No seu último e extenso trabalho literário — o ótimo livro “Metrópole à Beira-Mar” — Ruy Castro escreveu uma coisa que achei curiosa sobre um personagem real: “fulano tal já era uma estátua em vida”, denotando a ideia de que a pessoa conseguiu tanta fama,solenidade e respeito ainda dentro da própria existência, praticamente virando um monumento muito antes de ser imortalizado em granito. E isso, reconhecidamente, é um grande feito.
Assim como pessoas, raros são os carros que atingem tal status antes do final da sua vida comercial, o fim da linha. É bastante fácil hoje ficarmos tecendo elogios aos carros do passado, como se eles já tivessem nascidos clássicos e com uma reputação infalível; fingimos que ignoramos o fator nostalgia e desde já carimbamos verdades absolutas sobre alguns modelos de nossa predileção.
Naturalmente que quanto mais especial e rarefeito financeiramente for o carro, mais fácil fica virar um súdito fiel — afinal de contas, muito dinheiro foi mobilizado para gestar algo realmente espetacular. E dinheiro promove engenharia ao mais alto nível e seduz os melhores desenhistas, e essa combinação geralmente quase sempre dá certo.
Mas e se o carro em questão não nasceu para quebrar cronômetros, bolsos e reputações de “bons motoristas”? E nem foi numerado para se tornar uma joia rara que só deveria andar sobre plataformas, para eventos fechados e cerimoniosos? E se ele já nascesse como um novo clássico, rendendo homenagens a outros totens automobilísticos do passado, custando relativamente pouco e democratizando as sagradas sensações da mais pura arte da direção esportiva, e em mais de 30 anos de produção, não perdendo nada da sua invejável reputação — pelo contrário — apenas ganhando novos fãs?
Bem, não consigo pensar em exemplo melhor do que o Mazda Miata; e juro que vou tentar explicar por quê:
Dois amigos e um Miata
Quem realmente gosta de carros sabe que o Miata nasceu em 1989 fazendo uma franca homenagem aos roadsters ingleses dos anos 1950 como o Triumph TR4 e os MGB: leve, de dimensões contidas, linhas suaves e elegantes que mesclavam nostalgia e modernidade, um motor girador lá na frente e uma dinâmica respeitada e desejada (presente em quase todas as pistas do mundo), esse carro “do lado de cá” dos testes, vídeos e revistas, só poderia ser algo extremamente bom.
A grande amizade com um entusiasta e conhecedor em detalhes do pequeno samurai — Sr. Yuri Franzoni — permitiu-me experimentar a mística criada sobre esse carrinho tão famoso. Não era o tal dilema de conhecer algum “herói”de perto — o Miata nunca esteve de verdade na minha extensa lista — mas eu não poderia ficar alheio a esse carro, pois eu sabia que deveria existir sólida verdade acerca da sua doce desejabilidade. Bonito ele sempre foi, será que ele é bom como contam em prosa e verso?
Ao vivo ele é bem baixo, mais do que a gente imagina em fotos em vídeos, é preciso realmente curvar as costas para encostar na maçaneta. Uma vez dentro do carro — depois de literalmente descer quase até o chão — é impossível conter um riso divertido, pois com exceção do volante e da alavanca de câmbio de manopla em madeira, tudo ali parece que passou por um sutil processo de miniaturização: o painel é pequeno, o console é alto mas é diminuto, os botões, mecanismos, altura da porta…tudo parece 30% menor que o “normal”, o motorista senta lá embaixo e temos a falsa impressão que as pernas não vão passar entre o volante de direção e o assento.
Batendo a chave o motor pega fácil e emite um som encorpado, coisa de escapamento modificado, a gente solta o freio de mão que fica à esquerda da alavanca de câmbio e soltamos a embreagem — um pouco dura é verdade — quase sem dar motor. Meio que contrariando a expectativa, o bichinho parte praticamente em marcha-lenta, apenas com um fio de acelerador; busco a segunda e encontro uma alavanca de marchas decididamente firme e sólida, que exige condução assertiva até o próximo engate, o curso dos canais de seleção não são exatamente curtos considerando os padrões atuais das caixas manuais, cada vez mais raras.
Esqueçam esse negócio de mudar as marchas com as pontas dos dedos, é preciso usar um pouco de força e ficar atento ao tempo do motor e da ação da embreagem — nos primeiros metros de trânsito não é difícil passar por um motorista novato, o Miata não é rude, mas também está longe de ser o carro da “Barbie”como muitos o veem.
