Pois é, em seis meses todas foram embora. Saíram para passear com amigos e não voltaram. Além de traído, descobri o óbvio: sem picape minha vida fica bem mais complicada. Sempre tem um motor pra buscar, uma geladeira para levar… Melhor conseguir logo uma picapinha.
Antes da aventura da caça por uma nova picape velha, vamos dar uma geral na turma que está em outras (boas) mãos, todas vendidas para amigos, sem necessidade de anúncio.
Saverinho bala
A primeira a me deixar foi uma VW Saveiro Sunset 1994, com motor 1.8S a álcool, que comprei lá por 1996 de um vizinho, recém-divorciado, que a tirou 0-km por uma única razão: estava em plena caça de garotas e seu divórcio foi causado pela sogra. Assim, pegou a Saveirinho por um único motivo: “só cabem dois e não vai ter velha chata querendo ir junto com as garotas que estou come…, digo saindo”.
Tinha os famosos 99 cv (que só era uma potência legal na época para pagar menos impostos, que na verdade eram um 100 e poucos cavalinhos. Comprei com uns 20 ou 30 mil km rodados e achei pouca potência, levando a picapinha para o Sérgio Performance. Quando voltei, o motor AP-1800 roncava como gente grande no dinamômetro, com potência máxima nas 6.000 rpm. “Sérgio, o que você aprontou com a Saveirinho, seu maluco?” “Desmontei tudo, embaixo estava tudo legal, aí melhorei o fluxo do cabeçote (ele já fazia isso com ajuda de um fluxomêtro computadorizado), aumentei um pouco a taxa de compressão (para quase 14:1, álcool), dei um tapa no carburador (um Solex 2E que teve venturis ampliados e o segundo estágio passou a ser mecânico) e ajustei o comando (que já era o 49G de fábrica) com uma polia variável”. Apareceram 130 cavalinhos, muitos de São Bernardo, da fábrica da VW, e outros extras de Santo André, onde fica a oficina do Sérgio.
Colocamos aquela barra entre as torres da suspensão dianteira, pois como todo “quadrado” a frente torcia, o que ocasionava derrapagens em curvas rápidas, além de ajudar a “trincar o túnel”, como ocorre em quase todos os Gol. A Saveirinho ia a 201/203 km/h, dependendo do vento. O que era comprovado pelo GPS e pela capotinha marítima da caçamba: quando ela encostava nos 200 km/h, apesar de bem amarrada, a capota afundava, tocando o piso da caçamba. Fui de São Paulo às praias baianas umas 15 vezes.
Roncava 10~12 horas até à Bahia, a mais de 5.000 rpm, com a tranquilidade de um monge tibetano meditando. Coloquei uns 100 mil km no hodômetro, ela foi embora com um amigo colecionador de “quadrados” que tem vários Gol GTi e queria um “GTS com caçamba”. (sim, tinha bancos Recaro, conta-giros, volante “quatro bolas”… tudo original).
Cybertruck de fibra
A segunda picape que foi embora era um Formigão, uma carroceria de plástico reforçado com fibra de vidro sobre chassi de Fusca, ideia do genial carioca Paulo Renha, que conheci pessoalmente, e criou vários carrinhos muito legais em fibra. O Formigão foi lançado em 1997, e brincava com o Paulo Renha que ele só tinha uma régua na prancheta quando desenhou o Formigão, que só tinha linhas retas como o recente CyberTruck do Elon Musk. O meu deve ter sido feito lá pelo ano 2000, pois já era obra da Coyote, outro fabricante de bugues, que comprou os moldes do Formi (era o seu apelido) do Renha.
Achei os escombros do Formigão no canto de oficina em Diadema, SP, como sobra de um projeto frustrado de colocar um motor AP, arrefecido a agua. No documento constava 1982, mas era o ano do Fusca ou Brasília que doou o chassi e mecânica a ar. Levei os cacarecos para Tatuí, toda a carroceria foi restaurada e eu e o Renato Gaeta recomeçamos o projeto mecânico com o motor AP traseiro, uma encrenca em matéria de arrefecimento. O mecânico havia suspendido a carroceria, para caber o AP sem invadir a caçamba, e colocou um enorme radiador na traseira. Ideia de “jênio”: o radiador recebia todo o ar quente vindo do motor e estava encostado numa parede fechada, que impedia a circulação de ar. Em lugar de colocarmos o radiador na frente (que atrapalharia o visual já polêmico do Formigão), optamos por colocarmos uma tela na parede encostada no radiador e adaptar um segundo radiador, de Santana, ao lado do câmbio, inclinado 45º, com difusores de ar curvos, com entrada na altura do assoalho. Tudo para direcionar ar frio para esse segundo radiador, que era o que realmente arrefecia. Funcionou bem, inclusive pelo fato do sistema abrigar mais de 10 litros d’água. O motor AP1.8 seguiu a receita do Sérgio Perfomance, com comando 49G (numeração completa: 049 109 101.G) e carburador preparado.
