Enzo Ferrari era uma pessoa de difícil trato, italiano teimoso e decidido. E, obviamente, não arredava a mão de seus interesses. Sua origem é bem conhecida, veio do mundo do automobilismo onde se criou e fez nome com a Alfa Romeo e sua Scuderia Ferrari. A vida de Enzo era a competição, e seus carros de rua eram meros meios de arrecadar dinheiro para sua equipe de corrida.
O sucesso da Ferrari na Fórmula 1 é mais do que respeitado hoje em dia, com tempos de glória no começo da categoria em 1950, mas também passou por momentos difíceis. Em meados dos anos 80, na era dos carros turbo, a Ferrari estava sofrendo com o desempenho de seus carros.
Todas as novas tecnologia que a F-1 vinha agregando no começo dos anos ’80 mudou radicalmente a forma de se projetar o carro de corrida, especialmente quando a Renault provou ao mundo em 1977 que o turbocompressor poderia ser usado na categoria com sucesso. A Ferrari só veio a abandonar os motores aspirados e adotar os turbos em 1981, quando trocou o 12-cilindros boxer pelo V-6 a 120º turbo de 1,5 litro.
Esta troca não foi fácil, pois o novo carro chamado 126CK que foi desenhado para receber o motor turbo tinha problemas de dirigibilidade. O 126 foi projetado por Mauro Forghieri, o projetista da família 312 e do 158 com o qual John Surtees foi campeão em 1964, e Harvey Postlethwaite, criador dos carros da Hesketh, Wolf, Wolf-Williams e também do Copersucar F8.
As constantes mudanças nos carros, necessárias para acompanhar a evolução dos rivais, custavam muito dinheiro. Quando a Ferrari finalmente acertou a mão no 126CK em 1982, a organização da F-1, liderada por Bernie Ecclestone e o presidente da FISA (Fédération Internationale du Sport Automobile, o então braço desportivo da FIA), Jean-Marie Balestre, já vinha com novidades e as equipes também criavam coisas novas, como os grandes avanços em aerodinâmica e o caro-asa. Além disso, as disputas políticas na F-1 estavam causando grande incerteza em todos, ainda mais quando já se falava em limitar os motores e a potência.
Como o próprio Ferrari dizia, a aerodinâmica era para que não sabia fazer motores, e o motor Ferrari turbo era o que fazia o carro andar. Os melhores desempenhos da equipe eram em pistas de alta velocidade, onde o motor falava mais alto que o chassi, e assim a Ferrari se sustentava, com um bom motor e o talento de Gilles Villeneuve, Didier Pironi e René Arnoux.
Enzo não queria mais esses entraves, e sabendo que a presença da Ferrari era muito importante para a F-1, usou desta força para tentar mudar as coisas. Como dito, a venda de carros de rua era o ganha-pão da marca para bancar as corridas, e um grande mercado consumidor era o Estados Unidos. Se ele conseguisse fortalecer as vendas na América, poderia levantar mais verba para seguir desenvolvendo seus carros de F-1.
Na época, a Fórmula Indy estava crescendo em popularidade e público, sendo em algumas ocasiões, mais vista que a própria F-1 pelos americanos. Migrar da F-1 para a Indy era uma questão estratégica. Se Enzo colocasse um Ferrari correndo nesta categoria para mostrar que a conversa era séria e que de fato consideraria deixar a F-1, Balestre e Ecclestone poderiam, reconsiderar alguns pontos. De quebra, era a chance da Ferrari tentar a vitória em Indianápolis, uma das poucas conquistas que faltavam a Enzo.
Com a ajuda política de seus representantes norte-americanos, que tinham grande interesse em ter a Ferrari correndo nos EUA, o que poderia alavancar mais as vendas dos carros de passeio, Enzo conseguiu enviar o diretor técnico da equipe, Marco Piccinini, para falar com os diretores da CART, organização responsável pela Indycar. De quebra, com a ajuda da Goodyear, tiveram contato com a equipe Truesports de Jim Trueman, empreendedor americano e fundador da rede de hotéis Red Roof Inn.
