Pois é, estou preparando um substituto para o Cuitado, meu Daihatsu Charade 1,5, 1995, que está ótimo, obrigado. O motivo é que não aguento mais o Cuitado depois de mais de 10 anos dirigindo ele por aí. Quando o novo Civic velho estiver pronto, ele será vendido. Se quiser saber mais sobre o Charade, leia aqui.
Antes é bom confessar que estarei falando como consumidor e não como jornalista. Como jornalista, gosto até de suve, já que tenho de refletir as preferências do público. Como consumidor, tenho minhas necessidades e gostos pessoais e tenho hábitos pelo menos bizarros, para ser honesto.
Gosto de sedã. Ponto. Sedã tem conforto e carro japonês, qualquer marca, geralmente é confiável. E tem a vantagem de deitar o encosto do banco traseiro, o que ajuda muito quando há muita tralha para levar.
E um japinha não vai te deixar na estrada de madrugada se estiver em bom estado. Só que a minha noção de bom estado também é particular: só é bom se tiver sido todo desmontado, tudo feito em padrões de dono chato e que entende de mecânica, e remontado com critério.
Por isso, procurei um japa sedã, câmbio manual é claro, “para fazer”. Não importava a marca, podia ser um Corollinha velho (afinal o Cuitado é Daihatsu, marca da Toyota) ou um Honda pedindo um dono. De preferência com o motor ferrado. Isso mesmo, batendo ou travado. Por que? Simples: só confio 100% em um motor velho que foi todo retificado e feito por meu mecânico de confiança, no caso o Renato Gaeta, de Tatuí, SP. Ou seja, sei o que tem lá dentro virando e sei também que tenho pelo menos 100 mil km sem encheção.
Cheguei a ver um Toyota Corona acho que 1996, que estava em bom estado. Só que seu preço não combinava com o desgaste de virabrequim e bielas, que já estavam “conversando”. Apesar de poucos Corona terem vindo para o Brasil, seu motor 2,0 não assusta quanto a componentes, já que era também usado no RAV4. Além de fazer o motor por precaução, hoje teria de trocar o logotipo pelo do Corolla. Não deu negócio. E já imaginaram um tio velho dirigindo um Corona durante a quarentena?
Há vantagem financeira nessa história de comprar um carro com motor “para fazer”? Quase sempre não. Mesmo adquirindo um carro por um preço baixo, depois que se faz tudo que deve ser feito, seu custo geralmente ultrapassa a tabela Fipe.
Só que aí tenho um “carro velho 0-km”, o que geralmente não existe. Mesmo comprando um carro aparentemente muito bom, quase sempre se gasta mais uns 20/30% de seu custo em manutenção após a compra.
Depois de muita procura, acabou aparecendo este Civic 1,7, 2002, com o motor batendo. Uma bielinha insistia em “conversar alto” com o motorista. O Civic cumpriria meus objetivos. Depois de pronto, ficaria confiável e confortável, conseguindo cruzar a Rodovia Castello Branco mantendo média de 120 km/h (ou um pouquinho mais) fazendo pelo menos 13 km por litro de gasolina, metas que o Cuitado 1,5 da Daihatsu faz com louvor há muito anos. E ainda tinha a vantagem: eu finalmente iria entrar no século 21, já que o Civic foi feito depois do ano 2000 (a maioria dos meus cacos velhos é do século passado).
Senta que lá vem textão
Meus carros são sempre uma novela, culpa de meu perfeccionismo graxeiro. Mas apesar do textão meio chato, pode ser didático para quem gosta de carro usado. Ou só consegue ter um usado, como é o caso deste escriba fuçador.
Gosto desse modelo da Honda, G7 (sétima geração) que começou em 2001 e durou até 2006 com uma leve reestilização em 2004. Não chega a ser bonito, mas pelo menos é elegante. Como consumidor, não gosto da “evolução” do Civic para seu visual nave que foi dominando até hoje, quando já é G10. Uma opinião pessoal já que tio velho como eu não gosta muito de revolução visual para usar no dia a dia. É cansativo de olhar todo dia.
