Nada como fuçar em carro nacional popular: peças são fáceis de achar e baratas, defeitos mais recorrentes já são conhecidos… Você entra no boteco da esquina e lá tem café, pinga, cerveja e peças para Gol, Corsa, Uno…
“Vamos começar pela embreagem que está um lixo, e o kit recauchutado chega amanhã. Tira o motor ou o câmbio?” diz o Renato, meu mecânico. Normalmente se tira o câmbio, que é mais fácil. Porém, nessa pergunta sempre há outra questão tão tradicional que nem precisa ser dita: “Você vai querer rodar na Castello (Rodovia Castello Branco) a 120/130 km/h com essa encrenca?”. Como a resposta é sempre sim, geralmente tiramos o motor para uma manutenção mais apurada.
E nesse caso, havia duas agravantes: colocar o kit de direção hidráulica do Celta (“que não servia”) e resolver o que fazer com um motor “mais ou menos”. Colocar a direção com o motor fora é bem mais fácil e aproveitaríamos para tirar o cárter para avaliar melhor folgas no virabrequim, bielas e sua turma.
O motor estava bom. Não queimava óleo, o ruído inicial desaparecia quando o óleo ganhava pressão e não voltava mesmo com o motor bem aquecido. Em princípio, se fosse para ser arrastar na cidade, a 2.000 rpm (3.000 rpm por alguns segundos para impressionar a vizinha bonitinha) com certeza iria muito longe. Mas, para rodar na Castello na velocidade do Bob (120 km/h mais a tolerância, o que eleva o cruzeiro para quase 130 km/h) a história é outra. São horas com o motor lambendo as 4.000 rpm (devido ao câmbio curto), uma situação bem mais tranquila com o motor zerado.
Tiramos o motor e o cárter. Quando iluminei as camisas e pistões por baixo, com o celular mesmo, um grupo de mariachis começou a cantar na minha cabeça uma daquelas músicas de corno mexicano, que sempre começa com Ai, ai, ai, ai…
As camisas estavam bem desgastadas. “Desmonta tudo, vamos fazer o motor inteiro”.
Dois parênteses: quem não está entendendo nada, leia as duas partes anteriores (primeira e segunda). Segundo, a embreagem “recauchutada”, de acordo com o Renato, seguiu dois critérios para escolha: compro no Mercado Livre, como a maioria das peças, e procuro as chamadas de reindustrializadas. Parece que o processo tem critérios mais técnicos. E também procuro as que dão maior garantia: a usada na Corsínea — marca MR — tem garantia de um ano. Quem dá uma garantia dessa, confia no que faz. Mostro a marca em uma foto aqui postada (não conheço a empresa, não recomendo, não me responsabilizo, não ganho comissão…) mas já coloquei várias de marcas diferentes, usando os mesmos critérios, em outros cacos velhos e nunca deram problema. Ficam macias, não trepidam e não patinam (a menos que você tenha um motor turbo com 400 cv). A picapinha virou Corsínea em homenagem aos cachorreiros, que chamam seus pets de Cachoríneo.
Pistões china na Corsínea
Retificar um motor 1,.6 8v de um Corsa é meio que pedir um hambúrguer. O técnico da retífica não pergunta nada, dá uma olhada rápida e fala: “em dois dias está pronto”.
Enquanto isso, fomos comprando as peças. Todos componentes de primeira linha, fornecedores de fabricantes de automóveis (claro que comprados fora das revendas), até chegar aos novos pistões. Os originais sobre-medida eram muito caros: mais de R$ 1.000 sem os anéis. Fui namorar outros pistões. Encalhei em um jogo de pistões chineses, por dois motivos. Primeiro, o china parecia orgulhoso do fazia: carcou um Made in China na cabeça dos pistões, com letras maiúsculas garrafais, com quase 10 mm de altura. Segundo, os pistões brilhavam nas fotos, denunciando material de qualidade, e vinham já com anéis, tudo por pouco mais de R$ 400. O principal: os anéis eram CROMADOS. Eu e o Renato tivemos um ataque de nostalgia dos tempos de competição, até quase os anos 2000 anéis cromados eram o máximo, por terem o mínimo de atrito. Em motos de competição com motor 2T, geralmente eu tirava o cabeçote (que é uma tampa com quatro porcas) depois de uma corrida, só para ver as camisas onde corriam os anéis cromados: pareciam um espelho.
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Não tenho nenhum preconceito com produtos chineses e sei que eles fazem de tudo. E tudo depende do preço: produtos baratos são vagabundos, mas eles sabem fazer bons componentes quando se paga mais.
“E aí, Renato, vamos arriscar?” “Vamos, os pistões estão bem bonitos. Se não prestar, a gente abre o motor de novo”. Nada como ter um parceiro que abre e fecha motores com a tranquilidade de quem troca um jogo de velas.
