A história de sucesso no automobilismo da Alfa Romeo é quase centenária. Desde o começo do século XX que os italianos sabem como fazer um bom carro que não deixa nada a desejar se comparado com as grandes marcas do mundo todo. E mais, ainda fazem com estilo. E que estilo.
Desde os tempos das corridas de Grand Prix nos anos 30, antes da criação da Fórmula 1 e quando Enzo Ferrari era responsável pela equipe, a Alfa era um dos nomes fortes, se não o mais forte da Itália.
Diversos modelos fizeram a fama da fábrica de Milão, como os incríveis 8C dos tempos de Ferrari, os lindos Giulias e GTAs, os protótipos Tipo 33, até os modelos próprios da F-1 dos anos 70 e 80. Cada carro teve sua história, cada um teve suas vitórias marcantes, levando o nome da Alfa vivo no automobilismo.
Um dos modelos mais bem sucedidos da Alfa nas pistas em campeonatos de grandes proporções, infelizmente também foi um dos últimos. Em 1993, a Alfa enfrentou de peito aberto os mais rápidos carros de turismo do mundo, na terra de seus adversários, e ainda assim, foi vitorioso. Estamos falando do modelo 155 da DTM.
O sucesso do 155 no Campeonato Alemão de Turismo (na época, DTM – Deutsche Tourenwagen Meisterschaft) se dá principalmente a alguns protagonistas da história da Alfa. Foram nomes que marcaram a época na Alfa, desafiaram os maiores nomes do automobilismo alemão e não apenas deram um título à Alfa Romeo, mas trouxeram o nome da empresa de volta ao mercado germânico de carros de passeio.
A ALFA CORSE
A equipe oficial de competições da Alfa Romeo, por muito anos, foi a Autodelta. Criada no começo dos anos 60 por Carlo Chiti, Lodovico Chizzola e seu irmão Gianni Chizzola, que tiveram passagens pela Ferrari e pela própria Alfa Romeo. Chiti trabalhou em projetos como do Alfa Romeo 6C e do Ferrari 246 F-1. Lodovico era um representante da Alfa com concessionárias na Itália e Gianni era engenheiro, mas este ficou por pouco tempo.
A proposta da Autodelta era prestar serviços de engenharia e construção de carros de corrida para a Alfa Romeo. Logo ela foi incorporada pela Alfa e tornou-se uma divisão dentro a empresa. Ao longos dos anos seguintes de sua fundação, a Autodelta criou modelos como o Alfa Romeo TZ e TZ2, os GTAs derivados do Giulia e posteriormente o protótipo Alfa Romeo Tipo 33 e seus motores V-8 e boxer-12, que ainda foram usados nos Brabhams projetados por Gordon Murray para a F-1.
Com o tempo e as mudanças da diretoria da Alfa, os investimentos em competições diminuíram até que a Autodelta fosse encerrada. Em 1986, a Fiat adquiriu a Alfa e viu grande oportunidade em trazer de volta o tradicional nome da fábrica de Milão nas competições, e por consequência, no mercado de carros de passeio.
A antiga estrutura da Autodelta foi recuperada e batizada de Alfa Corse, que no italiano, corse significa corrida no plural. Este nome vinha dos anos 30, das corridas de Grand Prix antes da II Guerra, quando a Alfa era uma potência e nomes como Giuseppe Farina e Achille Varzi eram referências de grandes pilotos italianos.
UM TIME DE SUCESSO
Para comandar a nova equipe oficial da Alfa Romeo, o então líder executivo da Fiat, Paolo Cantarella, escalou o engenheiro e ex-piloto italiano Giorgio Pianta. O histórico do novo responsável pela divisão esportiva da Alfa era totalmente ligado aos carros do grupo, com ralis disputados com Fiat Abarths e Lancias Stratos, além de provas de turismo com Alfas GTA.
Pianta trabalhou no desenvolvimento de carros como o Lancia Delta S4 e o Fiat Abarth 131, e ajudou no desenvolvimento dos Beta Montecarlo Turbo, o qual ele também pilotou em Le Mans.
A tarefa passada para Pianta era objetiva e direta: desenvolver um novo carro de corrida e uma equipe vencedora com o Alfa Romeo 155 para o DTM. Não haveria margem para erros. A equipe tinha que ser vitoriosa, caso contrário, o programa seria cortado. Simples assim.
Com uma missão destas, sem pressão nenhuma por parte da chefia, sabia que teria que trabalhar com os melhores em cada área, e assim escalou um time de primeira. Se não fosse assim, as chances de sucesso e continuidade do programa eram pequenas.
