Que se misture um um pouco de álcool com gasolina, tudo bem, passa, vale como aditivo. Mas quando o combustível produzido a partir da cana-se-açúcar representa a quarta parte da gasolina que se compra no caso da gasolina premium ou 27,5% na gasolina comum, aditivada ou não, aí configura-se indiscutível crime contra a economia popular. Só não vê quem não quer.
É uma simples questão de poder calorífico; Enquanto na gasolina ele é de 42,7 megajoules por quilograma (MJ/kg), no álcool combustível é 26,8 MJ/kg. Mas como se pensa em combustível em volume e não em peso, a gasolina, cuja densidade é 0,715 kg por litro, passa a 42,7 ÷ 0,715 = 59,7 MJ/L.. Como a densidade do álcool é 0,79 kg/L, 26,8 ÷ 0,79 = 33,9 MJ/L.
Portando, o poder calorífico do álcool em volume é 33,9 ÷ 59,7 = 0,567 ou 56,7 % do da gasolina.
Se calculado o poder calorífico da nossa gasolina com 27,5% de álcool vê-se que ela tem poder calorífico de (0,275 x 33,9) + (0,725 x 59,7) = 52,6 MJ/L. ou poder calorífico 12% menor.
O mesmo cálculo com 10% de álcool na gasolina resulta em 57,1 MJ/L ou poder calorífico 4,3% menor. Ou seja, a perda de poder calorífico — a energia do combustível de fato — é bem pequena, por isso adotada nos países que chamo de sérios nessa questão, como Alemanha, outros países europeus e Estados Unidos.
É de se lamentar a decisão do governo indiano em passar a gasolina a ter 20% de álcool, conforme noticiou Fernando Calmon numa coluna recente.
É por isso que quando brasileiros dirigem no exterior notam consumo de gasolina bem menor. Mesmo nos países vizinhos quando viajam com carros licenciados no Brasil é comum consumo de 15~16 km/l com a gasolina de lá ante 12~13 km/l com nossa gasolina. Vários leitores o constatam.
Nomenclaturas
Pode ser que os leitores do AE estranhem não usarmos a palavra etanol, adotado desde fins de 2009 em substituição à álcool etílico hidratado combustível (AEHC) — de modo simplificado álcool — determinado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), já fartamente falado aqui; não vemos motivo para a mudança, já que tudo começou em 14 de novembro de 1975 com criação do Proálcool (Programa Nacional do Álcool) por determinação do governo Ernesto Geisel, e também por não lidarmos com outro tipo de álcool-combustível, como nos EUA com o álcool metílico (ou metanol), combustível usado durante décadas na Fórmula Indy.
Muitos leitores podem estranhar também a denominação da gasolina conter uma letra e um número, por exemplo E22 (gasolina padrão brasileira para fins de desenvolvimento e homologação), o que significa gasolina com 22% de álcool. A explicação é a gasolina historicamente ser apenas ‘gasolina’, tendo então sido necessária especificá-la diferentemente quando se tratasse de gasolina com álcool. Surgiu assim a nomenclatura letra mais número, usado quando os EUA adotaram o álcool em 1991 para abastecer os novos carros flexíveis em combustível (flex) por conta da necessidade de reduzir a dependência do petróleo do Oriente Médio, que havia chegado a 60% das necessidades.
Como nos EUA o álcool não é puro como aqui, mas com 15% de gasolina para viabilizar a partida do motor até – 5 ºC, foi escolhido o nome E85 (Ethanol 85) para indicar o álcool com 15% de gasolina.
E aqui, no AE, por que não adotarmos A27 ou A25, já que falamos álcool e não etanol? É apenas questão de padronização. É desnecessário sermos “diferentes” da indústria de combustíveis.
Esperança
Como ter esperança é grátis, a do AE (e tenho certeza a de muitos brasileiros) é que o governo brasileiro passe a autorizar a gasolina brasileira E10 (que continue aa E25, sem problema, mas acabando com a E27). alinhando-se aos países de vanguarda e, principalmente, aos outros três países do Mercosul. É absolutamente inconcebível a gasolina não ser a mesma em porcentagem de álcool num mercado dito comum.
A ANP poderia estabelecer a informação E10 e E25 obrigatória nas bombas e nos preços da gasolina expostos nos postos. Nessa mudança, aproveitar e passar a obrigar gasolina exclusivamente aditivada, decisão dessa agência para vigorar a partir de 1º de janeiro de 2004 e que lamentavelmente foi engavetada no governo Dilma Rousseff.
Para a indústria automobilística, passar os motores flex para funcionamento com gasolina E10 a E25 e E100, em vez de E18 a E27 como é hoje, não representa problema maior. E para a complementaridade da linha de produtos com carros importados, sem trabalho de recalibração e custo de homologação. Talvez, por exemplo, o novo Peugeot 208 pudesse vir com o motor tricilíndrico Puretech turbo de 1,2 litro, como é vendido na Argentina, em vez do EC5 1,6-litro.
E a indústria sucroalcooleira, como ficaria com menos álcool na gasolina? Nenhum problema, como o mundo está ávido de álcool (e açúcar), talvez faturasse ainda mais com exportação.
BS
(Atualizada em 12/10/21 às 11h30, inclusão da nota abaixo)
Nota: no dia seguinte à publicação da matéria o leitor Remulo Lemos me escreveu perguntando se não é preferível o álcool anidro em vez do hidratado vendido nos postos, visando mais potência e menos consumo. Respondi-lhe que:
A escolha pelo álcool hidratado em vez do anidro foi correta por dois motivos. Um, a desidratação do álcool tem custo que o torna, em média, 10% mais caro que o hidratado. É importante álcool misturado à gasolina ser o anidro para garantir mistura permanente e estável, o que não acontece com o hidratado, pois o álcool tem afinidade com a gasolina e a ela se juntaria, separando-se da água,
Nos tanques dos automóveis esse problema não existe, pois a separação só ocorre quando se combinam inatividade do veículo por mais de 30 dias e temperatura ambiente inferior a – 10 ºC.
O outro motivo para o álcool de posto ser o hidratado é seu calor latente de evaporação ser elevado, da ordem de 900 quilojoules por quilograma (kJ/kg) contra 450 kJ/kg da gasolina — o dobro — o que resulta em mais calor para vaporizá-lo, “roubando-o” e concomitante esfriando a mistura ar-combustível, o que aumenta vantajosamente sua densidade, tendo como resultado maiores potência e torque.
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