotos: Alfa Romeo, salvo explicitamente indicado
Para saber mais (fontes):
The Alfa Romeo Tradition – Griffith Borgerson – 1990
Alfa Romeo Alfasud (1972-1984) – Brooklands Books (coletânea de testes de época)
The Alfasud flat four engine – SAE paper #740031 – Chirico & Bossaglia – 1974