Pois bem, esse G7 teve o primeiro motor nacionalizado da Honda com bloco de alumínio, um motor que teve vários cuidados com redução de atrito (para melhor consumo e menor poluição), um deles responsável por alguma redução também de durabilidade. Principalmente se o dono bobear quanto à qualidade e troca de lubrificante. Bem cuidado, este motor passa dos 200 mil km rodados, mas boa parte chega nesta quilometragem “batendo biela”. Suas bronzinas de biela (elemento de apoio e atrito entre as bielas e o virabrequim) são especialmente estreitas, tendo menos de 10 mm de largura. Ou seja, há pouco atrito, mas a pequena área de contato entre bielas e virabrequim se torna critica com lubrificação deficiente ou se o motorista gosta de forçar o motorzinho, mantendo em alta rotação por longos períodos sem necessidade.
O Civic que comprei é um LX que, apesar de ser 16V, tem só um comando no cabeçote como os E.torqQ Fiat, sem variação, com 115 cv a 6.100 rpm. Os modelos LXL e EX contam com o mesmo motor com comando variável e chegam aos 130 cv. Ainda não é flex, funciona só com gasolina.
Como se ferrar com um carro usado
A história (ou desventura) de seu ex-dono me pareceu real pela cara honesta do garoto e suas expressões de tristeza ao contar. Só se ferrou e serve de contraexemplo. Pagou tabela Fipe da época pelo Civic em uma loja de carros usados: R$ 16.500. Só que deu com parte de pagamento um Celta por R$ 4.000 e o carrinho valia pelo menos o dobro. Conclusão: já saiu dos R$ 20.500. Não contente, gastou cerca de mais R$ 4.500 em acessórios e manutenção. Mais custos em um carro que já chegou nos R$ 25.000. E gastou mal.
Um exemplo: pagou preço de bateria primeira linha (R$ 450) em um componente de terceira linha. E a bateria já estava pifada quando comprei o carro e ainda na garantia. Nem fui atrás de troca, pois teria de rodar uns 300 quilômetros até o revendedor da porcaria da bateria. Comprar outra ficaria mais barato do que gastar tempo e gasolina atrás da garantia.
O ex-dono colocou um multimídia chique no painel do “Civic tiozinho”, que eu delicadamente falei que ele podia tirar e jogar no mato e abaixar o preço. Até observo a câmera de ré, mas gosto de confirmar imagens nos espelhos.
Na “revisão” de motor que o ex-dono fez, trocaram um monte de peças (correia dentada, velas, coxins) e deixaram um filtro de ar que parecia um tijolo de tanta terra que tinha. Parecia original de um carro que já tinha rodado 169.000 km.
Tudo ia bem até que, cerca de 5.000 km rodados nas mãos do ex-dono, ele resolveu trocar o óleo. Foi numa revenda Honda, comprou lubrificante original e pagou uma nota. Trocou o óleo e o motor começou a bater. Sim, o motorzinho 1,7 foi todo “gatilhado”. Retiraram a válvula termostática para que o motor trabalhasse bem frio e encheram o motor com uma meleca, provavelmente lubrificante monoviscoso de graduação SAE 50 com um pouco de óleo de câmbio e um Bardahl B12, aquele que parece mel e demora duas horas para escorrer da embalagem. Geralmente esta é a receita mais tradicional para encobrir batidas de excesso de desgaste. Novamente vale o velho conselho: não entende muito de carro, leve seu mecânico antes de comprar um usado. Mesmo com todos os “gatilhos”, um ouvido mais treinado escuta uma batida de motor gasto a uns 20 metros de distância.
Claro que tudo isso aconteceu depois de quatro meses da compra e garantia da loja é, por lei, de três meses.
O garoto ficou com o mico e começou pedindo metade dos R$ 25.000 que o carro ficou para ele. Estava rodando com um Fiat Mobi e fazia cara de tristeza quando passava um Civic semelhante ao que ele estava vendendo:”era uma nave na estrada”…
Depois de muita negociação, e poucos interessados em encarar a encrenca, acabei ficando com o “Samurai” 2002. Dei uma pequena volta, o suficiente para descobrir que o restante do carro estava bom, exceto alguns outros detalhes de mecânica e de aparência. O carrinho estava parado em Santa Barbara D’Oeste, SP, curiosamente o berço do primeiro carro nacional, o Romi Isetta.
Com o motor funcionando e a biela solitária fazendo seu batuque, conversei sério com o Samurai: “seu nissei sem-vergonha feito em Sumaré, você ainda vai rodar uns 130 km até chegar a Tatuí para gente abrir este motor. Não vá me decepcionar”. O carrinho parecia ter entendido. Não entendeu, o cretino.