Enquanto a retífica fazia a usinagem de bloco, virabrequim e recuperava cabeçote e bielas, fui comprando mais peças para o motor. Bombas de água e óleo, velas, sensores, cabos de velas… a lista foi mais longa que as sacanagens de um politico (disse só político, pois odeio pleonasmos, como subir para cima, irmãos Brothers. E, principalmente no Brasil, politico corrupto é pleonasmo).
Aí mora o perigo: peças baratas de um carrinho popular e fáceis de achar. “Troca tudo”. A pecinha olhou feio e a gente já substitui. Afinal, custa R$ 50/100. O problema é uma operação aritmética chamada soma. Quando a gente passa a régua, percebe a razão do superaquecimento do cartão de crédito. A conta vai e foi longe.
Para se ter uma ideia de valores, a compra da Corsínea ficou em pouco mais de R$ 10 mil, documentos atrasados incluídos. Na restauração, parte estética junto, foram mais uns R$10/12 mil (ainda faltam alguns detalhes e conta não está completamente fechada). Por um pouco mais de R$ 20 mil se tem um caco velho altamente confiável. É muito? Não acho. Um carrinho bem popular e pelado, tipo Kwid ou Mobi, sai mais que o dobro disso.
Como já disse, o saco é escutar ofertas na rua (basta lavar a Corsínea para aparecem compradores com “ótimas ofertas”): “dou R$ 15 mil em dinheiro”. Geralmente respondo: “se você achar uma igual, me fala que dou R$ 18 mil”.
Direção que não serve
Consultores à toda, com o Bob achando todas fichas técnicas e releases da época em que a Corsínea foi fabricada (escritos por ele quando trabalhava na GM), e o Borini descobrindo ou relembrando as especificações técnicas de tudo, de um projeto que ele mesmo colaborou na GM. E assim a Corsínea foi sendo reconstruída.
O tal do kit de direção com assistência hidráulica do Celta que não servia foi resolvido em dois dias. Como Corsa e Celta são o mesmo carro (acho o Celta um Corsa empobrecido, tanto no visual como no acabamento), a razão da “não conformidade” era meio bizarra. O kit era o mesmo, com diferença nas polias ( poli-V no Celta e trapezoidal no Corsa) e no suporte da bomba da direção. Uma oficina em Tatuí, especializada em direções, encomendou as polias e o suporte e, por R$ 400 ainda deu uma revisão na caixa de direção e bomba hidráulica. Serviu e bem.
Motor montado, direção instalada, hora de funcionar. Quem gosta de caco velho sabe o quanto de emoção aparece nesse momento da primeira roncada. O motorzinho pegou na primeira partida. Suave, liso… Viva os pistões chineses!
O momento mágico já foi quebrado por uma bronca do Renato: “Não é porque o motor está redondo que você vai enfiar o pé. Pelamordedeus, ande como um velho que você é, pelo menos até a primeira troca de óleo aos 1.000 km”. Jurei que ia andar devagar. Ainda bem que o Renato não acreditou muito.
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Enquanto o motor era montado, comecei a achar defeitos e a Corsínea mostrou mais uma vez ser uma sortuda: o volante não estava gasto, mas estava opaco, feio mesmo. Provavelmente alguém com excesso de ácido úrico andou dirigindo a Corsínea. Pessoas assim desgastam tudo que pegam. Um bom mecânico, da oficina de um amigo, foi despedido por essa razão: todas as ferramentas que ele pegava enferrujavam em poucas horas. Fui fuçar no meu quartinho de cacarecos, que tem dúzias de volantes, e o que descubro? Um volante novo de Corsa, original, guardado há décadas. Um filho meu deve ter trocado o volante de um dos muitos Corsa da família por um esportivo e o original ficou lá esquecido à espera da Corsínea.
Todo caco velho apresenta um sistema mais complicado na restauração. Na Corsínea foram os freios. Nas rodas, tudo novo: discos, pastilhas, lonas, cilindros de roda… E na primeira volta de teste, ao segurar o carro em uma subida, o pedal começa a descer lentamente; trocamos o cilindro-mestre. Melhorou. Mas não tinha progressividade e freava mal. Desconfiamos do servo-freio, mas o teste de ligar o motor com o pé no freio (o pedal deve se movimentar) mostrou que ele estava bom. Juntamos isso com mais um sintoma: marcha-lenta oscilante, mesmo depois da substituição do motor de passo, que controla a lenta nesse tipo de injeção multiponto. Em algum lugar, parecia escapar “vácuo” (pressão negativa) entre o coletor e o servo-freio, daí a lenta galopante e o freio ruim. Só restava usar muita tecnologia e aparelhos sofisticados de teste. Pegamos uma embalagem vazia de detergente doméstico (esses de R$ 2,00) e enchemos de água. Passo seguinte é borrifar água em todas as mangueiras que unem o coletor de admissão do motor ao servo-freio. Bingo: na entrada da mangueira na câmara de vácuo do servo-freio a água borbulhava e havia uma borracha de vedação rasgada internamente. Custo do componente: R$ 10. E finalmente o freio apareceu. Depois de assentadas lonas e pastilhas, ficou ótimo. Claro, sem o vazamento, a marcha-lenta também arredondou.