Claudio Chierici foi chamado para ser o diretor técnico da Alfa Corse, responsável pelo gerenciamento dos projetos da equipe e supervisionar o desenvolvimento dos carros, respondendo para Pianta e eventualmente diretamente para Paolo Cantarella, cujo objetivo era ter nada menos que vitórias como resultado do investimento da Fiat na empreitada.
Para criar a base do novo DTM da Alfa, Pianta e Chiereci convidaram seu ex-parceiro de projetos na Lancia, o engenheiro Sergio Limone. Responsável por projetos de sucesso com o magnífico Lancia 037 e o Delta de rali, antes também trabalhando em projetos da Abarth como o 131 de corrida, Limone tinha bagagem suficiente para saber o que teria que ser feito para ter um projeto competitivo logo de cara.
Estudando o campeonato alemão e seus concorrentes, principalmente a Mercedes-Benz, esta a força principal da categoria, era sabido que o Alfa teria que nascer com tudo certo, ou como o chefão já havia indicado, era sucesso ou nada.
Para trabalhar no gerenciamento da equipe e no projeto junto com Limone, Giorgio Pianta escalou Antonio Tomaini. Com passagem pela Fórmula 1 na equipe Ferrari, lidando com nomes como Gilles Villeneuve, Niki Lauda, Mario Andretti e Clay Regazzoni, fora toda a experiência que teve nos tempos de Abarth, Osella e Moretti, o italiano Tomaini tinha mais do que experiência em competições, tanto como líder de equipe, gerenciando os pilotos, e também como projetista.
Junto com Limone, Tomaini teve grande participação nas definições estratégicas da equipe e nos detalhes técnicos do carro.
Para a criação de um dos principais elementos do projeto, Pianta contatou o engenheiro Pino D’Agostino, experiente projetista de motores. O projeto para o carro de DTM era muito específico, o regulamento ao mesmo tempo que permitia designs arrojados, limitava a base do motor a modelos existentes em produção.
No seu currículo, Pino teve alguns motores de respeito projetados . Engenheiro do grupo Fiat desde 1979, um deles foi o V-10 de competição do projeto 164 Procar, que no passado contamos aqui no AE e ainda voltaremos a falar sobre este incrível projeto. Mais adiante na história, Pino seria responsável pelos motores V-10 da Ferrari na F-1 na era Schumacher.
A dupla de pilotos principais do 155 correriam com as cores da Alfa Corse. Dois nomes em alta na Itália foram convidados e participar, mas na verdade já eram “da casa”. Alessandro Nannini e Nicola Larini, jovens mas experientes candidatos a defender a Itália no mar alemão de concorrentes.
Nannini havia passado pela Fórmula 1, de 1986 a 1990, correndo pela Minardi e pela Benetton, onde conquistou alguns pódios e uma vitória. Nannini era conhecido por ter corrido pela equipe Lancia em Le Mans, cujo carro era projeto teve o dedo de Limone.
Larini, um dos principais nomes italianos no automobilismo da época, com experiência na F-1 de 1987 a 1992, inclusive com algumas corridas disputadas pela Ferrari e grande destaque nas provas de turismo, seria um excelente reforço para a equipe. Larini chegou a pilotar um Alfa 75 Turbo no fim dos anos 80 no campeonato mundial de turismo.
Antes da criação do modelo para o DTM, a Alfa Corse trabalhou em um projeto preliminar chamado 155 GTA, o qual Larini pilotou com grande êxito em 1992 ao lado de Nannini.
O ALFA ROMEO 155 GTA
Antes de entrar de cabeça no DTM, a equipe trabalhou em um projeto inicial para desenvolver conceitos e acertar a equipe, que foi o 155 GTA para competir no Campeonato de Superturismo italiano em 1992. O carro tinha tração integral e um motor de quatro cilindros turbo beirando os 400 cv.
O GTA atendia a um regulamento diferente do DTM, que era mais parecido com os carros de rua do que carros fabricados especialmente para corrida, como era o caso do 155 DTM. A base para o 155 GTA veio da homologação do carro de rua chamado 155 Q4, que era o Alfa 155 com o sistema de tração similar ao que era usado no Lancia Delta Integrale.
Limone e Tomaini arquitetaram o conjunto mecânico do GTA de forma a manter o equilíbrio do carro o mais possível, uma vez que o motor se mantinha na posição original, dianteiro transversal, e o monobloco do carro tinha que ser igual de um carro de produção, o que normalmente faria dele um carro com mais peso na dianteira.
