Ah, caros leitores, eu juro de pezinho junto que tento não entrar em algumas tretas — mas não consigo. Parece que algumas me chamam qual canto de sereia em direção ao fundo do mar. Neste caso, em direção às polêmicas. Então, vamos à mais recente que diz respeito ao trânsito em São Paulo, justamente minha cidade e que parece um porão com alçapão quanto o assunto é replicar coisas sem analisar sua viabilidade e, ainda por cima, fazê-las pior.
A pseudonovidade é usar calçadas e ruas para colocar mesas e cadeiras de bares e restaurantes. Já aí vemos a dicotomia do problema. Calçadas e ruas são públicas – e públicas não significa “nossas” como alguns grupos dizem. Significa que são de todos. T-O-D-O-S, não de alguns grupos. Bares e restaurantes são privados — ou seja, de apenas alguns particulares. Só aqui a discussão poderia ser encerrada por óbvio. Como assim, usar espaços públicos para fins exclusivamente privados e, pior ainda, de apenas alguns? Certamente, algo para fazer progressista bugar apenas com esse raciocínio. A proposta, que na verdade não é uma proposta, pois já foi implementada unilateralmente, atende pelo nome de Ocupa Rua – mais uma palavra muito em voga entre alguns segmentos. “Ocupa” como se fosse algo legítimo… (foto de abertura).
A ideia, como eu disse, é colocar mesas e cadeiras de alguns restaurantes previamente selecionados nas ruas e calçadas que não ficam totalmente fechadas para o trânsito de veículos, mas são extremamente estranguladas pois na melhor das hipóteses passa um veículo por vez — supondo que ele não vá parar para alguém descer ou algum outro motivo. Eles passariam a atender a clientela neste espaço aumentado inicialmente em vias da Vila Buarque, no centro da cidade, em algumas ruas como a Major Sertório, General Jardim, Bento Freitas, José Paulo Mantovan Freire e Araújo. Mas o objetivo, já declarado, é expandir o projeto a outros bairros da cidade. Já há 10 estabelecimentos atendendo desta forma e do grupo faz parte um escritório de arquitetura, responsável pelo projeto e pela padronização do mobiliário que deverá ser adquirido pelos bares e restaurantes — incluindo enormes floreiras.
Para quem gosta de democracia, de empatia, de consultar os outros, tudo isto é um show de contradições. Poucos foram ouvidos, segundo os próprios comerciantes que seriam contemplados. A Prefeitura determinou a instalação de estruturas prontas, já bancadas por patrocinadores. “Cada estabelecimento tem uma situação e uma demanda diferente, e isso não foi contemplado”, critica Rodolfo Herrera, do café Takkø, no centro paulistano. Segundo ele, donos de estabelecimentos se questionam quem irá mediar possíveis conflitos, como o de vizinhos incomodados com o barulho, e de quem será a responsabilidade por esse mobiliário no futuro.
Pesquisa feita pelo DataFolha com 1.204 pessoas, com 16 anos ou mais, na cidade de São Paulo nos dias 20 e 21 de outubro mostra que 77% são contra a medida. Apenas 19% são a favor e 3% são indiferentes. Mesmo entre os mais jovens (de 25 a 34 anos), que se supõe seriam os mais favoráveis, apenas 26% apoiam a iniciativa. Entre os de mais de 60, somente 11% apoiam a ideia. Nem mesmo os moradores do centro gostaram do projeto e apenas 33% são a favor, comparado com 17% de moradores da Zona Sul, 18% da Zona Leste, 21% da Zona Norte e 23% da Zona Oeste.
A alegação dos participantes do projeto é que os restaurantes podem usar áreas ao ar livre para atender os clientes em épocas de pandemia. Não precisa ser um Einstein dos números para entender que se trata de um subterfúgio para fazer caixa num momento em que se deve colocar menos mesas dentro dos estabelecimentos para manter o distanciamento social e, portanto, menos receita nos caixas deles. Entendo a queda de receita de bares e restaurantes, e lamento muito, mas o mesmo aconteceu com todos os segmentos industriais e de serviços, então, será que outros setores poderiam fazer o mesmo? Alguém admitiria que uma usina de açúcar começasse a moer cana nas praças de Ribeirão Preto para manter o distanciamento social entre seus funcionários que, obviamente, trabalhavam mais juntos antes da covid? Ou que uma indústria alimentícia, precisando de mais espaço para “espalhar” seus funcionários devido ao distanciamento social, colocasse sua linha de montagem em espaços públicos, como as ruas defronte a suas fábricas? Ela poderia deixar apenas uma pista para o trânsito? Mesmo no caso de serviços, cabeleireiros poderiam se instalar nas ruas e calçadas? Manicures? Podólogos? Médicos? Também é evidente que mais mesas e cadeiras na rua aumentarão as aglomerações e, com isso, o risco de contágio – aliás, como aconteceu em outras cidades onde isso foi feito.