A viagem que não terminou
Dois dias depois, peguei um busão cata-caipira (para em todos botequins) de Tatuí para Piracicaba com uma mochila com ferramentas e uma bateria nas costas. Em Piracicaba, o Felipe Bitu, que já foi do time do AE, me esperava na rodoviária. De lá fomos para Santa Barbara, pouco mais de 30 quilômetros de Pira. Nada como ter o amigo certo no lugar certo.
Apesar do forte esquema de segurança da empresa do tio do garoto ex-dono, onde o Civic estava estacionado, a entrega foi rápida e gentil. Graças aos 2 m de altura do Bitu e sua delicada camisa Polo onde se em letras garrafais POLÍCIA. Nas horas vagas, o jornalista Felipe Bitu é policial civil. Rimos muito. Bitu queria que eu fosse até a oficina de um amigo dele em Piracicaba, mas rejeitei pois seria inútil. Tinha mesmo era que abrir o motor.
Lá fui eu, tarde quente, enfrentar 130 quilômetros de aventura. Ia a 60/70 km/h em quinta marcha, pé descalço para não pesar no acelerador. Chegava a 100 km/h em baixadas, na banguela, motor em marcha-lenta. Subidas? Acostamento. Fácil notar a sacanagem da retirada da válvula termostática: o ponteiro de temperatura nem mexia na estrada.
Foi bem por uns 120 km. Passando Cerquilho há um subidão de uns 3 ou 4 km, antes de passar sobre o viaduto da Rodovia Castello Branco. A lembrança do subidão vinha me assombrando há um bom tempo. Cheguei à base da subida embalado em ponto morto a uns 100 km/h. Subi cerca de um quilômetro no embalo e olhei lá pra cima: pho.., quero dizer “Coitou”, pensei olhando aquele sol a pino de 3 horas da tarde. Fui para o acostamento e só engatei quinta marcha nos benditos 60 km/h. Queria chegar rodando em Tatuí pra já fazer a vistoria e a transferência enquanto o motor era restaurado. Por isso evitei colocar o Samurai num caminhão-prancha.
Pois bem, ele subiu mais um quilômetro, a subida fica um pouco mais íngreme e a batida de biela começou a aumentar. Aliviei ainda mais o pé do acelerador e deixei o esquerdo de plantão na embreagem, que foi apertada um décimo de segundo depois que o motorzinho gritou. Achei que meu principal terror foi evitado: em um motor de alumínio, uma biela não pede muita licença para arrebentar o bloco e vir olhar o mundo aqui fora.
O motor travou livre, sem tração, mas travou: a biela fundiu no virabrequim. Liguei para o Carlão, meu já amigo do caminhão-prancha, que responde: “Onde vou te buscar hoje?”. “Cara, esse japa fdp parou a uns 8 km de Tatuí.”
E o Samurai chegou na prancha, com cara de sacana, na oficina do Renato e não deu para fazer a vistoria de transferência. Vamos ter de fazer o motor meio rapidamente, apesar do orçamento apertado.
Mesmo simpático, o japinha é meio cínico, preciso ficar mais esperto com ele. Mesmo com toda aquela conversa antes da viagem, o Samurai não cumpriu sua parte do trato.
Descobrindo a incompetência alheia
Dia seguinte, motor já está na bancada. Uma caixa de papelão abriga dezenas de pequenos suportes. É um saco para desmontar e montar, mas é um dos segredos de confiabilidade e durabilidade japonesa: nenhum duto, cabo, ou chicote caminha mais de 30 cm sem um apoio. Evita vibrações, trincas, mau contato e garante milhares de quilômetros sem problemas.
Motor aberto, a travada foi suave e a biela que fundiu apenas deu uma leve entortada. Convocamos o Kota, outro bom mecânico de Tatuí, que tinha feito quatro motores iguais a este nos últimos seis meses. Ele já veio com uma biela usada na mão (para substituir a entortada), sobra de um dos motores que havia recuperado. A cagada principal (desculpe, Bob, mas não achei sinônimo a altura) foi clássica: haviam feito a parte superior do motor (cabeçote e pistões novos e já na primeira retífica, 0,50 mm) e não mexeram no virabrequim, que estava standard com bronzinas originais. Quando os anéis assentam e o motor ganha compressão, as bronzinas desgastadas não agüentam o maior esforço e fundem. Uma economia porca de no máximo R$ 500, um valor muito pequeno quando já se tem um motor desmontado. Não entendo um mecânico que insiste neste quebra-galho, que nunca dá certo. “Faz só uma troca de anéis…” O cara faz, o motor roda 4 ou 5 mil km e funde.