O volante de direção precisa abrigar um sistema de airbag lá de 1991, ou seja, um conjunto que exigia mais espaço do que os atuais, por isso a direção não é tão pequena como a gente poderia imaginar, seu acabamento em madeira — kit de customização — conversa mais com os roadsters ingleses do passado do que com o conciso e moderno Miata, mas a pega é excelente, pois dificilmente algum fabricante vai errar num quatro-raios.
O modo como percebemos o trânsito ao redor também é diferente, como muito bem apontou o meu amigo, parece que todos os carros ao redor cresceram e ficaram mais altos — um Cruze do modelo anterior parece uma BMW X6 perto do Miata — todas as molduras inferiores das janelas dos carros normais parecem estranhamente altas do nosso novo ponto de visão, carros médios viram suves. Uma Kombi, parada do lado, parece uma Muralha da China sobre rodas sob esse novo ponto de vista, só falta a gente botar um chapéu do Mário e fingir que está num kart.
Ainda na cidade, sobre calçamento de paralelepípedo, o Miata mostra toda a (pouca) complacência da sua suspensão, mesmo com pneus novos e macios, ele sente cada imperfeição do piso, os barulhos começam a surgir dos acabamentos, dos suportes da capota e das portas, algo que se espera num carro com 29 anos de idade, que ainda tem o “defeito” de ser conversível, o que potencializa os ruídos parasitários. É preciso diminuir a velocidade e andar em modo desfile, exibição bem-vinda aliás, como o carrinho é bonito e cheio de carisma — praticamente um Labrador sobre rodas — todas as pessoas que o olham abrem um sorriso; levantar os faróis escamoteáveis então, é pura covardia, querem quase pegá-lo no colo…
Mas não é o modo fofinho que a gente quer experimentar nele, vamos ver se ele morde a estrada com vontade; depois de alguns quilômetros travando conhecimento com o carro, é hora de enfrentar uma estrada sinuosa e de boa pavimentação.
Na estrada, andando de verdade
No momento em que os espaços abrem-se à frente, vamos poder exigir mais do motor que logo demonstra personalidade esportiva e grande vontade e facilidade em girar alto. Como todo bom 16v dos anos noventa, ele “entra nos comandos” aí pelos 4.000 giros e ganha ímpeto e energia quase inesperados para um motor pequeno e aspirado lá de 1991. Com 1,6 litro de cilindrada, ele gera 116 cv, potência parecida com os motores dois litros nacionais da mesma época (Monza 500 E.F.), que precisavam contar com a “galática” injeção eletrônica para gerar a mesma cifra.
O torque não chega a 14 m·kgf, e está situado em rotações expressivas, indicando um motor agudo e que só vai ser “tratável” em altos giros. Mas não é bem assim que acontece, manobras a baixíssimas velocidades e complicadas como dar ré numa ladeira bem inclinada, são feitas descomplicadamente, basta tirar o pé da embreagem e dar um mínimo de motor que ele se desloca facilmente — seu baixo peso, com certeza ajuda muito — em médios giros ele entrega movimento com facilidade e fluidez, ganhando acento esportivo à medida que se estica mais o motor. É civilizado para passear, não decepciona, apenas não te prega no banco como os onipresentes turbos atuais.
E quanto mais vamos explorando o carro, aumentando o ritmo gradativamente, mais passamos a nos entender com a caixa de marchas. O óleo esquenta e as passagens de marcha começam a ficar mais rápidas e fáceis, como se o carro entendesse os propósitos do seu condutor, a pedaleira — sinto em dizer — não é infalível, o punta-tacco não é muito intuitivo, às vezes apenas a lateral do calçado consegue acionar o acelerador, mas acredito que com um pouco mais de prática e quilometragem, esse processo possa melhorar bastante.
Em linha reta ele não impressiona, mas nunca poderá ser chamado de lerdo, já que até longas subidas são vencidas com muita facilidade, mas é nas curvas que a gente vai aprendendo a entender a fama do Mazda Miata. O volante parece um pouco morto no centro, com certa relutância em atender os comandos imediatos do motorista, mas devemos lembrar novamente que o projeto/mecanismo têm mais de 30 anos, não têm como comparar com os modernos sistemas de assistência elétrica. Mas vencida essa hesitação inicial, a gente percebe que a direção é competente o suficiente para direcionar a frente do carro para dentro das curvas e o resto do conjunto faz o resto. A carroceria rola pouco, e como estamos sentados lá embaixo e muito perto do eixo traseiro, a confiança e a vontade de andar cada vez mais rápido vai aflorando de modo inevitável.
