Quem está no centro da foto, de camisa azul, é Narciso Nogueira de Sá. Um baita de um amigo que nos deixou anteontem (7). Um português batalhador incansável que depois de 85 anos, completados dia 4 último, partiu.
Ele chegou ao Brasil em 1952, estabeleceu-se no Rio de Janeiro e trabalhou como mecânico em algumas oficinas Em 1958 montou a sua própria, de instalações quase precárias, no mesmo endereço de hoje, Avenida Niemeyer, 770, em São Conrado. O nome? Mecânica Lagoinha — outro lado da rua havia justamente uma lagoinha.
Era um lugar remoto, ao contrário de hoje, pois o bairro de São Conrado, como todos os outros, cresceu muito. Quem mora no Rio certamente conhece o lugar, o endereço, já deve ter passado pela Mecânica Lagoinha — hoje apenas Lagoinha — muitas vezes.
O endereço é praticamente no final da Av. Niemeyer, em que seguindo em frente começa a Estrada da Gávea. Sim, pelo endereço da Lagoinha passavam os carros de Grand Prix, os precursores dos Fórmula-1, começando em 1933 e indo até janeiro de 1954, a última corrida no Circuito da Gávea. A série só interrompida durante a Segunda Guerra Mundial e foram 16 grandes prêmio no total no circuito de rua de 11 quilômetros que até calçamento de paralelepípedos e trilho de bonde tinha..
Meu amigo Narciso não poderia mesmo ter-se estabelecido em melhor local. Ali cresceu, prosperou, tornou-se Serviço Autorizado Chevrolet, depois concessionário da marca da gravata-borboleta. Hoje é uma imponente e organizada oficina multmarca e Serviço Autorizado Bosch conduzida pelos filhos Fernando e Márcio. Fazia alguns anos que o Narciso apenas ia lá, mas todo santo dia. A Lagoinha era a vida dele.
Quando o Autódromo Internacional do Rio de Janeiro foi inaugurado em 1966, ele logo se interessou em correr e participou de uma das primeiras provas lá, Só uma vez: na curva Norte, que tinha uma boa superelevação, o Gordini do Narciso saiu voando “pela rampa de lançamento” e caiu, capotando na via interna de acesso aos boxes. Foi só o susto, nenhum ferimento, mas muita risada. O Narciso viu que a praia dele era outra, a mecânica.
Exímio mecânico, dedicou-se à sua Mecânica Lagoinha, que só cresceu, como visto. Mas ele estava no autódromo em toda corrida, preparava alguns carros profissionalmente, a maioria Renault, e daí nasceu o conhecimento e a subsequente amizade mútua.
Chega 1972. Um grupo de pilotos cariocas se junta sob a égide da Associação Carioca de Volantes de Competição e idealiza uma categoria monomarca com Opala. Contatos com a concessionária Chevrolet Mesbla S.A. resultaram nesta encomendar à GM 15 Opalas cupê standard com motor 4100 e câmbio de quatro marchas, adquiridos por esses pilotos por preço diferenciado, reduzido..
Foram algumas corridas, digo umas cinco ou seis, com aqueles Opalas, torneio que seria a semente da categoria Opala Stock Car, iniciada em abril de 1979 com apoio da fábrica. Esse torneio teve patrocínio e nome de uma grande fábrica e loja de móveis, a Penha Circular, e foi supervisionado pela Federação Carioca de Automobilismo (FCA) , hoje Federação Automobilística do Estado do Rio de Janeiro (Faerj).
Um dos que aderiram a esse Torneio era um grande amigo, o José Carlos Ramos, aquele que na foto de abertura está com os óculos de sol encaixado no “V” da camisa Polo.
Como ele nunca havia corrido, eu fui seu instrutor, lhe passei todas as dicas e segredos da arte de pilotar. Quem cuidava do Opala dele, de fulgurante cor laranja? O Narciso.
O regulamento do torneio permitia alijar do carro tudo que fosse supérfluo, de forração interna a de detalhes externos. Eu e meu irmão Rony nos dispusemos a ajudar o amigo José Carlos a deixar o carro na melhor condição possível.
Faltava uma semana para a primeira prova e nos programamos para estar na Lagoinha no sábado para trabalhar no carro. Mas na sexta-feira perdemos nosso pai, um dia para esquecer. Resolvermos trabalhar no Opala mesmo assim, de modo a cumprir o compromisso com o amigo e, na esteira, espantar a nossa tristeza. Lembro de escutar num rádio da oficina ou de um carro uma canção de grande sucesso na época, “Águas de março”, com Ellis Regina. Os dois irmãos trabalhando e “É pau/É pedra/E o fim do caminho/É um resto de toco/…” . Terapia mesmo.
