Minha cabeça é muito matemática para decidir apenas pelas emoções. Juntando o racional com o emocional, mesmo sem conseguir funcionar a picapinha, tinha quase decidido que iria comprar. Era um bom negócio pelo potencial da coitada em relação ao preço de compra, que sempre é a menor despesa quando se vai restaurar em padrão que permita furar madrugadas pelas estradas com o pé embaixo, sem medo de quebras.
Voltei no dia seguinte, para encontrar um vendedor mais desiludido com a Corsinha 1998: “Você acredita que a bateria não pegou carga?”, dizia ele com uma bateria nova na mão e uma garrafa pet com gasolina. (Claro, as peças hoje não têm muita qualidade. Onde já se viu uma bateria parada há quatro anos não pegar carga?)
Melhor para mim, que iria ganhar uma bateria novinha (se você não está entendendo nada, clique AQUI para ler a primeira parte).
Bateria colocada, gasolina no tanque e vamos dar a partida. Nunca dou a partida em carros que estou vendo para comprar. Deixo o vendedor virar a chave e fico com o focinho enterrado no motor. Os poucos segundos que ele vai funcionar sem lubrificação são preciosos para analisar seu estado. Depois de duas ou três tentativas, a Corsinha roncou. Antes que o óleo ganhasse pressão, houve uma leve baixada do espírito do Olodum baiano, uma leve batucada na parte de baixo do motor, denunciando folgas entre o virabrequim e bielas. Fala mizifio…E o motor falou.
Quando o lubrificante (sujo, oxidado e mais do que vencido) ganhou pressão, o barulho desapareceu e o motorzinho ficou tranquilo em marcha-lenta. Passei o dedo no escape, que estava seco. Não estava queimando óleo.
O vendedor acelerou e o motorzinho fez póf, morreu. Só funcionava em marcha-lenta. O vendedor fazia caras e bocas, mais desiludido com o vexame. Ótimo, o preço já está baixando sem que eu abrisse a boca.
BELO POTENCIAL
Examinando o carrinho com cuidado, se destacava a carroceria lisa com marcas apenas de uma batidinha na traseira, lado do motorista, recuperada por um pintor meio ruim de revolver (de pintura, claro). Teto e capô tinham perdido o verniz pelos 22 anos de uso (comprei no final do ano passado), mas a pintura não estava desbotada. Interior em ótimo estado, considerando os pouco mais de 170 mil km rodados (bem baixa quilometragem, menos de 8 mil km anuais).
Destaque para opcionais e acessórios desta versão GL: conta-giros, vidros e travas elétricas, janela traseira corrediça, aerofólio de teto com brake light (3ª de luz de freio, elevada), protetor de caçamba (hoje bem caro e difícil de achar para a Corsinha) e até um par de faróis auxiliares que não auxiliavam muito, mas eram bonitinhos (acabei colocando filme amarelo para dar um charme de luz de neblina). Tinha um radinho que falava e não quero mais que isso.
E os benditos (e caros) frisos dos para-lamas e para-choque traseiros estavam ótimos.
Um vendedor quase desesperado me olhava com cara de interrogação: “essa m…. não acelera, vamos chamar um mecânico”.
“Cara, se só tem marcha-lenta, o problema está resolvido: vou andar em marcha lenta, por aqui é tudo plano”.
Sentei ao volante e ao apertar a embreagem já escutei o que o Renato, meu mecânico iria reclamar: “lá vem embreagem recauchutada”. Claro que veio e desta vez mostro a marca.
O pedal de embreagem tinha só meio curso e estava mais duro que… deixa pra lá.
Rodando só jogando marchas, já que não dava para acelerar, deu para perceber uma suspensão muito boa, só um barulhinho na traseira (eram duas buchas da lâmina de mola única semielíptica (parabólica) em cada roda).
Freios nem precisaram de diagnóstico: não tinha freio. Apertava por uma questão de costume. Não parava mesmo. Mas, era só jogar marcha para baixo e, se necessário, usar o freio de mão.
Voltei e a cara do vendedor merecia uma foto. A famosa cara de nádegas, significando “tira essa encrenca daqui”. Não precisei nem pechinchar: “sabe, o preço que te falei, tira dois contos”.
“OK, mas me explica esse reservatório de direção hidráulica, já que não tem assistência”.