As curvas são contornadas a velocidades cada vez maiores, a paisagem vai passando rapidamente, e sentimos que estamos nos aproximando das capacidades reais do pequeno conversível. Quando a temperatura do motorista e do carro começam a subir de verdade, chega a hora do Miata realmente premiar o seu condutor. E é nesse ponto que ele passa do flerte de deixar o eixo traseiro escapar para a realidade. Vamos agora imaginar o eterno clichê do kart, mas agora aplicado acertadamente em um carro de tração traseira, e não num Ka XR…(perdoem o chiste).
Mezzo-powerslide? Sim, nós podemos!
Você vem quente e reduz para segunda — entra naquela curva fechada com vontade — a frente entra rápido e fica pregada no contorno sem escorregar, pé no porão e subitamente o volante perde peso, a traseira começa a sair rápido; contudo, a correção — como no kart — é feita num movimento igualmente ligeiro, sem escândalo ou drama, com o carro não perdendo tempo e nem te deixando numa situação difícil. É tudo muito natural e linear, o pneu do lado interno da curva protesta um pouco, mas logo o carro toma compostura e segue adiante, até porque não existe potência para manter a derrapada: ou ele corrige ou roda, não é um C63 que a gente vê nos vídeos de YouTube.
Por duas vezes, espetada a terceira marcha e em velocidade maior de curva, ele quis escapar do mesmo jeito: a frente querendo apontar para a valeta e não para a estrada, e de novo bastou girar rápido as duas mãos no volante para o lado contrário, com menos amplitude dessa vez, fazendo o carro voltar para a trajetória planejada com muita facilidade, mesmo com o condutor (no caso eu) não sendo especialista em direção esportiva.
Imaginem agora que eu estava com o dono do carro ao lado o tempo todo; silêncio nervoso? Alerta meio constrangido pelos abusos? Que nada! Apenas muitas risadas dos dois doentes por carro, totalmente cientes das capacidades do Miata em tirar tudo de letra; dinâmica esportiva para qualquer um, as benesses da tração traseira num pacote entusiasta, seguro e de fácil acesso.
Esse tipo de acessibilidade, contudo, vem apenas sublinhar o fato de que o roadster preferencialmente gosta e pede por motoristas dedicados; quanto mais você dirige o carro, mais você desejar se aplicar ao volante, mais quer caprichar no uso do câmbio e na tomada correta de todas as tangências da estrada…o tempo todo!
Mal você percebe a falta de teto sobre a cabeça, a visibilidade impecável e iluminada para todos os lados, as trocas de temperatura e dos cheiros do ambiente aberto ao redor; você quer apenas dirigir melhor a cada segundo, fundir-se com o carro e não largá-lo nunca mais. Dirigir um Porsche cabriolet deve ser algo parecido nesse quesito.
Logo começa a perceber desníveis e buracos a “quilômetros” de distância, diminui a velocidade e escolhe o caminho de pavimento mais perfeito, para evitar qualquer dano ao automóvel, mesmo que isso pareça uma frescura até para o próprio dono dele, rindo de você do banco do passageiro.
Mas quando você finalmente contorna os retalhos do asfalto e pisa de novo em chão decente, mais uma vez vai esticar o motor até os 7 mil giros só para ouvir ele gritar pleno e feliz; passa a dirigir apenas de ouvido, com uma ou outra olhada fugaz no painel de instrumentos, e acreditem: nunca para verificar o velocímetro, nunca mesmo, ele vira um artefato quase que completamente irrelevante, é o conta-giros e olhe lá.
Se você é um motorista relaxado (mas que aprecia guiar), o Miata vai te tornar um motorista melhor, e se você for um condutor bem dedicado, o pequeno japonês vai te transformar em mais um fã. Andando devagar ou rápido ele não abre concessões, ele entrega uma experiência rica e divertida apesar de ter nascido barato e simples — se bancar o displicente com ele, irá apenas perceber características menos desejáveis para os motoristas comuns (gente cinza), como câmbio exigente e suspensão dura. E ele é muito mais do que isso ou de uma carinha bonita, vá por mim! Entenda o carro e seja mais um vidrado nesse best seller japonês, é aquele tipo de experiência que vale a pena.