O torneio foi até abril ou maio de 1973 e acabou. Mas no começo de agosto soube-se que haveria um prova de 25 horas em Interlagos e o José Carlos quis correr em dupla comigo. O regulamento seria Turismo Divisão 1, carros praticamente standard,
Mas havia um problema, o Opala estava desfigurado e precisava voltar ao normal para se enquadrada na Divisão 1. O José Carlos e eu fomos então à Lagoinha para tratar da conversão do Opala para o estado original. Lá chegando, “Narciso, queremos conversar uma coisa com você”. Ele ato contínuo disse: “Já sei, vocês querem correr a 25 Horas”… Esse era o Narciso, parecia adivinhar nossos pensamentos, uma pessoa altamente entusiasmada com o que fazia e, principalmente, com o automobilismo.
A corrida seria no dia 25 de agosto, havia pouco tempo para refazer o Opala todo para que voltasse ao original. O Narciso foi sensacional, pôs os funcionários dele para trabalhar no Opala. Até o tapeceiro da Lagoinha trabalhou, dando forma bem cavada no banco do piloto, que ficou perfeito.
Decidimos que iríamos em três pilotos, mas, quem seria o terceiro? Me lembrei do Jan Balder, que ia muito ao Rio com sua equipe de dois carros Fórmula Super Vê e estreitáramos nosso relacionamento. Convidei-o e topou na hora.
A sagacidade mecânica do Narciso se mostrou numa singela solução para que o motor, na sua movimentação normal sobre os coxins, que tinham que ser mantidos originais, numa freada mais forte atingisse o radiador com a hélice, furando-o: ele colocou uma corrente sob carro limitando esse movimento longitudinal do motor. O plano era retirá-la na última parada no boxe a fim de evitar problema numa eventual vistoria técnica, seja pela organização da prova, seja por protesto de um concorrente, que por pouco — 47 segundos — não houve.
Esse foi tempo que chegamos atrás do Maverick 302 V-8 vencedor, dos irmãos Bird e Nilson Clemente e do gaúcho Clóvis de Moraes. Se tivéssemos vencido, já havia protesto da Ford pronto, redigido por Mauro Salles, dono da agência de publicidade que atendia a Ford: é que o Maverick estava sendo lançado naqueles dias e havia um forte esquema de propaganda preparado.
O que levantou suspeitas do chefe da Ford, Luiz Antônio Greco, foi o fato de rodarmos duas horas com um tanque e o Maverick, 1h20min. A desconfiança era de que tínhamos um segundo tanque, o que era proibido pelo regulamento. O nosso “segredo” era um manômetro de linha de combustível que nos permitia saber, com precisão, o quanto podíamos continuar rodando mesmo que o medidor de combustível indicasse tanque quase vazio.
Eu, o José Carlos e o Jan Balder dedicamos aquele segundo lugar, uma quase vitória, ao Narciso.
E assim passaram-se aos anos. Em 1978 me mudei para São Paulo, mas a amizade perduraria até o dia 4 de maio passado.
Em julho 2016 o Jan Balder lançou seu segundo livro no Rio e adivinhe onde foi? Na Lagoinha, onde a tarde de autógrafos foi feita, daí a foto de abertura. O Narciso, já com a saúde debilitada, feliz da vida em receber os muitos amigos que lá compareceram. Nessa foto de abertura, da esq. para a dir, o conhecido colecionador José Cândido Murici Neto, o amigo e piloto carioca Benjamin Rangel, José Carlos, Narciso, Jan Balder, e meu irmão Rony.
Nesse dia em que fui ao Rio num bate e volta, de avião, especialmente para esse momento. O clima foi intensa amizade entre os que lá estiveram, inclusive amigos cuidaram de fazer um microexposição de carros antigos ou exóticos na frente da Lagoinha para enfeitar a festa.
Este dia foi o último que vi o Narciso. Depois só nos falamos, com alguma frequência, por telefone, ele me sempre me convidando para ir ao Rio e comermos um bom bacalhau e tomarmos um bom vinho. Infelizmente não pude atender esses convites.
Na noite de sexta-feira 3 maio sentiu-se mal, contou-me seu filho Fernando, foi levado ao hospital, seu estado piorou, foi para UTI e na terça passada, após uma pneumonia combinada com parada dos rins, uma falência múltipla dos órgãos levou o Narciso embora. Seu funeral foi ontem às 16 horas no Cemitério São João Batista, em Botafogo.O José Carlos encomendou uma merecida coroa de flores para o Narciso.
Requiescat in pace, Narciso.
BS