O sistema de tração integral com diferencial Ferguson tinha o transeixo montado na linha do eixo traseiro, o que equilibra a distribuição de peso no carro de forma mais bem equilibrada. O projeto deste sistema de tração dava uma nova alma ao carro. Os pilotos podiam atacar as curvas de outra forma, mantendo o controle no acelerador conforme mais tração estava disponível.
Além do motor com boa potência e a tração nas quatro rodas, o GTA tinha freios com ABS, outra novidade para os pilotos. Pensando no conforto dos pilotos que teriam que guiar esses carros no calor do verão europeu, e ainda com uma enorme geração de calor por conta do turbocompressor (em carros de corrida geralmente não há barreiras térmicas para isolar o calor do cofre do motor do habitáculo), os GTA tinham ar-condicionado.
Mesmo com grande parte do trabalho no GTA ter sido feito com a Abarth, a Alfa Corse e seu time tinham total controle do projeto e do caminho que iria seguir.
O campeonato de 1992 do Superturismo italiano foi a comprovação do bom trabalho conceitual da equipe. Larini dominou a maioria das provas. Das vinte provas disputadas no ano, com duas corridas em cada evento, ele venceu nove e teve quatro segundos lugares. Os quatro primeiros lugares no campeonato foram da Alfa Romeo, dividido em duas equipes, a Alfa Corse e a Jolly Club. Larini campeão, Giorgio Francia da Jolly foi vice-campeão, Nannini ficou em terceiro e Antonio Tamburini o quarto, todos com o 155 GTA.
Pelo visto o caminho estava certo para o ano seguinte no DTM.
O 155 V-6 Ti DTM DE 1993
Muito do que foi aprendido no GTA foi aplicado no DTM de 1993, especialmente na interação entre carro, equipe e pilotos. A dupla Larini e Nannini era ótima, trabalhavam muito bem com seus times de mecânicos, que por sua vez, seguiam à risca os comandos de Claudio Chierici.
Tecnicamente falando, o DTM era um mundo à parte. Os motores estavam mais próximos de um Fórmula 1 que de um carro de turismo. O sistema de tração integral permitido poderia ser ainda mais sofisticado que no 155 GTA, e não havia obrigação do carro ser feito totalmente em um monobloco de carro de rua.
O regulamento do campeonato alemão ditava que o motor usado no modelo de corrida deveria ser derivado de um motor de produção em massa da marca. Por este princípio, deveria também ser um V-6, e com mesmo ângulo de abertura entre as bancadas e ter o mesmo espaçamento de centro a centro dos cilindros.
Inicialmente o motor disponível da Alfa para ser usado como base era o tradicional Busso, usado desde o fim dos anos 70 em modelos conhecidos no Brasil como o 164, e os mais antigos Alfa Romeo 75 e 90. Busso era o nome do engenheiro criador do motor, Giuseppe Busso. Com 60° de abertura entre as bancadas, era o que havia disponível no portfólio italiano. Pino gostaria que o motor fosse de 90°, mas tecnicamente não havia esta opção. O único motor de 90° foi o V-8 fabricado para o Alfa Montreal, já descontinuado, mas não atendia os requisitos mesmo sendo modificado para V-6.
Se Pino D’Agostino pretendia ter um V-6 de 90°, era porque realmente seria a melhor opção. O Busso era uma boa base, mas ainda assim o resultado seria um motor mais pesado do que D’Agostino gostaria, por conta da distância entre os cilindros, limitada pelo bloco de produção. Duas temporadas depois, Pino conseguiria seu tão esperado V-6 a 90°, mas esta é outra história.
Seguindo as normas do DTM, com limite de cilindrada de 2,5litros, o motor Alfa pouco tinha a ver com qualquer unidade que a marca fez até então para um carro de passeio. Lubrificação por cárter seco, bloco e cabeçotes de alumínio, quatro válvulas por cilindro (com uso de materiais nobres como titânio), baixo peso e pouca inércia. Capaz de girar a mais de 11.000 rpm, era possível chegar a 425 cv. O controle eletrônico do motor tinha a mesma tecnologia do sistema usado na equipe Ferrari da F-1, fabricado pela Marelli.
A criação do 155 DTM teve um fator primordial que ninguém havia pensando antes. O campeonato é organizado por uma entidade que tinha ligações diretas com a Mercedes, a principal equipe da categoria. Diga-se de passagem, o chefão da categoria era um dos donos da AMG, a divisão preparadora da Mercedes. Desta forma, as regras eram criadas mais ou menos direcionadas aos interesses dos competidores, em especial, da Mercedes.
