O título é para lá de estranho, mas é porque no AE fazemos questão de usar grandezas corretas, Em inglês está certo, é voltage, mas aqui, onde usamos a o Sistema Internacional de Unidades, é tensão elétrica em vez de voltagem. Então, para deixar claro, o título se refere a “prazer em alta tensão elétrica”, não “prazer em alta tensão emocional”. A unidade de tensão elétrica é o nosso conhecido volt (V).
O novo Jaguar I-Pace, que agora chega ao Brasil certamente está entre os meus “Dez mais” em matéria de prazer ao dirigir e desempenho.. Apenas para fins estatísticos, calculo que já rodei com pelo menos 1.500 diferentes carros em mais de quatro décadas de avaliações. Dos mais toscos inventos caseiros, passando pelos construídos à mão por talentosos preparadores, até a “alta costura” milionária do automobilismo mundial, representada pelo topo de linha dos alemães (Audi, BMW, Mercedes-Benz e Porsche). Claro que também rodei com os temperamentais e superesportivos italianos “de grife”, como Ferrari, Lamborghini e Maserati, sem esquecer vários Alfa Romeo memoráveis, incluindo o recente Giulia, cujos 500 cv me fizeram rodar no campo de provas da FCA (ex-Alfa Romeo) em Balocco, na Itália, indo ajudar a aparar a grama na área de escape.
Mas, entre todas estas obras de arte dedicadas ao máximo prazer em dirigir, coloco agora nesta lista o I-Pace, um Jaguar elétrico.
“Aiiiinnnn, sou contra os elétricos”. “Isto não é um carro, é um eletrodoméstico que anda”…
Pé….pé… peraí. Não se trata de um manifesto político, muito menos de uma discussão religiosa. É uma simples constatação de que os carros elétricos podem, sim, dar um enorme prazer ao volante. Além disso, muito importante colocar que é um prazer muito diferente daquele oferecido pelos superpotentes motores com seus turbos e quetais.
Existe uma combinação tecnológica que foi aproveitada ao máximo no Jaguar I-Pace. Isso sem esquecer que ele traz junto 400 cv e 69,6 m·kg de torque.
Este brutal torque traz a primeira grande diferença para os motores térmicos (ou a combustão). Torque, em um motor elétrico, é sempre instantâneo e em qualquer rotação do motor. Ou seja, não existe curva de torque, esta grandeza simplesmente é uma reta, uma “mesa”. A mesma “paulada nas costas” desde 0 rpm até as enormes rotações que motores elétricos alcançam.
Segunda grande diferença: o centro de gravidade do I-Pace é ridiculamente baixo, pouco acima da linha dos eixos. Toda a grande massa de um carro que pesa pelo menos 2.200 kg está concentrada na altura dos eixos. Os dois motores de 200 cv (um em cada eixo com seu respectivo diferencial) e mais de 600 kg de baterias apoiados no assoalho. Você dirige sentado nas baterias.
Distribuição de peso perfeita (50/50) com um centro de gravidade tão baixo que é praticamente impossível de se conseguir com motores a combustão. Nem mesmo chegar perto disso com um motor boxer, cujos cilindros opostos conseguem “jogar massa um pouco mais para baixo” pela sua própria disposição.
Tradução: a sensação de “incapotável” do I-Pace é real, mesmo em carro relativamente alto, também devido a posição das baterias. A classificação de SUV dada pela Jaguar deve ser entendida com uma interpretação poética do marketing que, como em todos os fabricantes, acredita que precisa ser um SUV para vender. Para capotar um I-Pace precisa de muito “talento”: talvez conseguindo fazer o monstrinho elétrico derrapar em piso muito escorregadio (o que é difícil devido aos recursos eletrônicos) e bater lateralmente em uma guia com muita velocidade.
Depois de algumas curvas, percebe-se o quanto o I-Pace é grudado no chão e aí é só alegria. Ou melhor, a alegria inicial de dirigir um carro muito rápido (0 a 100 km/h em 4,8 seg), mas que exige adaptação. A “tocada”, a forma de dirigir, é muito diferente do que fizemos quase a vida toda com carros convencionais.
“Ahhh, você está exagerando, afinal no lançamento brasileiro foram só algumas voltas no autódromo Velo Città” (em Mogi-Guaçu, SP, o melhor autódromo particular do Brasil). Verdade. O I-Pace no Velo Città foi simplesmente um recuerdo de bons dias em Portugal, no lançamento mundial deste Jaguar no final do ano passado. Pela Terrinha rodei quase 600 km com I-Pace, além de pilotar pelo Autódromo do Algarve.
Abro parêntese: o teste na verdade era de pouco mais de 400 km. Só que ninguém é Silveira impunemente. A minha média diária de duas burrices é seriamente afetada pelo astral luso. Assim cometo diariamente uma enorme quantidade de “estultices” (que não entendeu, vá para o Google, é apenas uma pequena homenagem ao Roberto Nasser, do qual tive vários ataques de saudade ultimamente).
