Desde 1950 — cinco anos após o fim da II Guerra Mundial — a Volkswagen (Carros de Passageiros) exporta veículos desmontados em peças individuais — CKD, sigla em inglês de completely knocked down, completamente desmontado — para serem montados nos países de destino. Como em muitos desses as barreiras alfandegárias dificultavam ou até impediam a importação de veículos prontos, a solução foi importar os veículos na forma de CKD, que agregavam mão de obra local e algumas peças locais, e em alguns casos originaram fabricações locais, como foi o caso do Brasil.
Era uma vez em Wolfsburg 1950
Sim, o ano era 1950, mas o que isto quer dizer? Para aclimatar o nosso foco vamos ver como a fábrica em Wolfsburg se encontrava naquela época para que seja possível aquilatar o grau de pioneirismo envolvido nesta história.
A fábrica já tinha sido parcialmente recuperada dos pesados danos causados pelos bombardeios dos aliados. No grande gramado à direita da majestosa avenida sul que se estende por toda a extensão fábrica e chega à usina termelétrica (aqui se vê somente um pouco de sua fumaça ao fundo, bem no lado direito superior da foto), se ainda é possível ver as marcas das crateras das bombas (círculos mais claros na grama); imaginem os estragos causados pelas que acertaram o alvo.
A linha de produção do Fusca era bastante simples e demandava um grande esforço físico dos trabalhadores da época. Neste detalhe vemos a montagem de Fuscas para o consumo interno; basta observar que os para-choques não são vincados como os do tipo exportação que pode ser visto na foto de abertura. Outro detalhe interessante na foto abaixo é a proteção para o braço esquerdo do operário que aparece na foto. Naquele tempo ainda não havia o desenvolvimento ou a obrigatoriedade de equipamentos de proteção individual (EPI) e muitos faziam as suas próprias proteções.
Um momento de celebração foi no dia 4 de março de 1950, quando um bônus anual de até 120 marcos é introduzido para os funcionários para marcar a ocasião do 100.000º Volkswagen fabricado desde o fim da guerra:
A linha de produção do Fusca vista de outro ângulo. O Fusca se torna um best-seller: os 81.979 sedãs produzidos em 1950 representam um aumento fenomenal de 96% em comparação com a produção do ano anterior. No mesmo período a força de trabalho cresceu 46%, para 14.966 funcionários.
Quatro dias depois da quebra da barreira dos 100 mil Fuscas produzidos no pós-guerra, surge um veículo que também acabaria conquistando o mundo: o Transporter, lançado no dia 8 de março de 1950 em versões furgão e Kombi. O veículo foi utilizado para o transporte de mercadorias e como mini-ônibus, como veículo dos bombeiros, como viatura de polícia, carro dos correios e, posteriormente, também motorhome. O veículo de três quartos de tonelada adicionou uma segunda linha de modelos ao portfólio da Volkswagen que, com seu espaço de carga de 4,6 metros cúbicos, atraiu principalmente usuários empresariais. Embora o Transporter adotasse algumas características técnicas do sedã Volkswagen, como o motor traseiro arrefecido a ar de 1.131 cm³ e 25 cv, sua construção era monobloco (separada, no Fusca) com a estrutura inferior extremamente reforçada.
A saga dos 70 anos de CKD na Alemanha: Fusca o pioneiro
Em 11 de outubro, os primeiros dois kits de Fusca CKD foram enviados para a Motor Distribution Limited em Dublin, na Irlanda, que montaria 48 veículos até o final daquele ano. E é aqui que deixamos a incursão em Wolfsburg dos anos 1950 para continuar a saga dos 70 anos de CKD na Alemanha, iniciada em Wolfsburg.
De princípio, o objetivo dos CKDs era abrir novos mercados. Hoje o CKD também garante o abastecimento da rede de produção global da Volkswagen e constitui um fator-chave nas vendas. Até agora cerca de 200 milhões de veículos foram exportados para países em todo o mundo. Cerca de 3 milhões de veículos ou peças adicionais são adicionados a cada ano. E como vimos, o primeiro veículo a ser montado com peças individuais fornecidas em uma caixa foi o lendário Fusca.
Esta antológica foto mostra os primórdios da embalagem de CKD de Fusca, na qual peças para vários carros eram acondicionadas juntas numa mesma caixa e todos os espaços vazios eram aproveitados para acomodar peças:
Com a incrível e reveladora foto acima fica claro que a montagem dos CKDs do Fusca era praticamente uma fabricação sem a etapa da estampagem das partes da carroceria, que ia em caixotes. Peças tinham que ser justapostas e soldadas com o auxílio de gabaritos (como em Wolfsburg) para manter a qualidade da forma final do produto. Linhas de montagem eram estabelecidas e os procedimentos da fábrica de Wolfsburg replicados, talvez com meios mais rudimentares, mas seguindo um ritual similar.
