Retomando a publicação de causos, apresento o causo do leitor muito conhecido no AE que se identifica como “Fórmula Finesse”, um relato de um tempo em que no fragor da juventude valia de tudo para se destacar em seu grupo social
O MUSCLE VW FUSCA
Por: Fórmula Finesse
Quando a gente pensa na categoria de carros conhecida como muscle cars, logo vêm à mente carros americanos com enormes motores sob o capô, verdadeiros reatores movidos a combustão que pareciam ter apenas dois intuitos na vida: derreter pneus e causar aquela mistura de medo e de louca alegria nos seus motoristas.
Medo e louca alegria você pode até associar ao nosso simpático VW Fusca. Medo do seu xodó ser danificado, furtado ou de te deixar enguiçado na estrada. Alegria? Ah, essas são muitas e diversas, contadas em prosa e verso mil vezes, e em textos mil vezes melhores do que esse — caso contrário, o que você estaria fazendo aqui, lendo uma crônica sobre VW Fuscas?
Até aqui OK então, conseguimos construir uma relação — mesmo débil — do VW Fusca com os grandes muscle cars americanos do passado. E se a gente arriscasse mais, e se o pequeno Volkswagen — em configuração mecânica original — também tivesse a capacidade insuspeita de derreter pneus?
Parece lorota, mas era possível sim, mesmo que o carro fosse um simplório Fusca 1300 da safra de 1979, virtualmente igual ao carro da foto de abertura. Esse Volkswagen foi meu no começo dos anos noventa, entre 1992 e 1994, acompanhando-me no rito de passagem que é sair da condição de motorista infrator menor de idade, para o respeitável status de motorista responsável, consciente, homem-feito e com um novo mundo abrindo-se à sua frente; novos direitos e muitos deveres.
Eu falei motorista responsável e consciente? Bem, eu também gostaria de ter sido assim, mas a verdade é que a habilitação conquistada não me deu novas luzes e uma compreensão mais madura sobre o “entender automóvel”, tráfego e mais tudo que girava ao redor dessa nova condição.
Eu continuava andando como não se devia, buscando aquele cascalho solto na beirada das estradas para chutar rápido a embreagem e forçar uma saída de traseira em segunda ou terceira marcha. Mudança de marcha rápida — golpeando o volante para o lado esquerdo — e com o pé cravado no acelerador também provocavam efeito semelhante. Às vezes funcionava e a traseira do carro vinha forte de lado, o câmber fechava de vez e era hora de corrigir girando o volante de direção para dentro da derrapada.
Escrito assim parece até uma manobra bonita, mas a verdade é que o carro saia fugazmente de traseira mais pelo desequilíbrio da massa do motor do que pelo “surto” de potência aplicado em hora e local errados. Não havia força para manter uma derrapagem, quanto mais para corrigir — e não poderia ser diferente: 38 cavalos líquidos (46 brutos) espalhados em 1.300 cm³, isso é potência para girar a hélice de um liquidificador e não um carro, como se convenciona a pensar hoje em dia (foco no número de cavalos).
Sim, eu era um “proto-marginal”, mas era assim que meus amigos e eu entendíamos o idioma automóvel na época — têm rodas e motor? Vamos correr, vamos explorar as possibilidades finais dessa máquina, vamos nos autoafirmar, mostrar nossas habilidades e coragem para os outros jovens “caçadores” — esse destemor e burrice inata parece que são parte do nosso DNA, algo muito antigo e do qual é bastante difícil de se livrar, ainda mais quando se está na idade complicada dos dezoito anos.
Culpa minha ou das “influências”, a verdade é que foi um amigo que me mostrou um truque novo, algo que nem ele — acho — desconfiava. Não lembro o motivo, mas ele decidiu entrar no carro e manobrá-lo, engatou ré e acelerou forte. Só que o freio de mão estava todo bem puxado e o besouro azul se contorceu de lado, e começou a girar uma roda furiosamente sobre o pó de brita que cobria o paralelepípedo. Talvez as lonas de freio não estivessem com a mesma regulagem e resultasse na imobilização de uma roda apenas, enquanto a outra estava liberada para girar, e caso o pneu conseguisse quebrar o atrito com o piso, o resultado seria inesperado.
O diabinho no meu ombro direito me olhou de soslaio e fez um “Hummmm…” como sinal de desaprovação; isso não prestaria, não mesmo!
Golpe tramado e local escolhido, era hora de mais um inútil exercício de exibição, mas agora com uma nova carta na manga. A cidade era pequena, o bar da moda estava lotado e havia muitas pessoas na calçada como era de costume, algumas apoiadas bebendo nos seus carros, alguns destes, belos Dodges de oito cilindros que estavam voltando a ser curtidos por gente de bom gosto, muito, mas muito antes desses carros virarem moda e objeto de afeição novamente.
