Com a Segunda Guerra Mundial já iniciada, Ferdinand Porsche pegou o VW39/03 para realizar testes de velocidade. Ele foi projetado por ele e seu filho Ferry para ser uma variante extremamente veloz. O carro foi equipado com o motor 1100 (1.131 cm³) bastante modificado que desenvolvia mais de 50 cv — o dobro do original – que havia sido feito para o carro Tipo 64 especialmente projetado para a corrida Berlim-Roma, uma prova de estrada de 1.300 quilômetros que incluiria trechos de alta velocidade nas Autobahnen.
Com este motor sob o capô, Ferdinand Porsche e seu filho frequentemente andavam o VW 39/03, para lá e para cá, entre a sua empresa e local de produção de veículos da época em Zuffenhausen, bairro de Stuttgart, a fábrica da Volkswagen em Fallersleben ainda em construção, e a capital Berlim. Com este motor mais potente, o veículo alcançou a excelente velocidade máxima naqueles dias de 145 km/h.
O carro nº 3 da série VW39 é bastante significativo. Ficou pronto, provavelmente, em outubro de 1939. Naquele tempo quando se falava de Fuscas (KdF’s) se falava de quantidades pequenas de veículos e alguns deles, depois de terem cumprido a sua função de propaganda, acabaram sendo canibalizados, tendo suas peças sido usadas para outros projetos e desenvolvimentos.
Por falar em canibalização, na oficina de Porsche em Zuffenhausen muitos projetos foram feitos no fim da década de 30 e no início da década de 40. Vários foram testados e alguns resultaram em produtos finalizados, caso do Kübelwagen (utilitário militar leve 4×2). Na foto abaixo, ao fundo na esquerda se podem ver três carrocerias de Fuscas apoiadas no chão, cujos chassis foram devidamente aproveitados em outros projetos — isto era necessário pela pressa e pela falta de material para pesquisa e desenvolvimento em tempos de guerra. Aliás, a empresa de Porsche era o setor de engenharia da Volkswagen e ao mesmo tempo a fábrica, de onde saíram, por exemplo, os primeiros Kübelwagens entregues às Forças Armadas alemãs.
O VW39/03, com chassi número 1-00003 e motor 38/42 (de um Tipo 64, como explicado acima) acabou herdando a placa IIIA-43028. Inicialmente esta placa foi usada em um carro com teto solar, o 38/28, que acabou sendo desmontado e, provavelmente, usado como um objeto de referência na fábrica Volkswagen em Fallersleben e na empresa Bosch (que foi mais do que um fornecedora, ela colaborou em vários desenvolvimentos para os carros projetados por Porsche).
Mais uma foto do VW39/03 antes do término da Segunda Guerra Mundial recebendo um trato em um posto de serviços:
Salvo dos escombros da Segunda Guerra Mundial
Com o encrudescer da Segunda Guerra Mundial, este carro acabou sendo guardado na filial de Berlim da Firma Porsche KG. Em 1948, durante os trabalhos de retirada de escombros deixados pela guerra em uma garagem, foi encontrado um KdF muito danificado; o motor estava faltando, mas no restante o carro estava numa condição aceitável.
Por estes tempos, em 1954, um grande concessionário Volkswagen e Porsche da cidade de Hamburgo, a firma Raffay & Co, estava procurando o mais antigo Fusca ainda existente para a sua coleção particular. Com a ajuda da central de registro de automóveis da polícia daquela época, acabou sendo localizado um Fusca com chassi 01-00003, o nosso VW39/03, que acabou sendo comprado pela Raffay & Co.
Esta é provavelmente uma das primeiras fotos do pós-guerra do “Raffay VW39”, aqui visto pintado em uma cor clara com uma lataria cheia de imperfeições; é uma foto pré-restauração. Mas o carro já era usado para fins de propaganda da concessionária.
No teto um cartaz (redigido num alemão truncado) dizendo: “Der 3.VW – von einer MILLION bin ich” — O 3o VW – eu pertenço ao (primeiro) MILHÃO (produzido). O que representa uma afirmação duvidosa, pois, se este é o terceiro da série VW39, não é de maneira alguma o terceiro VW fabricado — pois teríamos que somar os VW38 e os dois VW39 que o antecederam.
Por falar nas informações de época existentes, hoje em dia é necessário se ter cuidado e, dentro do possível, conferir cada uma delas, pois infelizmente há muita informação falsa circulando. Por exemplo, quem olhar a foto abaixo desavisadamente e ler o cartaz: “Einer der ersten aus Wolfsburg – VW Nr. 3 — Um dos primeiros de Wolfsburg – VW nº 3″ — pode vir a ser vítima de uma armadilha.
Senão vejamos: quando este carro ficou pronto a fábrica de Wolfsburg (que ainda se chamava Fábrica de Fallersleben) ainda não estava pronta. Ela só começaria a produzir o ainda KDF-Wagen em 1941, e este carro é dito ser 1939. Os primeiros carros foram produzidos na oficina de Porsche em Zuffenhausen.. Portanto, o cartaz está errado!