Devia render uns 120 cv, um excesso de potência para o “utilitário”. Só que o câmbio era da Kombi diesel, com relações curtíssimas, e o Formigão virou um carro de arrancada, urrando aos 100 km/h em quarta marcha. O único tipo de coroa e pinhão, para alongar a relação de marchas, que poderia ser montado nesse câmbio era o do Gol com motor 1300 a ar, descobrimos eu e o Renato depois de muitas contas. Um câmbio desses é uma mosca albina de olhos violetas que se recuperou de Covid. Achamos um de Gol 1600 também a ar. “Vai ficar muito longo”. Mas, se não tem tu, vai tu mesmo. Montamos. Não ficou longo, ficou comprido. O motor só entrava em faixa boa de torque depois dos 120 km/h. A 100 km/h girava a pouco mais de 2.000 rpm. Abaixo disso pedia terceira marcha toda hora.
Resultado: fui multado por radar fotográfico a mais de 130 km/h, em uma autoestrada, com as luzes de freio acesas e as rodas travadas tentando evitar a “penalidade injusta”. O Formigão ficou uma cadeira elétrica deliciosa. Foi vendido, depois de mais de 15 anos comigo, para outro amigo, o Alexandre Generoso, o ADG do Canal High Torque do YouTube, que quer fazer dele um CyberTruck brasileiro, uma picape elétrica, devido à semelhança da (falta) de desenho. O ADG conseguiu baterias, motor, central de controle eletrônico… mas o projeto andou um pouco e parou. Se, e quando, ficar pronto, a promessa do ADG é me emprestar o Formi para avaliar o projeto. Com certeza não vou ser multado a mais de 130 km/h. Com muito esforço, vou conseguir assustar velhinhas com um “borrachão” devido ao torque imediato do motor elétrico.
Uma F-100 trabalhadora
Em 1991, a Panam se tornou a única companhia aérea que faliu em voo: a ordem para os comandantes foi “aterrissa que a empresa quebrou”.
Dessa falência, sobraram duas picapes Ford F-100 americanas, que trabalhavam no Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro e foram a leilão lá por 1995, pela Justiça trabalhista. Meu primo Itiberê, que foi criado na matriz EUA e já há uns 20 anos voltou para o Michigan, foi no leilão para comprar escrivaninhas para o curso de inglês que tinha no Rio naquela época. Me ligou no celular (sim, crianças nascidas depois do ano 2000, celular já existia): “tem duas picapes gringas no leilão e estou conversando com o mecânico que cuidava delas. Uma era escada (carregava aquela enorme escada para chegar a bordo) e outra era normal, só trabalhava na pista. Ela é 1974 mas nunca foi emplacada e nem viu uma rua. O mecânico jura que colocou tudo de melhor nela (que não era tão bom, já que a Panam amargou anos de dificuldades financeiras). A picape da escada vai para o ferro-velho. Você quer a outra?”
“Claro, compra essa encrenca, joga num caminhão e manda para São Paulo”. Uma F-100 americana dos anos 1970 no Brasil é uma raridade e nem interessava o estado dela. Se dá um jeito para ela rodar bem.
Obra do destino, Itiberê voltou logo para os EUA, onde mora, e me enviou um monte de cacarecos para a Monstrinha rodar melhor.
Com muita ferrugem de rodar em um aeroporto à beira mar, era toda original com seu motor 302 V-8 (o “o canadense”, que também tinha bloco mexicano… usado ainda no Galaxie, Maverick, Mustang..) e câmbio automático heavy duty de três marchas. De brinde, uma suspensão dianteira Twin-I-Beam, o melhor projeto existente para uma picape. O braço/bandeja de uma roda apoia quase na roda oposta e nem com o monte de eletrônica uma picape atual faz curvas como uma Twin-I-Beam. Estabilidade e conforto exemplares. A Ford abandonou a solução devido a pressão dos “contadores de feijões” pois, além de genial, era caro.
Recuperamos tudo (motor com carburador quadrijet, comando especial e outros quetais) assim como suspensão, câmbio, parte elétrica… Virou uma Rat com toda a ferrugem (com aquele chassi de trilhos, superdimensionado, a carroceria só tem importância estética, não estrutural) além de empurradora de carros esportivos em autoestradas. O “motorzinho” small block, que tinha 198 cv (potência SAE bruta) de fábrica, ganhou mais uma manada, indo aí para uns 260/270 cv. Ronco maravilhoso do V-8, tudo certo? Não. Era pouco operacional e fazia de 2 a 3 km/l de gasolina.
