Agora que os noticiários normalizaram a cobertura sobre a covid-19, parece que outros assuntos voltaram à pauta, mesmo que escondidos no meio do quarto bloco ou, no caso dos sites e impressos, depois de todas as outras coisas, sem lá grande destaque.
Vejam bem, caros leitores, não estou aqui minimizando a pandemia nem dizendo que não tem que noticiar por isto e por aquilo. Como jornalista, entendo perfeitamente (e concordo) que o vírus ainda é e será notícia por muito tempo – e tem de ser mesmo. O assunto se encaixa em todos os critérios que definem o que é notícia.
Então… agora vemos e ouvimos outros assuntos e, como não poderia deixar de ser, os noticiários matinais voltaram a falar sobre trânsito. OK, acho mesmo que é necessário. Desnecessário e sem sentido é voltar ao velho chavão de que a lentidão é provocada por “excesso de veículos”. Não sei quem foi que usou essa frase pela primeira vez, mas se dependesse de mim o condenaria a ouvir música sertaneja em volume bem, bem alto, as 24 horas do dia durante um mês.
Tão ruim quanto inventar um chavão que não se sustenta na realidade é repeti-lo. Será que esses mesmos jornalistas acham que o refeitório da emissora (ou do jornal) tem fila por “excesso de jornalistas”? Eles seriam capazes de sugerir que alguns profissionais fossem proibidos de trabalhar ou demitidos para acelerar o almoço dos demais? Duvido. Provavelmente sugeririam que fossem colocadas mais travessas no caso de self-service. Ou que fossem contratadas mais pessoas para ajudar a servir e limpar as mesas. O mesmo quanto ao espaço físico das redações. Algum coleguinha diria que a falta de computadores ou mesas se deve ao “ excesso de jornalistas”? Procuraria a diretoria para pedir que profissionais fossem dispensados? Não acredito que nenhuma medida passasse por reduzir a quantidade de usuários, então, porque sugerem isso para o trânsito?.
O mesmo acontece com hospitais. “ Excesso de pacientes”? Não, assim como no trânsito é de falta de planejamento que falamos. Alguém já ouviu algum governante falar que a arrecadação de impostos foi recorde porque há “ excesso de contribuintes”? Em todos meus anos de jornalismo econômico nunca, nunquinha, ouvi isso. E, nesse caso, qual seria a solução? (claro supondo, assim como no trânsito, que isso fosse problema. Genocídio? Isenção tributária para mais gente? Permitam-me rir só de pensar que isso pudesse ser aventado por algum governante — é claro que a ideia de genocídio não me faz graça alguma, que fique bem claro.
No caso do trânsito, sofremos com décadas e mais décadas de falta de planejamento e, se continuarem usando como desculpa esse bordão, nunca melhoraremos a circulação em nossas vias — seja de carro, ônibus, bicicleta…
Só de pensar que apenas 12% de todas as rodovias que cortam o país eram asfaltadas em julho de 2019, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT) já dá para ter uma ideia de quão pouco foi feito nos mais de 500 anos de existência do Brasil — e sim, os primeiros registros da existência de asfalto datam de 3.000 a.C. feito a partir de piche encontrado em lagos. Ou seja, tivemos muito, muito tempo para pavimentar estradas.
Mas o problema é especialmente de planejamento. Conversando com um arquiteto que trabalhou em grandes construtoras, soube que é frequente que se projetem rodovias sem levar em conta acessos a elas, que são feitos posteriormente. A-rá, já entendi por que encontro o tempo todo barbaridades nas estradas que tanto frequento. Já falei aqui de um acesso à rodovia Raposo Tavares, em Sorocaba, que é em ângulo de 90 graus. OK, vão me dizer que o hospital Adib Jatene foi construído há pouco mas, porque não se deixou espaço às margens da rodovia para eventuais e posteriores acessos? É óbvio que as cidades crescem assim como suas demandas.
Na Argentina boa parte das determinações e leis que regem a construção de estradas e em seu entorno são da década de 1950 – mas muitas anteriores. A lei 6312 da província de Buenos Aires, em seu artigo 1, diz que todas as rodovias da rede principal da província que forem projetadas deverão incluir previsões para a segurança e a rapidez do trânsito que as utilizar, seja qual for o volume que puderem ter no futuro. Não é linda essa última frase? Juro que me emociono quando vejo um governante (ou legislador) que pensa no futuro — do país ou do Estado, não dele próprio, já que isso é quase o normal. Não vou aqui discorrer sobre as particularidades da lei, mas garanto que detalha todas as obrigações que devem ser seguidas com um zilhão de especificações. E isso se repete no país inteiro.
Algo parecido acontece dentro das cidades argentinas. As obras são feitas para durar e em muitos casos opta-se pela melhor e mais duradoura solução e não pela mais barata ou rápida que dê tempo de inaugurar no mandato do atual governante. Recentemente foi inaugurada uma modernização viária, depois de um par de anos em construção. É uma obra que aqui pareceria absurda, mas que foi, de fato, a melhor solução: na capital (a rigor, a cidade autônoma de Buenos Aires), foi erguido um trecho de quase 4 quilômetros de uma ferrovia da linha Mitre que corta o centro da cidade. Isso para desafogar o trânsito de veículos, pois foram eliminados 11 cruzamentos. Foi uma obra gigantesca, mas conversei com várias pessoas e todas me disseram que é a melhor alternativa. E o melhor, é que obras iniciadas por uma gestão dificilmente são canceladas pela seguinte, ainda que seja de oposição. E olha que se tem uma coisa que portenho gosta é de ser do contra…
A questão, portanto, não tem a ver com o fato de sermos latinos, nem latino-americanos, nem nada disso. Trata-se de vontade política e visão de longo prazo.
Mudando de assunto: depois de tanto tempo sem corridas de Fórmula 1, agora tem todo domingo. Claro que gosto disso, mas com vírus ou sem vírus, dificilmente este título não será do Hamilton, que é um grande piloto, tem um excelente carro e, como todo campeão precisa, tem sorte. Mesmo assim, tem tido umas disputas bem interessantes nos blocos intermediários.
NG