Outro problema que enfrentaram é que o regulamento era escrito em alemão. Pode parecer uma coisa simples, mas não é. Claudio Chierici era o responsável por negociar as regras técnicas com a organização do campeonato, e a tradução do livro de regras de alemão para italiano dava pequenas margens à interpretação da Alfa, que no final das contas não era o que os alemães diziam.
Muitas coisas que Chierici e Limone fizeram no projeto tiveram que ser revertidas pois na interpretação dos alemães, estavan fora do regulamento. Mesmo assim, conseguiram concluir o carro a tempo para começar o ano de 1993. Se por um lado tiveram que mudar alguns planos, por outro, conseguiram passar com algumas soluções bem criativas.
Um bom exemplo é a famosa saída de escape apontada para cima. Limone conta que foram feitas assim para que o som dos escapes não rebatesse diretamente no chão, amplificando o efeito do ruído gerado pelo carro, que era limitado por regulamento. Desta forma, o som era lançado para cima e na medição de ruído conseguia cumprir o limite determinado, mesmo sendo mais alto que os demais carros do grid. Fora isso, os gases de escapamentoatuavam em conjunto com o extrator de ar e a asa traseira, ajudando na geração de downforce.
A liberdade que existia de criação, mesmo com a barreira do idioma em interpretar o regulamento, permitia que a Alfa Corse trabalhasse em todas as ideias possíveis. Sistemas eletrônicos eram permitidos, como o ABS já falado, mas também controle de tração e sistemas de gerenciamento eletrônico dos diferenciais. Limone sugeriu não utilizar o ABS inicialmente, pois o mesmo efeito eles conseguiriam pelo controle eletrônico dos diferenciais. Na aerodinâmica, era permitida a utilização de vários recursos, como extratores e direcionadores de fluxo de ar, contanto que ficassem abaixo da linha de centro das rodas. Acima, apenas a asa traseira.
A suspensão, por regulamento, tinha que seguir o projeto de algum carro de produção da marca, no caso, o conjunto McPherson similar ao do Alfa 164 foi usado. As peças poderiam ser alteradas e as fixações movimentadas, mas o conceito deveria ser o mesmo.
Com a parte técnica definida e dentro das regras germânicas, a primeira etapa do campeonato mostraria o quanto a Alfa Corse teria alcançado dentro de um mundo dominado pelos nativos. Larini e Nannini correriam pela Alfa Corse. Christian Danner e Giorgio Francia correriam com o 155 pela equipe Schübel Engineering, particular. A corrida inaugural foi em Zolder, na Bélgica, e o trabalho de todos foi recompensado.
Larini foi pole position e venceu as duas etapas (as provas em cada fim de semana eram duplas, com duas baterias) com Danner em segundo lugar. Nannini terminou a segunda bateria em terceiro lugar. Os alemães da Mercedes, BMW e Opel nada puderam fazer a não ser tentar acompanhar o ritmo da Alfa Corse, claramente mais consistente.
Foi uma surpresa para a Mercedes, que não esperava um desempenho tão bom logo na primeira corrida dos italianos. E esta surpresa se repetiu ao longo das demais corridas. Até mesmo na prova em Nürburgring, no circuito antigo de mais de 22 km, a Alfa dominou. Larini nunca havia corrido lá, treinou algumas voltas com um carro de passeio alugado e nada mais, e mesmo assim, fez a pole e venceu as duas baterias.
Larini foi campeão com uma boa margem sobre Roland Asch, piloto da Mercedes que foi vice-campeão, e Bernd Schneider, um dos principais nomes do turismo alemão. Nannini terminou o campeonato em oitavo lugar, pois não teve a mesma constância de Larini, mesmo com duas vitórias.
Não apenas a Alfa Corse dominou os alemães na sua própria categoria, mas conseguiu reverter a imagem local da Alfa de ser um fabricante de carros ultrapassados e que enferrujavam. Os carros de passeio tiveram um aumento significativo nas vendas na Alemanha, algo por volta de 40.000 carros a mais que em 1992. Para o mercado europeu, um aumento significativo, ainda mais com a forte concorrência alemã.
O 155 V-6 Ti foi o resultado de um trabalho muito bem feito, elaborado por um time competente e determinado, seguindo a risca a ordem do chefe: vencer ou vencer.
MB
P.S.: Em breve, aqui no AE, a história do Opel Calibra de DTM.