Pois é, além disso fazia dupla com o pernambucano Jorge Moraes, cujo sobrenome não deixa dúvidas quanto a origem. Aí, Silveira e Moraes, soltos em Portugal… a gente se perdia pelas estradas até com um certo orgulho luso em fazer besteiras. Foi ótimo, já que rodamos muito mais com o I-Pace, mas isto causou um desespero para os ingleses que organizaram os longos dois dias de test drive. Os I-Pace eram monitorados via satélite e a gente sai do roteiro do GPS e o celular já tocava. Um paciente inglês explicava que estávamos (de novo) fora da rota. Explicava como voltaríamos para o roteiro planejado e perguntava se tinha entendido: “Tudo, menos o nomes das cidades portuguesas que estariam nos cruzamentos seguintes”. O desesperado inglês tentava pronunciar os nomes novamente e terminava com o óbvio: “eu não falo português.”. Resposta padrão: “mas eu falo, e o que você diz não faz sentido”. Depois de dezenas de quilômetros a gente voltava para a rota, para evitar um infarto no britânico. Claro que havia certa dose de intenção nas “perdidas”, já que estávamos apaixonados pela veloz e emocionante “eletrodoméstico”.
Depois de uns 100 km pelas serras do Algarve, a gente “pegou a mão da pilotagem” e começou a se entender com o “jogo da autonomia” (que, mostrando a evolução dos elétricos, já chega a até 470 km no I-Pace, sem recarga).
Primeiro, o melhor é dirigir com a recuperação de energia no nível máximo. Aí simplesmente não se usa o freio. Tirando totalmente do pé do acelerador, se consegue até 0,4 G de desaceleração (uma frenagem de emergência típica é de 0,7 G). Cheguei a rodar quase uma hora sem pisar no freio, mesmo atravessando trânsito urbano, e assim sempre ganhando o máximo de recarga das baterias e autonomia.
Nas serrinhas do Algarve, fiz uma experiência. Rodei 20 km com média de 110 km/h, elevada para o tipo de estrada e relevo, sem nenhum cuidado com a autonomia. Acelerava dentro da curva, aumentava a velocidade em descidas e simplesmente não observava a barra de controle de energia elétrica no painel (que mostra o gasto ou recarga). Nestes primeiros 20 km, baixei a autonomia em 34 km.
Nos 20 km seguintes, relevo e estrada muito semelhantes, mantive os 110 km/h, sem grandes acelerações e aliviando levemente o acelerador nas descidas, sem baixar a velocidade, mas deixando o sistema entrar em recarga. Ou seja, uma pilotagem rápida, porém constante e menos esportiva. Resultado: rodei os mesmo 20 km e autonomia baixou apenas 14 km.
O “aprender” a pilotar implicar em confiar e se entender com o carro. A forma de atacar as curvas é diferente, pois o sistema eletrônica de controle de estabilidade e tração é muito mais efetivo e sutil que nos carros esportivos convencionais. Mesmo que você entre na curva acima do recomendável, não há corte de motor, muito menos frenagens em rodas especificas para manter a trajetória, como ocorre nos esportivos atuais com motor térmico. Você entra acelerando na curva e o sistema vai jogando potência para as rodas dentro do maior limite do carro para aquela curva. Se há tração, força total para as rodas. Se há risco de patinagem ou derrapagem, sutilmente o sistema se adapta a situação e mantém a velocidade sempre máxima para aquela curva. Nem se sente a interferência de qualquer controle eletrônico.
Outra curiosidade importante: há perda de autonomia por aquecimento das baterias. No segundo dia, quando a gente “pegou o jeito de se perder”, chegamos num ponto de parada, o Autódromo do Algarve, com apenas 80 km de autonomia. E faltavam 70 km de etapa final. Falei com um técnico da Jaguar e ele falou para não nos preocuparmos. Fizemos cerca de duas horas nesta parada e quando voltamos ao carro, só com o resfriamento das baterias, a autonomia havia subido 30 km, chegando aos 110 km.
Por isso, dirigindo sem grandes “pilotagens” e acelerações, as baterias trabalham em menor temperatura, o que melhora a autonomia, acredito por existir menor perda de energia com o aquecimento. Entra aí mais uma curiosidade: a razão de existir uma grande grade na frente do I-Pace. Para que uma grade se não existe motor a combustão para ser resfriado?
Pois bem, a parte superior tem função apenas aerodinâmica. O ar que entra, sai logo acima pelo capô dianteiro para manter a dianteira mais “no chão”. Já a parte inferior da grade serve dois radiadores: um que resfria o circuito liquido das baterias e o outro para o trocador de calor do condicionador de ar.
Outro fator que ajuda a mudar bastante as sensações ao volante está no fato de não existir câmbio. Nos primeiros quilômetros, até se espera uma troca de marchas ou mesmo o “fim” do motor, a faixa vermelha. Só que isto não existe, a rotação do motor cresce de forma um pouco “infinita”, até o 200 km/h, a velocidade máxima do I-Pace, acredito que limitada eletronicamente pelo fato de altas velocidades derrubarem a autonomia.