Depois que os dois primeiros Fuscas em CKD foram enviados para a Irlanda, seguiram-se entregas para a África do Sul, Brasil e México. Principalmente na América Latina, a montagem dos veículos CKD foi a base para as grandes fabricantes que operam aqui, como a Volkswagen do Brasil ou a Volkswagen do México. As montagens de CKDs se expandiram pelo mundo como mostra o mapa abaixo compilado antes de 1993, pois ainda não mostra a volta do Fusca no Brasil nesse ano após ter saído de produção em 1986:
Wolfsburg, o centro nervoso
Voltando a uma visão global numa época pós-Fusca, hoje são 27 locais de montagem em 10 países. A maior fábrica de montagem de CKD está localizada na África do Sul. Por exemplo, o Polo para todos os mercados com volante à direita é montado lá. Outro best-seller de exportação é o Tiguan, que também é fabricado com kits CKD na Rússia e no México. Outras fábricas estão localizadas aqui, nos EUA, China, Argentina, Índia, Malásia e Indonésia.
Hoje em dia funciona assim: todos os pedidos recebidos de fábricas no exterior são coletados centralmente em Wolfsburg. A equipe de gestão de abastecimento garante que as peças do veículo estão disponíveis nas fábricas e no fornecedores europeus. As peças são então agrupadas e embaladas em um dos oito centros de distribuição, carregadas em contêineres e enviadas por via marítima, ferroviária ou aérea para países no além-mar e para a Rússia, onde são montadas.
Somente nos centros de distribuição em Wolfsburg, Salzgitter e Kassel, um total de 660 funcionários trabalham nesta área. Outros locais são Duisburg, Emden, Fallersleben, Wilhelmshaven todos na Alemanha e Martorell na Espanha. Esses oito centros de embalagem enviam um total de cerca de 1,7 milhão de metros cúbicos de mercadorias a cada ano, o que corresponde a cerca de 25.000 contêineres marítimos. A partir do recebimento de um pedido, leva cerca de oito semanas para que o veículo seja entregue no país de destino. Ao todo, cerca de 90 projetos de veículos diferentes de fábricas no além-mar são fornecidos via CKD da Europa.
De embalado à mão para a alta tecnologia
Antes, como vimos, as peças eram embaladas em caixas manualmente. Hoje em dia, sistemas de alta tecnologia são usados. Sistemas robóticos altamente avançados fornecem suporte para carregar os componentes nos centros de distribuição. Eles são equipados com um acessório especial de garra que permite agarrar peças de veículos de todas as formas e tamanhos. Isso alivia a carga da equipe, especialmente ao embalar peças pesadas de veículos. Os bots (sistemas computadorizados automáticos) que usam inteligência artificial também simplificam as comunicações por e-mail com os fornecedores. Eles leem os e-mails e reagem de forma independente.
Por exemplo, se um fornecedor respondendo a uma consulta indicar que um lote será entregue em várias remessas, essa informação será detectada automaticamente pelo processamento de linguagem natural (PNL) e transmitida diretamente ao sistema de gerenciamento de produção SAP (sistema integrado de gerenciamento integral da fabricação ao fornecimento final).
Burkhard Hüsken, chefe do setor de CKD da marca Volkswagen Carros de Passageiros, diz: “Costumávamos precisar de apenas um ou dois faxes por semana para coordenação com as fábricas no exterior. Hoje em dia, trabalhamos com nossas fábricas em tempo real e gerenciamos cerca de 90.000 números de peça para remessa mundial. As tarefas de nossos funcionários mudaram fundamentalmente. Eles não são mais simplesmente embaladores de caixas, mas agora especialistas em dados de logística.”
Esta matéria tratou do fornecimento de CKDs pela Volkswagen alemã, mas há uma outra parte da história que se desenvolveu aqui no Brasil, que passou de receptor a fornecedor de CKDs para vários países da América Latina e África, por exemplo. Uma história que poderá aparecer em uma matéria no futuro aqui em nossa coluna “Falando de Fusca & Afins”.
AG
A base para este trabalho foi o release de 17/12/2020 do setor de imprensa da VAG que foi ampliado e adaptado. Também foi consultado o livro “Volkswagen History Chronicle 1950-1960”. As fontes das ilustrações estão indicadas no corpo da matéria
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