Motivado por algumas cervejas (sim, a crônica é um show de horror), embiquei o bicho na frente do estabelecimento, engatei a ré e puxei a alavanca do freio quase até o meu pescoço, “Seja o que Deus quiser!”, pedi potência com o pé direito até o motor silvar em agonia, e com o esquerdo liberei a embreagem de uma vez. O Fusca “levantou a patinha” e o pneu — muito estreito — começou a girar em falso, a guinchar em diversos tons agudos até uma fumaça branca e espessa começou a surgir dele, e quanto mais o motor e o pneu gritavam em uníssono, mais fumaça surgia debaixo cobrindo o carro até o teto.
Satisfeito com os efeitos especiais, e antes que a fumaça cobrisse totalmente a visão para frente, tirei a ré rapidamente, soltei o freio de mão e busquei a primeira marcha num átimo, pé no fundo e o 1300 Fafá saiu com o pneu quente gritando escandalosamente, agora no sentido certo, e deixando para trás uma densa nuvem do pobre pneu martirizado.
Literalmente, por breves instantes, o carro serviu como um imenso ímã azul, atraindo irresistivelmente todos os olhares para si. De dentro da cabine — eu gostaria de imaginar que até um silêncio respeitoso, talvez estupefato, fez se presente após a saída de cena do bichinho.
Tranquilamente dei uma lenta volta olímpica pela quadra e o estacionei junto aos outros carros, invariavelmente mais potentes, rápidos e caros. Um rapaz proprietário de um Dodge chegou perto e olhou para dentro do Fusca e viu algo diferente no painel. Como era um veículo de trabalho, havia sido instalado um vacuômetro circular ao lado do marcador de combustível, com o intuito de “catequizar” quem o utilizasse (era meu, mas também eu tinha que dividi-lo com o escritório), no sentido de incentivar a direção econômica, com o ponteiro recomendando para não sair da escala pintada de verde, a parte vermelha significava desperdício de combustível.
O guri olhou o mostrador de fora, e pela “fúria” destrutiva apresentada pelo Fusca nos momentos anteriores, deve ter imaginado/deduzido que o indicador era algo relativo à pressão de um eventual turbo ou coisa parecida; alguma maldade escondida e majorada pelo ponteiro. Fez sinal positivo e perguntou bem entusiasmado: “Tá bem mexido esse fusquinha, hein?” Eu ri de volta e respondi que sim, “Esse besouro é um ‘demonho’!”
Esse tipo de apresentação foi repetida outras vezes, em outras ocasiões, e até com outros motoristas. Prova de que a habilidade insuspeita não estava no motorista, mas sim no carro, um frágil e humilde Fusca azul de pneus estreitos, que parecia atormentado pelo fantasma de um poderoso muscle car do passado, que desejava vingar-se de ter partido cedo demais, destruindo borracha.
Não posso me orgulhar do vandalismo do passado — não nos dias de hoje — mas eu me orgulho pra caramba daquele pigmeu azul que me ensinou muita coisa atrás do volante, o que fazer e o que não fazer; nossas aventuras foram ricas e variadas e ele nunca, em momento algum, me deixou na mão.
O Fusca era o carro certo até nos nossos momentos mais errados, se fosse outro — talvez — eu nunca teria ânimo de escrever com tantas saudades e restos de sonho nos olhos, e se isso não o torna um carro especial, não sei mais o que o torna.
Como de costume o autor foi convidado a enviar um breve currículo e uma foto para a apresentação que já se tornou praxe aqui na coluna Falando de Fusca & Afins, quando o assunto são causos, mas… neste caso o que veio foi um currículo anônimo, no qual o autor do causo se apresentou com a sua alcunha usada no campo de comentários (no caso gerido através do site Disqus). Dado este esclarecimento aí vai o currículo do autor:
Fórmula Finesse: Convicto que a mensagem tem mais importância do que o mensageiro, Fórmula Finesse não acha que seu nome verdadeiro seja vital para assinar suas resenhas ou comentários. Seu nick nasceu para participar mais ativamente do AUTOentusiastas, desde as primeiras postagens ainda lá em 2008, fazendo uma homenagem a Sir Jackie Stewart, respeitadíssimo tri campeão de Fórmula Um. ‘Fórmula Finesse’ era um exercício de direção — ministrado pelo campeão — que visava atingir suavidade aos comandos de um automóvel, sem deixar a rapidez de lado. Uma espécie de “dirigir macio” como preconizam outras grandes influências do Fórmula Finesse, José Luiz Vieira (da icônica Motor 3) e Bob Sharp, apaixonado por carros de todas as épocas e estilos, considera-os os melhores balizadores da evolução humana nos tempos modernos.
Aqui fica o nosso agradecimento ao Fórmula Finesse, e o convite a outros leitores para que enviem seus causos para o acervo, análise e eventual publicação.
AG
A foto de abertura veio de um anúncio do Mercado Livre que já foi encerrado, não houve como determinar a sua autoria.
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