Meu grande amigo Erineu Cicarelli, dono de um dos Schwimmwagens “brasileiros” (que acaba de passar por uma restauração radical), me enviou umas fotos históricas que me deixaram intrigado. Ele também me passou o contato da Karin Schnur Miotto, filha do técnico alemão Dieter Schnur, o “herói” desta história.
Estive com a Karin, com quem fiquei uma tarde falando sobre as histórias de seu pai. É impressionante o material que ela possu e que ela planeja organizar para que se possa aprofundar na história de seu pai e dos dois VW Schwimmwagen que vieram para o Brasil, tanto na Alemanha quanto depois já aqui.
E não é só documentação que ela tem, mas muitos objetos da época da II Guerra Mundial, como um sistema de comunicação de campanha fabricado pela Siemens em perfeito estado de preservação, apto a funcionar (ela tem duas unidades, o que possibilita a comunicação), bastando acrescentar as baterias:
Este artigo vai se basear numa matéria publicada no caderno de Bremen (cidade portuária no norte da Alemanha) do jornal Weser-Kurier de 20 de fevereiro de 1961 sobre a viagem do Dieter Schnur com sua noiva e seu VW Schwimmwagen para o Brasil.
No dia 17 de fevereiro de 1961, os estivadores do galpão 1 do Europahafen (Porto Europa — uma das docas do porto de Bremen), não acreditaram em seus olhos quando um Schwimmwagen da antiga Wehrmacht (Exército do III Reich), com equipamento e insígnias de guerra, novinho em folha, suspenso por uma travessa, flutuou no ar e desapareceu por um alçapão do convés na popa do navio cargueiro “Santa Isabel” (foto abaixo). Toda esta “aparição” durou apenas alguns segundos.
Uma das fotos do carregamento é a imagem de abertura desta matéria, mas há mais:
Mas os trabalhadores do turno viram corretamente: uma hélice na traseira, um farol de blecaute no capô, nas laterais pás e sinais táticos de uma divisão da Baixa Saxônia, duas cabeças de cavalo, comuns na Wehrmacht, e no para-brisas um papel de despacho onde se lia: “Bremen-Santos”.
Na única foto da matéria do Weser-Kurrier, que reproduzo abaixo, a foto do Dieter Schnur com seu Schwimmwagen já a bordo do Santa Isabel. Ele aparece simulando estar entrando no seu Schwimmwagen, o que com a capota levantada não é lá muito fácil.
Vários detalhes de autenticidade podem ser vistos nesta foto, como o estepe lameiro no capô, o farol de blecaute, a pá, o distintivo com as duas cabeças de cavalo, inscrição na lateral com dados do regimento. Havia também o suporte para fixar uma arma no capôs, além do farol orientável montado na moldura do para-brisa.
As insígnias com as duas cabeças de cavalo que este Schwimmwagen ostentava, uma de cada lado da frente do carro, eram da 295ª Divisão de Infantaria da Wehrmacht, que lutou, dentre outras, no front oriental na batalha por Stalingrado (hoje Volgogrado). Ela também era conhecida não oficialmente como “Doppelkopf-Division“ — “Divisão da Cabeça Dupla” — ou “Pferdedivision“ — “Divisão dos Cavalos”.
A matéria do jornal continua: o dono desta rara lembrança de guerra era o técnico de 27 anos, Dieter Schnur, de Hannover, a quem um Schwimmwagen trouxe — segundo ele — a sorte da sua vida. Na ocasião ele viaja com sua noiva e o veículo anfíbio para São Paulo, no Brasil, para construir uma existência, que ele deve a um “brasileiro” que queria a todo custo estar de posse de um Schwimmwagen, com o qual ele poderia dirigir tanto em estradas, quanto em rios e estuários.
Coloquei o “brasileiro” entre aspas por se tratar de um tipo de expressão de uso corriqueiro na Alemanha, em que basta a pessoa viver num pais estrangeiro para ser considerado como local daquele país. Logo adiante veremos quem era este “brasileiro”.
A então noiva do Dieter era uma atriz conhecida na Alemanha. Veio com ele para o Brasil, mas o casamento acabou não saindo. Tempos depois o Dieter conheceu a mãe da Karin aqui no Brasil e se casaram. A primeira noiva do Dieter participava de acampamentos com o Dieter e o Schwimmwagen ainda na Alemanha.
Voltando ao jornal Weser-Kurier, o conto de fadas moderno tinha começado há alguns anos na Áustria, onde Walter Bernhardsgrütter, o “brasileiro” — na verdade nasceu na Suíça — passou suas férias. Lá ele viu jovens navegando num lago com um Schwimmwagen. “Esse seria o veículo certo para o nosso terreno acidentado e imprevisível no Brasil”, disse o Walter. Em seguida ele escreveu para uma empresa em Hannover, cuja representação em São Paulo ele dirigia, pedindo que lhe arranjassem um Schwimmwagen. O chefe da empresa matriz da Alemanha queria fazer um favor para seu amigo de negócios “brasileiro” adquirindo um tal carro anfíbio. Mas como?