Chegando no Autódromo do Algarve, a surpresa foi rodar com o I-Pace (outro, óbvio, com o “tanque em carga máxima”) e um piloto inglês ao meu lado orientando o traçado. Já havia rodado em Algarve mais de uma década atrás e não lembrava do circuito. E, com o I-Pace, todas as broncas do inglês eram para acelerar mais nas curvas. Lá pela terceira ou quarta volta é que consegui deixar de dirigir e realmente pilotar. O “eletrodoméstico” é muito, muito rápido, e a adaptação em um pista de competição acontece em poucas voltas. Saindo do elétrico, o convite seguinte era para rodar com um Jaguar a combustão e já pensei: “agora já conheço a pista e com um motorzão a combustão vou arrasar”.
As broncas se inverteram: o inglês berrava “freia mais” antes das curvas. Nas duas vezes que desobedeci ao inglês, o carro ameaçou rodar e entraram todas as “babás eletrônicas” de plantão (selecionadas para o modo esporte, para pista”). E ainda tive de aguentar as gargalhadas e o “eu não disse” do bem-humorado inglês. Conclusão lamentável: fui bem mais rápido com o carro elétrico do que com o V-8.
Detalhe importante: em Portugal, rodei com o modelo com suspensão hidráulico/eletrônica. Para o Brasil, vem o I-Pace com suspensão convencional, também com assistência eletrônica. Rodando em Mogi, no Velo Città, a diferença sensível está na maior rolagem (inclinação lateral da carroceria nas curvas) da suspensão convencional, praticamente inexistente na hidráulica. Esta suspensão especial só virá para o Brasil sob encomenda, já que aumenta ainda mais os já elevados R$ 437 mil de preço inicial.
Saindo do Autódromo do Algarve, chegamos tranquilos ao hotel, com mais 50 km restantes de autonomia (lembra que havia 80 km que se transformaram em 110 km com o resfriamento da bateria?)
Pois é, não é sem razão que o I-Pace ganhou mais de 60 prêmios internacionais, de design a desempenho, passando pela sua tecnologia e soluções eletroeletrônicas. Segundo coleguinhas estrangeiros, o I-Pace só é comparável, em termos de desempenho e eficiência, aos modelos de topo da Tesla, que ainda não dirigi.
O silencio interno é outra atração à parte. apesar de existir um simulador de ruídos de motores convencionais. Simplesmente não usei por achar um recurso ridículo. Mas, há quem goste.
Claro que o interior é muito luxuoso, ergonomia exemplar e existem todas as atrações de infotenimento que levam a “geração celular” a ter orgasmos múltiplos. Mas existe uma novidade importante: o velho e bom GPS. Claro, aperfeiçoado com um aplicativo que mostra todas as estações de recarga e, mais, analisa a autonomia do I-Pace e, se for necessário, mostra alternativas de rota onde exista recarga. E, pelo menos no Sul/Sudeste elas se multiplicam rapidamente. Se pode ir de São Paulo ao Rio, ou a Foz de Iguaçu, com “abastecimento” de energia elétrica garantida. Usando uma tomada doméstica comum (de 220 V que forneça 7 kW) se recarrega 80% das baterias em 10 horas. Numa tomada especial (de 100 kW) estes mesmos 80% são alcançados em apenas 40 minutos. Os 20% restantes para carga total são mais lentos e nem é recomendável se usar para poupar as baterias de aquecimento. Só em caso de necessidade da autonomia total (de 470 km, ciclo europeu). Em Portugal, sempre saímos pela manhã com os 80%, cerca de 380/390 km para viajar e nos divertirmos.
Claro, é uma enorme e eficiente CPU sobre rodas, na qual a mecânica se reduz a suspensão, dois diferenciais, alguns rolamentos e freios. Sua manutenção é praticamente inexistente. Por isso as três revisões (a cada dois anos ou 34 mil km) são gratuitas, com garantia total de cinco anos, além de oito anos para a baterias. Curiosamente, este é um inglês feito na Áustria, na planta da Magna Steel, na cidade de Graz.
Sem discutir política, religião ou ideologia de gênero, mesmo sendo fan(old)boy de motores dianteiros, tração traseira, câmbio manual e wagons, não dá para negar que os elétricos (EV) já são uma opção mais do que viável. São capazes de oferecer um enorme prazer ao volante. Opção cara, ainda complicada quanto à autonomia, poluição em todo o ciclo (da matéria-prima ao descarte final irresolvido), reabastecimento lento e difícil em viagens… Mas uma opção real e que vai crescer rapidamente com a chegada de modelos mais acessíveis em custo.
Mas, mesmo com a sempre rápida evolução da eletrônica, que favorece mais os elétricos, a convivência com os motores térmicos convencionais vai ser bem mais longa do que prega a vã filosofia do marketing. Se alguém me doasse um Jaguar I-Pace, eu aceitaria e rodaria com enorme prazer.
Não ache isso o óbvio. Existem muitos carros (até entre os mais vendidos no Brasil) que fossem uma doação e existisse o compromisso de usar, eu recusaria. Só aceitaria se pudesse vender.
JS