Decidi passar para diesel, mas queria continuar com um V-8, claro.
Achei um V-8 6,5 Diesel, em Belém do Pará. Missionários americanos resolveram evangelizar os nativos e caíram com um van num rio. O van virou sucata e o motor/câmbio automático estavam com um mecânico. Liguei para o cara e pedi para um amigo paraense ir à oficina. O amigo gostava de carros, mas não entendia muito. Falei para o mecânico tirar os bicos injetores e girar o virabrequim com uma chave. Meu amigo fala pelo telefone que “o motor cospe água para tudo quanto é lado”. “Mas vira, não está travado?” “Vira livre”.
Depositei o pagamento e pedi para o amigo mandar o motor para São Paulo. O transporte mais barato que o amigo achou era um ônibus clandestino que gastava uma semana para despinguelar lá do Norte até São Paulo.
Este motor americano 6,5 V-8 Diesel é usado em diversos veículos “delicados”: ônibus escolares, Hummer (civil), Hummvee (militar), caminhões de lixo… O tal do ônibus cata-caipira chegou um domingo de manhã com o motor e, por ser clandestino, desembarcava em uma rua do bairro do Bom Retiro em São Paulo. Não em uma estação rodoviária. Lá fomos eu e o Zé Carlos Finardi, outro amigo mecânico que gosta de encrencas, rodando com a própria Monstrinha para ela pegar seu novo motor. Na caçamba ia um guincho hidráulico de tirar motores, para retirar o motorzão do bagageiro do busão. O motor/câmbio estava enterrado no meio de caixas de mangas e deu um trabalhão para ser retirado. Depois de colocar o motor na caçamba da F-100, eu e o Zé estávamos exaustos. Pegamos um canivete, sentamos na calçada e chupamos o monte de mangas que estavam grudadas no veoitão.
Fomos direto para o Sérgio Performance para restauração do motor. Peças enviadas dos EUA e, como sempre, o Sérgio deu um “tapinha”. Ele me liga: “Tá roncando no dino, vem ver”. Fui para Santo André. “Quanto está dando?”
“Potência está nos 230 cv e o torque mais de 70 m·kgf, talvez uns 80 m·kgf”.
“Como assim, talvez?” “É que meu dinamômetro só mede até 70 m·kgf, mas o motor tem mais torque”. Resultado da brincadeira: instalado o motor, o câmbio automático não deu recuperação e consegui um câmbio bem longo, manual de cinco marchas. Seu consumo ficou maravilhoso: de 2~3 km/litro de gasolina com o motor original, passou para 9~10 km/litro de diesel. A Monstrinha saía em marcha-lenta em segunda marcha e fazia 100 km/h com o motor ronronando a 1.500 rpm. Nos 2.000 rpm já estava a mais de 130 km/h. Só usava primeira marcha com muita carga na caçamba em subidas, ou para rebocar caminhões, o que aconteceu várias vezes. Sim, minhas picapes têm engate, pois rebocam de tudo. Se bater a canela, lamento. Ponho até adesivo refletivo para os distraídos, mas às vezes minha santa mãe é lembrada de forma pouco educada.
Uma dos rituais que tenho com o Douglas Mendonça (que é colunista aqui no AE e, como sabem, perdeu a visão) é de ele adivinhar o carro que cheguei pelo som do motor. Quando cheguei com a Monstrinha pela primeira vez, dei uma acelerada, desliguei e encontro o Douglas com cara de interrogação: “Caramba, você veio de caminhão?”
Fiquei com ela uns 25 anos e a sua venda começou há mais de duas décadas. Naquela época, havia um foca (jornalista calouro) na redação da revista Oficina Mecânica, o Edu Bernasconi. O moleque sumia da redação e gente achava o Edu namorando a Monstrinha. “Um dia vou vender para você, dá um tempo e vai ganhar dinheiro na vida”. O Edu e eu seguimos diferentes caminhos profissionais, continuamos amigos, e hoje ele tem a FullPower, inclusive com canal no YouTube e milhares de seguidores. Depois que as duas outras picapes foram embora, liguei para o Edu: “Vem buscar a Monstrinha, já usei bastante. Agora é sua vez.” Hoje a F-100 é um projeto FullPower e o maluco do Edu está colocando inclusive dois turbos nela. Imagina se um motor com mais de 80 m·kgf de torque precisa de mais força. Tecnicamente não, mas dá ainda mais audiência nos vídeos. E, como as outras minhas ex-picapes, de vez em quando dou umas voltinhas, pois estão com amigos. O que dificilmente é possível com ex-mulheres.
Não percam a continuação desta saga picapeira: Vem aí “O Resgate do Soldado Corsa”.
JS