Vale dizer também que não é uma experiência particularmente cara, naturalmente que o preço vai subir cada vez mais, mas não falo apenas no momento da aquisição. O carro que eu rodei acumulava importantes 98 mil milhas no hodômetro, quase 160 mil quilômetros num carro essencialmente recreativo, de direção lúdica. E mesmo assim em momento algum acusou a idade ou a quilometragem em uso bem intenso, apenas no paralelepípedo rude por conta principalmente das suas características construtivas. Segundo o Yuri, o carrinho é um tanque de guerra e nunca apresentou problemas sérios na manutenção, a eletrônica é enxuta e o sistema elétrico sempre funcionou muitíssimo bem — mesmo os acabamentos não são dor de cabeça.
Ou seja, o Miata faz uma homenagem aos britânicos do passado louvando as principais qualidades destes — direção divertida e beleza — mas ignorando totalmente os famosos defeitos elétricos ou porventura mecânicos. Que pacote, hein? No conjunto, um agregado de qualidades que torna qualquer número de potência, velocidade final e aceleração, reles dado secundário. O número importante aqui, é aquele que será registrado no hodômetro do teu coração: o número de alegrias por quilômetro rodado.
“Fórmula Finesse”
Bento Gonçalves, RS
FICHA TÉCNICA MAZDA MIATA | |
MOTOR | |
Designação | Mazda B6-ZESeries |
Descrição | 4 cil. em linha, dianteiro longitudinal, bloco de ferro fundido, cabeçote de alumínio, duplo comando de válvulas, acionamento por correia dentada, 4 válvulas por cilindro, injeção no duto Bosch L-Jetronic, gasolina |
Cilindrada (cm³) | 1.598 |
Diâmetro x curso (mm) | 78 x 83,6 |
Taxa de compressão (:1) | 9,4 |
Potência (cv/rpm) | 118 / 6.500 |
Torque máximo (m·kgf/rpm) | 13,9 / 5.500 |
TRANSMISSÃO | |
Câmbio | Manual de 5 marchas e ré, todas sincronizadas, tração traseira |
Relações das marchas (:1) | 1ª 3,136; 2ª 1,888; 3ª 1,330; 4ª 1,000 (direta); 5ª 0,814:1;ré 3,758 |
Relação de diferencial (:1) | 4,300 |
FREIOS | |
Acionamento | Hidráulico, servoassistido a vácuo |
Dianteiro (Ø mm) | Disco ventilado / 236 |
Traseiro (Ø mm) | Disco / 231 |
SUSPENSÃO | |
Dianteira e traseira | Independente por triângulos superpostos, mola helicoidal e amortecedor hidráulico e barra antirrolagem |
DIREÇÃO | |
Tipo | Pinhão e cremalheira, relação 18:1 |
Diâmetro mínimo de curva (m) | 9,4 |
RODAS E PNEUS | |
Rodas | Liga de alumínio, 5,5J x 20. |
Pneus | 185/60R14H |
PESOS | |
Em ordem de marcha (kg) | 949 |
Distribuição de peso dianteira/traseira (%) | 52 / 48 |
CARROCERIA | |
Tipo | Monobloco em aço, capô de alumínio, roadster, 2 portas, 2 lugares, subchassi dianteiro e traseiro |
DIMENSÕES EXTERNAS0 (mm) | |
Comprimento | 3.947 |
Largura sem espelhos | 1.675 |
Altura | 1.224 |
Distância entre eixos | 2.265 |
Bitola dianteira/traseira | 1.410 / 1.427 |
AERODINÂMICA | |
Coeficiente de arrasto (Cx) | 0,380 |
Área frontal calculada | 1,700 |
Área frontal corrigida | 0,647 |
CAPACIDADES (L) | |
Porta-malas | 135 |
Tanque de combustível | 45 |
DESEMPENHO | |
Velocidade máxima (km/h) | 198 |
Aceleração 0-100 km/h (a) | 9,2 |
CONSUMO DE COMBUSTÍVEL (EPA) | |
Médio (km/l) | 10,3 |
CÁLCULOS DE CÂMBIO | |
v/1000 em 5ª (km/h) | 30,2 |
Rotação do motor a 120 km/h em 5ª (rpm) | 3.970 |
Rotação do motor à vel. máxima em 5ª (rpm) | 6.550 |
Alcance nas marchas a 5.5000 rpm (km/h) | 1ª 51; 2ª 85; 3ª 120; 4ª 160, 5ª velocidade máxima |