Caro leitor ou leitora,
Esse texto me foi passado hoje, dia em que se completam 25 anos do trágico desaparecimento de Ayrton Senna, pelo amigo e piloto Bird Clemente, que o recebeu da filha, Beatriz, do autor, Mauro Salles ao visitá-lo hoje. Ele o escreveu no dia seguinte ao acidente fatal em Imola. Mauro Salles está com 86 anos.
Achei o texto admirável e por isso compartilho-o com você.
Bob Sharp
Editor-chefe
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“SAUDADE DE AYRTON
Por Mauro Salles*
Ele era o primeiro, na caminhada e na luta esportiva, na difícil carreira de piloto. Estava em primeiro, na pista, quando partiu. Fora o primeiro na véspera.. Chegou em primeiro na primeira volta. Lá se ia ele à frente de todos, disposto a lembrar naquela prova quem era o verdadeiro líder, o campeão.
A 300 km por hora, seu recado era simples e direto: meu lugar é na frente.
E foi assim, até naquela curva, no acidente que o levou de encontro ao muro. Depois, o corpo no asfalto, o macacão aberto, o sangue espalhado, a desesperada tentativa dos médicos no hospital. E a morte, inexorável, a interromper uma caminhada que prometia ainda mais sucessos.
Foi um choque nacional e internacional. De colegas, de jornalistas, de amigos, de outros adversários e, principalmente, do povo deste Brasil, dos humildes e dos mais afortunados, uma só voz de perplexidade e tristeza, consagrando uma unanimidade que já existis enquanto ele viveu. Estava morto o maior e melhor de todos os tempos de corrida. Do Brasil. Do mundo.
Há mais quarenta anos convivo com a Fórmula Um. Como torcedor ou redator automobilístico tive o privilégio de ver nas pistas os grandes amigos do passado: Farina, Ascari, Villoresi, Von Stuck, Fangio, Jim Clark, Stirling Moss, Jackie Stewart. Nenhum era melhor que Senna.
No Brasil, convivi com Chico Landi, Henrique Casini, Catharino Andreatta, ídolos de outros tempos. E na antiga Willys acompanhei o desabrochar de pilotos como Bird Clemente e Luiz Pereira Bueno, o Wilsinho Fittipaldi, o José Carlos Pace e o Émerson Fittipaldi.
Émerson, grande campeão, abriu espaço para toda uma geração de magníficas estrelas nacionais e continua dando lições na Fórmula Indy. O Nélson Piquet, a quem tanto admiro, alegrou os brasileiros nas suas muitas vitórias e na forma como se tornou campeão. Um e outro estão na história do automobilismo mundial.
São ídolos, mas não são mitos. No entanto, Ayrton já era um mito, vivo. E não sem razão.
Dentro e fora das pistas era intolerante com a mediocridade. Buscava ultrapassar adversários e, no percurso, deixava o recado de quem está sempre à procura do ótimo, dando o máximo de sua dedicação e de sua competência.
De outro lado, não se deixava dominar por vaidades e orgulhos estéreis. Sabia que era vulnerável e, por isso, admitia publicamente seus erros e falhas, sem aceitar a posição de semideus das pistas que jornalistas entusiasmados e um público apaixonado lhe queriam atribuir.Mais de uma vez lhe ouvi dizer: “O erro foi meu”, ou “perdi a concentração e por isso bati”; ou ainda “subestimei o adversário e retardei demais a freada”; ou “fui eu que forcei demais, ultrapassei o meu limite”. Nada de culpar a máquina ou de acusar os mecânicos.
O Brasil se alegrava com suas vitórias e lhe aplaudia nos confrontos mais recentes com Nigel Mansell e Alain Prost, dois grandes campeões, quando Senna se impôs a ambos, mostrando de fato quem era o melhor.
Dignidade e postura foram suas marcas. Era seu, também, um permanente inconformismo diante das agressões que sofreu na pista. Revelava ali uma enorme capacidade de indignação, quando desconhecia conveniências financeiras e profissionais só para dizer o que realmente pensava.
Senna não fazia concessões sobre princípios. Não cortejava políticos nem jornalistas, nem donos de empresas. Não pedia favores. Mesmo ameaçado de interromper a carreira, recusou-se, certa vez, a assinar um contrato que lhe parecia inaceitável. Preferia parar a ceder e por isso passou meses sendo contratado corrida a corrida, um campeão tratado como principiante.
Dedicado e fiel à sua família e a seus amigos, e preservando sua privacidade, ele nos legou, ainda, uma profunda afirmação de fé, de crença em Deus, em frases singelas e firmes com que sempre se colocava diante de um grande mistério.
Senna nos deixou. Fica a sua saudade. E, dentro e fora das pistas, a sua grande lição de vida.
Mauro Salles
(Jornalista e publicitário, foi corredor de automóveis e presidiu a CBA – Confederação Brasileira de Automobilismo)
02/05/94”
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Mauro Salles é pernambucano de Recife, nascido agosto de 1932. É jornalista e publicitário. Foi editor do caderno de Veículos do jornal O Globo e lembro-me bem dele lá no começo de 1960. Uma de suas frases mais famosas foi “As portas agora abrem no bom sentido”, referindo-se à mudança de sentido de abertura das portas do sedã e da perua DKW-Vemag. Mas seu grande momento profissional foi quando sugeriu ao presidente da Willys-Overland do Brasil, o americano William Max Pearce, dar o nome de Itamaraty a um novo e reformulado Aero-Willys.
Consta que Pearce lhe ofereceu uma recompensa pela ideia mas Mauro recusou, trocando-a por ter a conta publicittária da Willys. Pearce concordou e Mauro, que nem agência tinha, criou uma praticamente da noite para o dia. A agência começou a funcionar em dois apartamentos no Hotel Jaraguá, em São Paulo Começava aí a vida da Mauro Salles Publicidade, depois Mauro Salles Interamericana e um longo relacionamento com a Willys, depois com a Ford.
Foi de Mauro Salles a sugestão do nome para o Alpine A108: Interlagos. Foi sugestão de Mauro mostrar as qualidades do Gordini por meio da tentativa de recorde na sua classe, ao rodar 50.000 km ininterruptamente pelo anel externo de Interlagos. Na prova carro capotou (com Bird Clemente) e mesmo todo amassado atingiu o objetivo. Da teimosia em continuar mesmo com a carroceria extensamente danificada veio o nome — dado por Mauro — para o carro popular da Willys em 1964: Teimoso.
Foi Mauro quem convenceu William Max Pearce a colocar os Renault, e depois os Interlagos, na pista, criando a Equipe Willys, a que mais venceu corridas no Brasil e chegou a vencer no Uruguai.
E quando a Volkswagen e a Ford se uniram em 1986, adivinhe quem batizou a holding de Autolatina? Ele mesmo, Mauro Salles.
BS