Levei o virabrequim na retífica, o rapaz olhou e disse “vai para a primeira retífica, submedida 0,25 mm”.
“Larga de ser metido, mede essa droga com o micrômetro”. Mediu, deu 0,25. Quem entende tem olho treinado. No “vira” retificado colocamos tudo novo, da melhor qualidade.
Na parte superior, apenas brunimos as camisas para assentar melhor os novos anéis, já que a folga entre pistões e cilindros estava na tolerância. No cabeçote, uma esmerilhada de válvulas por descargo de consciência e troca dos retentores das 16 válvulas. Claro, juntas e retentores tudo novo de primeira linha. Bombas de água e óleo eram novas, mas trocamos uma série de detalhes que já estavam à mão com motor todo desmontado. Válvula termostática foi colocada (já que tinham sumido com ela), válvula blow-by de circulação de gases do cárter, sensores… um monte de pecinhas que normalmente ninguém examina.
A embreagem estava gasta e, novamente orçamento curto, comprei uma reindustrializada (nome gourmet para recondicionamento) de uma marca que já havia usado em dois ou três carros. Renato xingou: se der problema, “Você vai me pagar o dobro para tirar o câmbio e trocar esta droga.” Praga minha: na mesma semana, havia um Gol 2018 na oficina do Renato para troca de embreagem. O dono do carro comprou um kit original, bem caro. Ele montou o Gol e o rolamento de embreagem gritava mais que uma tia mal-humorada.
Renato teve ataques justificados de ódio, pois a revenda só trocaria o rolamento e ninguém iria pagar a mão de obra perdida.
Já a embreagem “recauchutada” (como o Renato chamava) ficou perfeita no Civic. Ri muito. Macia, sem vibrações ou trepidações, e o rolamento novo de marca “xumbrega” era muito silencioso. Já conhecia o trabalho deste pessoal do Paraná e, para um leigo é difícil distinguir o kit reindustrializado deles de um componente novo. Platô é retificado, brunido e recebe um tratamento anticorrosão, disco tem molas de cubo novas, revestimento com lonas de marca reconhecida e até um pouco mais espesso que o original para maior durabilidade. O rolamento “China” de embreagem é sempre de qualidade. E o kit custa um terço de uma embreagem nova. Mas, peças recondicionadas requerem bastante conhecimento para serem usadas, além de um pouco de sorte. A qualidade varia incrivelmente: de lixo puro a trabalho com muito critério técnico.
Curiosidade técnica: esse motor transversal do Civic G7 ainda é “errado”. Ao contrário de quase todos os carros, o motor fica na esquerda, do lado do motorista. O projeto prevê um carro japonês, com o motorista na direita, para compensar o peso. Assim, ele vira “ao contrário”, sentindo anti-horário, o que dá alguns nós na cabeça de quem está remontando. Motor recolocado, hora de montar dezenas de suportes, chamamos o mais experiente Koga. Começou a sobrar suportes. Mesmo com uma “junta médica” de três pessoas, gastamos mais de duas horas para terminar o quebra-cabeça. Chega a ser divertido: cada vez que se acha o lugar certo de um suporte dá um gostinho de vitória. Deveria ter fotografado tudo antes.
O motor roncou fácil, assim que a injeção ganhou pressão com combustível. Só quem já fez um motor fundido sabe a alegria quando ele volta à vida. Não apareceram vazamentos de lubrificante ou água. O radiador tinha um apoio gasto e vibrava. Foi trocado. O protetor do cárter estava pendurado por apenas dois dos seis parafusos. Roscas recuperadas, voltou para o lugar. Pastilhas de freio (dianteiras) foram também substituídas. Revisão das suspensões revelou uma dianteira em ordem e a traseira problemática. Mas vai andar assim mesmo.
A primeira volta já foi para a vistoria. Afinal, neste país de malucos, não transferir o carro no prazo é uma “infração de trânsito”, com pontos na CNH, e não uma simples falta administrativa.
Agora é amaciar o motor com calma e achar mais defeitos para corrigir, assunto do próximo capítulo.
Nota do escriba graxeiro: desculpem a falta de qualidade das fotos, mas só pretendia contar esta história com o carro pronto. As fotos que ilustram a matéria fiz apenas para ter referência pessoal para comparar quando o Civic estiver realmente restaurado, inclusive a parte estética.
JS