Com a ajuda da Truesports, a Ferrari iria projetar um carro para competir na Indy e dar a cartada final nos organizadores da F-1. No final de 1985, a equipe americana enviou para a Itália um de seus carros completo, um chassi March 85C com motor Cosworth. Junto com o carro foi o então piloto da Truesport, o conhecido bigodudo Bobby Rahal.
O piloto italiano Michele Alboreto testou o March na pista de Fiorano junto com Rahal. Os testes direcionaram a equipe da Ferrari do que esperar de um carro da CART. As reações do motor turbo e o chassi deveriam conversar bem para as altas velocidades das pistas americanas, especialmente em Indianápolis. Depois dos testes, o March foi desmontado dentro da Ferrari para melhor conhecerem o projeto.
Depois de avaliar o March desmontado, a Ferrari adotou a prática do “já que vamos fazer um motor novo, faremos um carro inteiro novo”. E assim nasceu o projeto 637 em Maranello.
Inicialmente quem iria trabalhar esse desenvolvimento era o jovem Adrian Newey, engenheiro da March da época e engenheiro de pista de Rahal. Como ele havia sido o responsável pelo projeto do 85C, carro vencedor do campeonato e da Indy 500 em 1985, não haveria melhor escolha, mas acabou não acontecendo por conflitos de prioridade com seus trabalhos na March.
No lugar de Newey, o austríaco Gustav Brunner assumiu o papel de engenheiro responsável pelo projeto, liderado por Harvey Postlethwaithe. Brunner havia desenhado o carro para a equipe RAM de F-1 de 1985, que já tinha inspiração no Williams FW09 por conta de seu bico. Posteriormente ele ficaria mais conhecido pelo Ferrari F187 de 1987. Para o carro que a Ferrari iria colocar nas disputas nos Estados Unidos, Brunner projetou o carro em torno do novo motor que seria feito do zero.
O novo chassi era feito com uma composição de alumínio e fibra de carbono, estruturado para formar o cockpit e a sustentação do conjunto motor e transmissão. A carroceria foi desenhada com as aspirações de Brunner no FW09 e no March 85C, porém o resultado foi um carro mais baixo e esguio, mais vistoso do que os bojudos F-1 da época.
O motor foi criado por Angiolino Marchetti, um dos membros do time que criou o motor turbo do 126 CK. Inicialmente pensou-se em utilizar o motor do Lancia LC2 de Resistência, por conta da sua similaridade com o regulamento da Indy, que pede motor V-8 de 2,65 litros turbo. O Lancia usava o motor família 268 de 2,6-litros com dois turbos KKK com interresfriadores de ar, rodando com gasolina. No fim das contas, o motor da Lancia foi descartado e um novo motor foi criado.
Para o novo carro, o motor Ferrari Tipo 34 foi criado com a configuração V-8 a 90°, quatro válvulas por cilindro e apenas um turbo IHI sem interresfriadorr. Enquanto o Lancia tinha diâmetro e curso 80 x 64,5 mm, o motor Ferrari tinha 86 x 57 mm. Com o menor curso, o motor podia ter rotações mais elevadas (12.000 rpm versus 8.500 rpm). Para a Indy, os motores rodavam com metanol, o álcool metílico.
O sistema de admissão e escapamento do Tipo 34 eram montados invertidos do que normalmente se via, com a admissão pelas laterais do motor e os escapes pelo centro do motor, algo que hoje em dia é comum até em motores de rua como os BMW turbo. Desta forma, o arranjo no cofre era mais próximo e compacto. O Tipo 34 gerava perto dos 750 cv, enquanto que o Lancia gerava 650 cv.