Nos anos 60 talvez pudesse ser mais fácil lançar um foguete para a Lua do que obter um VW Schwimmwagen da II Guerra Mundial em boas condições de uso. Apenas cerca de 15.000 exemplares deste anfíbio foram fabricados entre 1943 e 1944. A estimativa era que havia quase 60 deles na Europa naqueles tempos, 30 deles na República Federal da Alemanha, como era chamada a Alemanha Ocidental. O chefe da empresa de Hannover lembrou-se de um jovem técnico de sua empresa, que ele sabia pertencer ao círculo dos entusiastas de Schwimmwagen. Este técnico recebeu a incumbência de adquirir um carro que estivesse equipado com a hélice.
Este técnico era o Dieter Schnur, que levou dois anos para juntar todos as peças: a “banheira” — carroceria —, caixa de câmbio e redutores, rodas, eixos, e tudo mais. Ele os encontrou em Berlim Ocidental, em cemitérios de carros, e na Áustria, onde uma pessoa com visão tinha comprado todo o estoque de peças do Exército depois da rendição da Alemanha em 8 de maio de 1945..
Um dia o carro ficou pronto. Ele foi testado em estradas secundárias e num lago perto de Hannover. O carro se saiu bem nos testes de estrada e de navegação. Em São Paulo, o “brasileiro” esfregou as mãos: Logo meus amigos vão se espantar quando me virem dirigindo uma “banheira sobre rodas” nas ruas.
O texto do jornal até aqui não fala, mas subentende-se que o primeiro Schwimmwagen foi o que o Dieter despachou para o Brasil. Acredito que a vinda destes dois Schwimmwagen para cá se deve, na realidade, aos dois: ao Dieter Schnur que montou um e o mandou para o Brasil, e ao “brasileiro” Walter Bernhardsgrütter, que deu a motivação e os recursos para o Dieter trazer o segundo quando de sua mudança para cá.
E com a vinda do Dieter para o Brasil ele acabou sendo um companheiro para as aventuras do Walter, além de ser um exímio técnico que sabia como mexer nos Schwimmwagen, algo que não se tinha como encontrar no Brasil,
Retomando ao Weser-Kurier: para o Dieter Schnur, o “brinquedinho” do “brasileiro” trouxe um ponto de virada em sua vida. Um dia ele encontrou um telegrama em sua caixa de correio com a intimação: “Venha com o seu Schwimmwagen para São Paulo – passagem de navio reservada – trabalho aqui em abundância”.
“Isso foi há um ano”, diz o jovem técnico, que se acomodou no fim de semana no “Santa Isabel” para sua segunda viagem ao Brasil. “Eu consegui um bom trabalho com o Sr. Bernhardgrütter. Eu gosto do Brasil e acho que vou ficar lá para sempre. ”
O Schwimmwagen no porão 4 é o que pertence ao Dieter, que ele havia deixado um ano atrás em Hannover. O “brasileiro” também financiou esta viagem para levar o anfíbio e sua noiva para a América do Sul, disse a matéria.. “E lá, em breve, vamos nos casar”, diz Dieter Schnur. A carruagem do casamento será uma antiga máquina de guerra, um carro com uma hélice de navio — uma modalidade de desarmamento que provavelmente é única no mundo.
A chegada do Schwimmwagen do Dieter em Santos
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Com base no relato do Weser-Kurier, e no que o meu amigo Erineu Cicarelli contou, ele acabou comprando o Schwimmwagen que pertenceu ao “brasileiro” Walter Bernhardsgrütter, aquele que foi montado pelo Dieter. Na foto abaixo esses dois Schwimmwagen em alguma praia no Brasil.
O veículo da esquerda apresenta as insígnias do 295ª Divisão de Infantaria da Wehrmacht, com as duas cabeças de cavalo, portanto é o carro do Dieter. O outro é o carro do “brasileiro” que acabou sendo comprado pelo Erineu anos depois:
Este relato, repito, baseado naquilo que foi publicado pelo jornal Weser-Kurier, foi apresentado nesta matéria acrescido de alguns comentários e esclarecimentos meus, que contaram com pesquisas adicionais e informações recebidas da Karin e do Erineu; este foi o meu campo de pesquisa neste caso. Como eu disse, a Karin tem uma interessante documentação e conhece a história de seu pai. Ela e a família dela, mãe e irmãos, certamente poderão compor uma história completa dos personagens que foram apresentados nesta matéria, caso decidam fazer isto.
AG
Registro o meu agradecimento ao amigo Erineu Cicarelli por ter enviado aquelas fotos que deflagraram a minha curiosidade, levando a esta matéria. Também agradeço pelo contato com a Karin Schnur Miotto, com quem pude compartilhar algumas horas mergulhando numa documentação muito interessante e única. Espero poder colaborar com ela no futuro para a elaboração da complementação desta matéria. Registro o meu agradecimento à Karin também.
As fotos que recebi, tanto do Erineu, como da Karin, vieram sem legendas que eu fui acrescentando após pesquisar as fotos em si. Também foi necessário pesquisar na internet para completar alguns itens.
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