“Arrumei um kit de direção hidráulica do Celta, o mecânico colocou o reservatório e depois disse que não servia na Corsa. Está tudo lá em cima da laje, com um monte de peças que você leva também.”
Oba! Vai ter Cesta de Natal, com direito a licenciamento atrasado de brinde.
Comprei a Corsinha, que parecia respirar aliviada. Ia ver as ruas novamente!
Convoquei meu filho mais velho para tirar a Corsinha do confinamento. Iria ser bom para ele, que é nervosinho, rodar em marcha-lenta. Os quase quatro quilômetros até a oficina do Renato seriam um exercício zen de paciência. Graças ao bom Deus, era tudo plano e descida, e o carrinho não precisaria de guincho.
Além disso, um Tio de cabelos brancos se arrastando pelas ruas em marcha-lenta e sem freios, com um carro também velho, sempre aparece alguém para elogiar: “acelera essa m…, véio, fdp”.
TIREM AS CRIANÇAS DA SALA
Se você é daqueles que leva o Manual do Proprietário na missa ou culto, em lugar da Bíblia, é melhor parar de ler este capitulo de aventura graxenta. Vou afirmar muita coisa que contradiz orientações do fabricante e para mim não tem polêmica. Só discuto com quem, como eu, tem teoria e prática de manutenção por mais de 60 anos. Velhos com unhas pretas de graxa. Quem gosta de polêmica vá discutir política ou os 732 gêneros sexuais que descobriram na ultima década. Algumas orientações do fabricante sinceramente não respeito. Manuais, na minha visão, são feitos pela engenharia e marketing. E o departamento de marketing sempre tem uma visão linda da realidade.
Aiiin, o fabricante testa o carro por milhões de quilômetros, reproduzindo tudo que vai acontecer nas ruas. Ah, é? E esse monte de recall e carros novos pegando fogo não acontece nos testes?
Aiiin, o fabricante acompanha a vida do carro através da rede de concessionários. Ah, é? Quantos carros com mais de 50 mil km você já viu numa revenda autorizada?
Pois bem, a Corsínea chegou à oficina do Renato nas suas próprias pernas, digo rodas, e já estava batizada. Por pura falta de criatividade, copiei a turma que gosta de cães e chama seu pet de cachorríneo.
Mão na graxa, medimos pressão da bomba elétrica de combustível: 1 bar (precisaria de pelo menos 3 bar). Tiramos os bicos injetores e colocamos no equipamento de teste e limpeza.
Aiiin, injetor não precisa de limpeza, é autolimpante. Difícil dar uma resposta educada para isso. Até já vi muito carro novo, com menos de 10 mil km, com bicos travados (abertos) devido à delicada adição de quase 30% de álcool na nossa “gasolina”, ou mesmo devido a combustível adulterado. Aiiin, isso se corrige na revisão e o motor suporta bem esse excesso de combustível. Sim, só que o catalisador recebe combustível liquido e se deteriora. E um catalisador de carro atual custa milhares de reais. Às vezes os injetores precisam de limpeza, às vezes não. Um bom mecânico honesto sabe quando é necessário só pelo funcionamento do motor.
Testamos os injetores da Corsínea, que esqueceram que era um time. Cada um tinha sua opinião: um mandava uma chuva de combustível, outro era pão-duro e jorrava um pouquinho, quando queria.
Enquanto o equipamento limpava os injetores, trocamos a bomba de combustível e limpamos velas. A ideia era rodar melhor para fazer um diagnóstico completo antes de “jogar tudo no chão”, desmontar toda a mecânica e restaurar.
Uma hora depois a Corsínea roncava com gosto. Fui dar uma volta e descobri que era uma picapinha de sorte. Foi produzida em um dia que o pessoal da fábrica estava feliz. O time de um ganhou, o outro saiu com uma garota legal…
Isso non ecxiste. Então me conta por que o fabricante declara a potência máxima com uma variação de 3%, para mais ou para menos, mesmo hoje em dia. Nos anos 1990, essa variação chegava a 5%. Ou seja, pela levantada de frente e cantada de pneus quando se jogava uma segunda marcha com o pé embaixo, a Corsínea saiu com a variação máxima superior, uns 100 cv. Claro que outras saíram na marca oficial, os 95 cv, e algumas azaradas tinham só 90 cv.