No final de 1986 o carro estava pronto, e Enzo Ferrari queria enquadrar de uma vez por todas Bernie Ecclestone e Jean-Marie Balestre, tanto que para os representantes da FISA quanto na coletiva de imprensa para anunciar as mudanças da equipe de F-1 com a contratação de Gehard Berger como piloto e John Barnard como projetista e responsável técnico da equipe, ele mandou apresentarem o novo motor da Indy, funcionando fora do carro.
Com essa revelação, ficou claro para todos que o investimento feito e os rumores sobre a Ferrari entrar na CART eram verdadeiros. Seria muito abuso fazer um motor novo só para blefar, mas, sendo Enzo Ferrari o responsável pela ação, não era impossível. Na época até mesmo anunciaram a parceria da Ferrari com a Truesport para um contrato de três temporadas, com Bobby Rahal como piloto e possivelmente um segundo carro para Andrea de Cesaris.
A organização da F-1 viu de perto que Ferrari não estava blefando, e rapidamente se reuniram e voltaram a reavaliar o regulamento para as próximas temporadas, até que o acordo foi firmado no começo de 1987 liberando os motores da F-1 para o limite de 3,5 litros (3 litros antes) sem restrição de número de cilindros. Com isso, a Ferrari poderia voltar a fazer seus V-12 aspirados, desejo de Enzo.
Com a assinatura do acordo que estabeleceu, dentre outras coisas, o regulamento dos motores, conhecido como Acordo de Concórdia, Enzo Ferrari tinha alcançado seu objetivo, e acabou descartando os demais investimentos no programa 637, que nunca foi usado em nenhuma competição e não passou da fase de testes na Itália.
Este programa 637 foi guardado em segredo sem detalhes por muitos anos, especialmente porque o carro pronto nunca foi usado. Possivelmente depois que Enzo havia conseguido mudar a cabeça do pessoal da F-1 e liberado o uso dos V-12 aspirados, a força do programa já havia diminuído. Também houve a chegada de John Barnard, que foi contratado para tocar a equipe de F-1 e com certeza não iria querer perder verba da Scuderia para outro programa de corrida que não o dele.
Também tem a parte financeira, que na época era bem mais limitada do que hoje, e o desenvolvimento de um carro e motor novo não foi barato. Era bem possível que a Ferrari de fato fosse participar de provas no EUA, nem que fosse somente na 500 Milhas de Indianápolis, pois este ainda era um sonho de Enzo, e todas as tratativas feitas com a Truesport não seriam apenas um blefe contra a FISA. Entretanto, o custo não para quando o carro é finalizado. Existe ainda todo o custo de testes e melhorias necessárias para o carro ser competitivo.
Outro ponto questionável é que o 637 supostamente deveria fazer sua estreia no final de 1986 pela Truesport e Bobby Rahal, mas nesta fase, Rahal estava liderando um campeonato muito apertado contra Michael Andretti e Danny Sullivan. Acho que nenhum chefe de equipe aceitaria trocar um carro conhecidamente vencedor por um carro novo, sem histórico, no final de um campeonato liderando mas que ainda está em aberto. Provavelmente os americanos barraram a estreia do carro em 1986.
Depois do encerramento do programa, a vida do 637 não acabou. O carro foi passado para a Alfa Romeo, que também estava com intenção de ingressar no mercado americano da CART. Usado como referência do que deveria um Indycar, o 637 foi estudado e o motor tipo 034 serviu de base para o motor que a Alfa Romeo viria a construir. O carro até foi pintado de branco e recebeu um logo da Alfa no bico.
A Alfa entrou na categoria apenas como fornecedora de motores, de 1989 a 1991. O motor era também um 2,65-litros V-8 turbo, mas diferente do Ferrari, tinha os escapes laterais e não no centro do V. Foi um motor com alguns bons resultados, mas não era páreo contra os Chevrolet da época.
Hoje o 637 foi restaurado para as configurações originais e é mantido no museu da Ferrari.
MB