No escapamento foi retirado o silenciador traseiro, substituído por dois abafadores mais uma ponteira-monstro americana, que também é um abafador. Ficou um ruído grave, gostoso, sem gritaria, até parece que ela “tem mais motor”.
Salão de beleza
A Corsínea foi para a funilaria e pintura. Ia ser pintado o capô e o teto (com o verniz descamando) e refeita funilaria em torno da lanterna traseira (lado do motorista), que havia sido consertada por um suíno que escapou de virar bacon. De quebra, mandei pintar as rodas de prata (colocando umas calotinhas) pois rodas em preto, para mim, são piores que escutar música de corno a todo volume. O dono do salão de beleza (ou funilaria e pintura) é um apaixonado por celulares. Mesmo passando bastante na oficina para acompanhar o serviço, ele manda diariamente relatórios virtuais. Fotos e vídeos com os títulos: lixando, preparando, pintando… Chegaram fotos com a Corsínea pintada. Cinco minutos depois, uma mensagem: “ficou uma b…, vou pintar inteira”. Lembram de uma das leis do Karma que fala que malucos atraem malucos. Pois é, não perguntou se eu queria, se iria pagar. Simplesmente pintou a Corsínea toda. De quebra, claro, vieram faróis, lanternas, frisos, emblemas… tudo novo. As lanternas traseiras também são baratas, pois são comuns ao hatch quatro-portas e wagon. Ganhou mais um acessório, uma capota marítima. Ninguém merece chegar de viagens com malas alagadas.
Hora das rodas de liga leve. Consultei os universitários e todos (Bob, Borini e eu) concordamos que a melhor escolha seriam as rodas do Corsa GSi. Dois problemas nessa escolha. São caras e difíceis de achar em bom estado. Geralmente estão tortas ou remendadas. Resolvi reforçar a bancada de consultores: entra Ricardo Caruso (www.autoetecnica.band.uol.com.br). Como todo entusiasta, o Caruso ama rodas, tanto que teve uma oficina de restauração de rodas em Campinas. “Caruso, que roda você acha legal colocar na Corsínea?”
“Você já viu um Corsa com rodas de Monza? Eu nunca vi, vamos experimentar? Mesma furação, off-set e largura das rodas do Corsa GSi. Tem um jogo aqui em casa, vem buscar. É seu”.
Nada como restaurar uma picape que nasceu com o fiofó virado para lua. Lá foi a Corsínea para Campinas buscar seu presente, as novas rodas, que haviam sido restauradas pelo Caruso. Colocadas com pneus novos, todos aprovaram o visual com as rodas de Monza (Caruso, Bob, Borini e eu). Rodas do mesmo fabricante, mesmo de modelos diferentes, geralmente casam bem visualmente.
Borini começou a pipocar como consultor: “para de mandar fotos, está me dando uma p… vontade de comprar uma picapinha dessa”. Claro que, de pura sacanagem, continuei mandando.
Chegou a hora da verdade, de levar a Corsínea de Tatuí para São Paulo e escutar o velho discurso da esposa: “a casa precisando pintar e você gastando com caco velho…”. O tema varia um pouco de casal para casal, mas não muito. A operação de busca foi simples, por ser uma picape. Fui para Tatuí de moto, coloquei a moto na caçamba e voltei com os dois.
De novo a boa estrela da picapinha atacou. Tirei a moto da caçamba, minha mulher desceu para a garagem e ia começar a falar. “Onde você vai?” “Supermercado”. “Vai com a picapinha”. Meia hora de tensão e ela volta com um sorriso: “Fácil de estacionar, curtinha, direção macia, cabe um monte de coisas na caçamba”. A Corsínea entrou na família sem discurso e ainda com elogios.
Conselho matrimonial do Tio Josias: invés de pagar um psicólogo consultor de casais, coloque direção assistida em todos os seus cacos velhos. É muito mais barato e sua mulher vai adorar rodar com eles.
Ela estava assim…
Nota do redator: Depois de 4.000 km rodados, o câmbio parou de roncar com o aditivo a base de molibdênio, mas o Borini e eu estamos estudando um jeito de alongar a relação, tentando que a 130 km/h a rotação caia de 4.000 rpm para 3.500/3600 rpm.
JS