A desculpa da pandemia deixa de ver outro lado da mesmíssima pandemia: aumentou a procura por transporte individual, carro particular e mesmo os individuais públicos, como táxi e Uber, justamente para evitar a proximidade com outras pessoas e elevar o risco de contágio. Por onde vão transitar esses carros? Onde vão estacionar? Quanto vão demorar para passar pelo bairro carros que vão a outros lugares, inclusive pessoas que trabalham à noite ou nos finais de semana? Quem diz que o carro vem ganhando espaço nas metrópoles por ser alternativa contra o risco de contaminação por covid-19 não sou eu, é Bianca Tavolari, professora do Insper e pesquisadora no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Ela defende que todas as intervenções nas ruas sejam feitas após debates com a comunidade, incluindo comerciantes e moradores, para encontrar as melhores saídas possíveis e que as mudanças sejam fáceis de implantar e de serem refeitas, caso não deem certo. “Uma coisa é colocar as mesas e cadeiras do próprio salão na rua. Outra é ter de comprar novos móveis padronizados”, compara ela.
Pessoas que criticam manifestações perto de hospitais porque atrapalham o trânsito de ambulâncias acham que elas levitam e passarão por cima de mesas e cadeiras? Ah, e tem vasos de plantas, também. E tudo isto fica o tempo todo nas ruas e calçadas.
Agora a pergunta óbvia que se faz qualquer jornalista: se a sociedade não quer, boa parte do comércio não quer, cui bono? Ou seja, quem se beneficia desta privatização dos espaços públicos? Deixo a vocês, caros leitores, as sugestões de resposta.
Algo parecido já acontece em outras regiões da cidade, como perto da Universidade Mackenzie, onde bares colocam por conta própria mesas e cadeiras e atendem deixando a região intransitável (de três faixas de rolamento passa-se para uma e mesmo assim, com muitos pedestres que andam pelo leito carroçável). E a Prefeitura nada faz. Detalhe: o Mackenzie fica a poucos metros do Hospital e Universidade da Santa Casa de Misericórdia, um dos maiores locais de atendimento público da cidade. Por sinal, a Santa Casa fica justamente na Vila Buarque, a apenas metros de distância das ruas que estão sendo ocupadas. A Santa Casa tem 44 salas de cirurgia,1.076 leitos de internação e 290 salas ambulatoriais que fazem mensalmente 39.000 atendimentos emergenciais, 100.000 atendimentos ambulatoriais, 200.000 exames laboratoriais e por imagem e 2.200 procedimentos cirúrgicos. Como farão ambulâncias e doentes que precisam chegar até o hospital? Lembrando que o tal mobiliário fica permanentemente instalado nas ruas e calçadas, não é recolhido em nenhum horário nem dia.
Frequento tanto a região do Mackenzie quanto a da Vila Buarque e sei perfeitamente o desastre que é a muvuca da rua Maria Antônia. Sujeira, barulho… tudo menos a tal convivência que alguns pregam. A Vila Madalena também é assim e, como me contou um amigo que mora lá, os frequentadores ainda gritam para os moradores que saem nas janelas para pedir menos gritaria: quer sossego? Mude para o Morumbi!. Ironicamente, é a mesma parcela da sociedade que estrila contra o fascismo e o totalitarismo. É empatia que chama isso, né? (modo irônico ativadíssimo).
Para quem diz que isso foi feito em outras cidades como Londres e Nova York, digo: é fato. Mas deem uma espiada nos números de contágios por covid-19 depois que isso aconteceu. Todas essas cidades tiveram aumentos gigantescos nos números depois de adotar essas medidas. Novamente, cuidado! alguns cérebros podem bugar com estes dados.
Pessoalmente, acho que esta iniciativa vai morrer como aconteceu com os parklets, as estruturas de madeira com bancos ao ar livre que foram estimuladas pela Prefeitura na gestão anterior, em 2015, e assunto que já abordei aqui neste espaço. Aliás, andando pela cidade se encontram algumas, totalmente abandonadas, deixando a cidade ainda mais feia, sendo criadouros de mosquitos de dengue, atrapalhando a circulação. Nenhuma foi montada na periferia – apenas em bairros nobres e, claro, os restaurantes e bares as usavam como puxadinhos para aumentar a capacidade de atender clientes. Mas até a morte desta iniciativa, conviveremos com esses, vá lá, projetos, e provavelmente com seus cadáveres tempos depois como é o caso dos parklets.
Mudando de assunto: é segredo para um total de zero pessoas que sou fã do Kimi Räikkönen. Mas hão de reconhecer (serve isto no lugar de uma ênclise, já que não usei nenhuma hoje?) que a largada dele no GP de Portugal, no lindíssimo circuito de Portimão foi espetacular. Coisa de gênio. Fica a dica para o pessoal do PlayStation: aprendam a fazer brinquedos vendo como faz um piloto de verdade. Memorável!
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.