Cito este fato para chamar a atenção de todos para este tipo de armadilha histórica. É bem possível que aqueles que escreveram este cartaz o tenham feito inadvertidamente, pois não conheciam a história a fundo; mas isto não ilide o fato de terem feito um erro histórico que se propaga com a foto.
A esta altura parece que o carro foi submetido a outra reforma, bem mais caprichada, agora equipado com para-choques coerentes com os originais e uma aparência bem melhor. As fotos abaixo permitem uma comparação com um Fusca da época.
Reformado dentro das melhores condições disponíveis na época, o VW39/3 finalmente sossegou e foi incorporado à coleção Raffay em 1991, deixando de participar dos costumeiros eventos.
O violento incêndio que destrói uma incrível e valiosa coleção de carros
A data fatídica foi 20 de janeiro de 2011, quando por volta das 12h30 um operário que fazia reparo nas instalações da pista de karts “Kart-O-Mania” iniciou involuntariamente o incêndio.
No grande complexo atingido pelo gigantesco incêndio ficavam, ao lado das salas da expedição Carl Hahn, a pista de kart, uma empresa de revestimento por tinta em pó, uma oficina para motocicletas Harley-Davidson e uma oficina para carros antigos, a Raffay Auto Chronik GmbH, que incluía o museu.
Foram destruídos neste incêndio, além do VW39/3, vários Austro-Daimlers, um veterano Mercedes Tourer e um raríssimo híbrido Lohner-Porsche Mixte de 1901, dentre outras raridades. Perdas de valor incalculável considerando que havia peças únicas da coleção premiada do especialista em carros veteranos Gerhard von Raffay.
O resgate das cinzas
Três anos depois do incêndio, o que tinha sobrado do VW39/03 foi adquirido pelo Prototyp Museum de Hamburgo, que tinha como meta restaurá-lo. Mais do que palavras, as imagens feitas quando o Fusca foi retirado por seus novos donos, falam por si:
Um dos pontos importantes era o motor, que era especial — do Tipo 64 — número de fabricação 38/42, e que tinha sido consumido pelo incêndio. Ai um golpe de sorte ajudou a manter a originalidade deste carro: o Protoype Museum, que também é especializado em motores especiais, tinha comprado um motor idêntico — de número de fabricação 38/24 e que tinha sido usado em outro carro empregado em testes de velocidade por Porsche e seu filho. Com isto o carro, depois de restaurado, recebeu um “motor original” de novo; já que quando ele tinha sido desenterrado dos entulhos daquela garagem de Berlim ele estava sem o motor, e os Raffay certamente não tinham atentado para este item de originalidade ao colocar um motor nele pelo tempo que o carro esteve com eles.
O incrível VW39/03 renasce de suas cinzas
O Prototype Museum acabou enfrentando uma missão dificílima que foi a de restaurar o que tinha sobrado deste carro calcinado pelo fogo. Para tanto contaram com a expertise de Christian Grundmann, que, junto com seu pai, Traugott Grundmann, possuem a renomada “Coleção Grundmann”, um museu especializado em veículos Volkswagen veteranos, que também faz suas próprias restaurações, muitas delas altamente complexas.
Neste caso foram feitas várias conjecturas sobre o comportamento do material submetido à alta temperatura do incêndio, e certamente o trabalho foi mais difícil que o trabalho de uma reforma corriqueira, mas o trabalho foi feito com maestria, por exemplo a restauração da saia traseira.
Abaixo um vídeo (2:19 – 24 fotos) com alguns detalhes dos trabalhos de restauração:
O VW39/03 volta a seu esplendor original
Agora o Prototype Museum conta com mais uma importante raridade em seu acervo. Aliás, já falei de outra raridade deste museu: o “Fetzenflieger” do austríaco Otto Mathé que citei no corpo da matéria “Bisneto de Porsche reativa corridas no gelo em Zell Am See“, e acho que esta não será a última vez que falarei deste museu.
Pois é, atravessando vários desafios, o VW39/03 está preservado neste incrível museu.
Mais fotos de detalhes do VW39/3 pronto no vídeo (1:26 – 15 fotos) abaixo:
Abaixo segue um vídeo sobre o VW39/03 preparado pela Porsche, com o carro em suas condições atuais, após o incêndio e restaurado:
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Com este capítulo termino o relato relativo à série VW39 que agora deixou de ser uma ilustre desconhecida de meus leitores e leitoras aqui da coluna Falando de Fusca & Afins. Agora todos que tiverem a oportunidade de visitar museus ou participar dos encontros de VW Veteranos já saberão onde e o que olhar para curtir as raridades que estiverem diante de seus olhos. Mas, certamente, ainda voltarei a falar de Volkswagens Veteranos, pois este é um assunto muito interessante e desafiador, se bem que, como eu ressaltei, é importante digerir estas informações com muita cautela.
AG
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Em 20/04/2019 foi acrescentado o vídeo “VW 39–the last of its kind” elaborado pela Porsche. Este vídeo foi apresentado pelo leitor André Scudeller, a quem agradeço.
A coluna “Falando de Fusca & Afins” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.