Tudo confirmou meu diagnóstico inicia,l mais a descoberta de um pênalti do câmbio: gemia mais que cantora em baile funk. Chorava em ordem decrescente: em primeira parecia uma ambulância, em segunda um pouco menos… em quinta era um gemido até gostoso, quase sensual.
Vamos trocar o óleo. Aiiinn, óleo de câmbio é lifetime, não se troca, eu li no manual. É só olhar o “óleo” velho, gosmento e fedido que escorreu da Corsinha depois de 170 mil km para repensar esta ideia.
Com óleo novo, os gemidos diminuíram uns 30~40%. Vamos colocar aditivo a base de molibdênio.
ADITIVO CONTRA GRITOS E GEMIDOS
Aditivo é tudo enganação! Gente, qualquer generalização é burra. A maioria dos aditivos é realmente ineficaz ou até prejudicial, principalmente os que gastam mais em propaganda do que em pesquisa. O fabricante não recomenda! Oficialmente não, pois lubrificantes “originais” são acordos comerciais. Só que o fabricante testa aditivos e até usa. Seu carrinho 0-km provavelmente não vai dar problema de rolamentos de roda na garantia, por exemplo, pois muitos fabricantes usam graxa com o bendito aditivo a base de molibdênio. Basta não se basear apenas em afirmações oficiais, que saem do departamento de imprensa filtradas pelo marketing, para descobrir com engenheiros amigos que fabricantes de carros testam aditivos em laboratório. O milagroso aditivo alemão à base de molibdênio foi analisado por um grande fabricante que concluiu que realmente preenchia “cáries” em engrenagens e rolamentos, com uma única ressalva: câmbios com sincronizadores gastos, que já estão começando a arranhar marchas vão piorar o engate, arranhando mais. O princípio básico de todo aditivo inclui ser atraído pelas maiores temperaturas, exatamente os locais de maior desgaste. Se o sincronizador (ou “sincronizado”) estiver desgastado, sua temperatura de trabalho é mais elevada, o aditivo adere partículas e o sincronizador tem menos atrito ainda. São anéis que freiam uma engrenagem para que o engate seja suave. Eu já tinha percebido isso na prática quando o uso do aditivo aumentou a arranhada de marchas de câmbios desgastados.
Como o câmbio da Corsínea parecia bem de sincronizadores, dá-lhe molibdênio. Para quem é mais sensível ao volante, quando se engata uma marcha devagar, é possível perceber a freada da engrenagem pelo sincronizador, por uma leve e maior resistência da alavanca de câmbio no começo de seu curso. Câmbio arranhando tem um engate quase sem resistência.
Coloquei o aditivo meio dividido. Por um lado queria que funcionasse por uma questão de custos, que em uma restauração são piores que em reforma de casas. Até sabia que ia resolver, por muitas experiências anteriores.
Por outro lado, até preferia trocar o câmbio e usar um mais longo, de algum outro modelo de Corsa. Pelas contas (o que se confirmou na prática) cruzando a 130 km/h (reais, GPS, não do velocímetro) o motorzinho 1,6 iria gritar a 4.200/4.300 rpm. Preferia menor rotação, ainda mais em um motor de 8 válvulas, com bom torque em baixa rotação. Por que 130 km/h? Rodo mais na Rodovia Castello Branco, em São Paulo, onde o limite é 120 km/h. Segundo as contas do Bob, a tolerância legal permite até 129 km/h sem levar multa. Assim, cruzo normalmente entre 125 e 130 km/h.
Só para adiantar a novela, depois de tudo pronto, com 1.000 km rodados sumiu a cantoria de 3ª, 4ª e 5ª. Com 3.000 km rodados, a segunda se aquietou bem e a primeira marcha só tem um gemido leve. Deve desaparecer lá pelos 5.000 km. Já tive diferencial aditivado que rodou 7~8 mil km antes de ficar quieto. Curiosamente, este aditivo não tem grande efeito em motores. Gosta de cáries em engrenagens e rolamentos de câmbio e transmissões.
No próximo capítulo, vamos para o motor e, adivinhe quem deu mais trabalho? O bendito freio desaparecido. E meus consultores VIPs, Gerson Borini e Bob Sharp, começarão a trabalhar.
JS