Desta vez, vou atender à solicitação do leitor Marco F.¨, feita há algumas semanas. Ele pediu uma coluna sobre os carros DKW produzidos pela IASFSA (Indústria Automotriz Santa Fe) na Argentina nos anos 1960. Então, vamos lá.
Comecemos, então, pelo começo: DKW vem de Damp Kraft Wagen, ou seja, carro movido a vapor em alemão, A empresa fundada em 1916 pelo engenheiro dinamarquês Jøergen Skafte Rasmussen., em Zschopau, Alemanha, começou a produzir itens para propulsão a vapor e ele tentou fazer um carro com esse tipo de motor, mas o plano não foi adiante devido às dificuldades da Grande Guerra iniciada em 1914. Rasmussen não se abateu e começou a produzir em 1919 um pequeno motor de dois tempos, de brinquedo, o qual chamou de Des Knaben Wunsch, desejo dos meninos na língua de Goethe. Era o segundo significado da sigla DKW. Ele aproveitou esse motor de baixa cilindrada e aplicou-o a uma motocicleta leve, denominada Das Kleine Wunder, ou A Pequena Maravilha, que acabou se tornando uma marca e levando a DKW a ser a maior fabricante de motocicletas do mundo já em 1928.
Em 1932, em meio à depressão mundial na esteira da quebra Bolsa de Nova York em setembro de 1929, o Saxon National Bank (da região alemã da Saxônia, onde foi fundada a DKW) propôs e intermediou a união da DKW com outros três fabricantes alemães de veículos: Audi, Horch e Wanderer. Juntas, formaram a Auto Union AG (Aktiengeselschaft, a nossa sociedade anônima) e até à eclosão da Segunda Guerra Mundial, em setembro de 1939, era o maior fabricante de automóveis alemão.
O inteligente logotipo da Auto Union criado, quatro anéis entrelaçados, representava a união de quatro fábricas.
Terminada a guerra, as fábricas da Auto Union ficaram na zona de ocupação soviética e a Auto Union desapareceu. Em 1949 um grupo de ex-diretores da Auto Union fundou a nova Auto Union, utilizando um grande armazém de peças de reposição em Ingolstadt, na Alemanha Ocidental, ou República Federal Alemã, com capital em Bonn. A DKW foi a única marca que restou na nova Auto Union, agora GmbH (Gesellschaft mit Beschränkter Haftung, a nossa Ltda). Logo a principal unidade fabril foi estabelecida em Dusseldorf.
Foi esta Auto Union que produziu, na Argentina, diversos veículos ao se associar a investidores locais, a Indústria Automotriz Santa Fe S.A. (IASFSA). No Brasil, a Auto Union concedeu à Vemag (Vemag S.A. Veículos e Máquinas Agrícolas.) licença para a produção de veículos DKW, que se chamaram DKW-Vemag. Vamos, então, à primeira digressão para contar um pouco sobre a IASFSA.
Corria, adivinhem, caros leitores, a década de 1950. Sim, a mesma que viu crescer exponencialmente a indústria automobilística argentina e período sobre o qual giram todas as histórias do setor. Relembrando, então, algo que já mencionei aqui: o presidente Arturo Frondizi havia decretado a lei de investimentos de capitais estrangeiros número 14.780; a lei 14.781 de promoção industrial e o regime de promoção da indústria automobilística 3.693. Apenas no ano 1959, quando foi promulgado o decreto para incentivo do setor, foram recebidos pelo governo argentino 23 projetos para instalação de indústrias no país.
Os requisitos para quem quisesse receber os incentivos eram apresentar um plano de cinco anos e ter capacidade técnica e financeira. Estava liberada a importação de maquinário somente de itens que não fossem produzidos na Argentina e, do lado do governo federal, a alíquota do imposto de importação de veículos foi reduzida de 300% para faixas entre 20% e 40%. Também foram fixados limites de conteúdo de componentes importados para os carros produzidos na Argentina. Como resultado destas políticas, em dezembro de 1961 a Argentina tinha 25 fábricas de veículos em funcionamento, todas sob o regime de incentivos.
Mas, claro, para não variar no que diz respeito à história argentina, houve um golpe. Em março de 1962, Frondizi foi derrubado e todo o programa foi revisto. O novo governo achava que havia excesso de oferta de veículos no país, marcas e modelos demais, acima do que o mercado poderia absorver, dizia. Assim, seguiu-se o fechamento da maioria das indústrias, apesar dos bons resultados alcançados. Se em 1959 haviam sido fabricados 27.834 veículos, em 1961 foram 136.188. Ou seja, cinco vezes mais.
Os fabricantes de autopeças abasteciam também o mercado brasileiro e, segundo o censo industrial de 1964, a indústria automobilística argentina empregava 140.000 pessoas diretamente e respondia por 12% do PIB.
Dentro, então, do programa de Frondizi, em outubro de 1959, a IASFSA recebeu a aprovação do projeto de instalação para produzir, sob licença da Auto Union GmbH, veículos com a marca Auto Union. Mas, ao contrário de quase todas as outras fabricantes de veículos e autopeças, a IASFSA (eu já disse que os nomes das empresas e de seus produtos, naquela época, na Argentina, eram horrorosos?) não se instalou na província de Córdoba, mas na vizinha Santa Fe – berço do piloto argentino Carlos “Lole” Reutemann.
O projeto inicial apresentado pela IASFSA previa a produção de um sedã nas versões de duas e quatro portas (foto de abertura), uma station wagon e uma linha de utilitários. A estimativa inicial era fabricar 1.200 unidades em 1960 e aumentar progressivamente até atingir 2.500 unidades em 1964.
O primeiro modelo a ser fabricado foi o sedã Auto Union 1000 S, inicialmente, num galpão emprestado pelo governo de Santa Fe na capital da província, homônima, só para complicar a vida desta escriba e de seus caros leitores. Enquanto isso, era construída a fábrica na cidade de Sauce Viejo, a 20 quilômetros de Santa Fe, num terreno de 300 mil metros quadrados.
As primeiras unidades, claro, ainda continham um alto conteúdo importado e saíam da linha de montagem ao modesto ritmo de 10 ou 12 veículos por dia, embora o projeto inicial fosse atingir o dobro disto em um par de anos. Uma curiosidade: na apresentação oficial do Auto Union 1000 S, em junho de 1960 no autódromo de Buenos Aires, quem encabeçava a fila dos primeiros 20 carros Auto Union-DKW fabricados na Argentina era ninguém menos do que o pentacampeão de Fórmula 1, Juan Manuel Fangio.
O carro-chefe era o sedã Auto Union 1000, uma versão do DKW F94 alemão (fabricado no Brasil a partir de 1958). Pelo menos para mim, a principal característica desse modelo sempre foi as portas dianteiras abrirem para trás. A explicação do fabricante era que isto facilitava o acesso dos ocupantes (a solução, comum nos anos 1930 a 1950, existe até hoje, como nos Rolls-Royce Wraith e Dawn).
O motor era DKW, dois-tempos de três cilindros, colocado longitudinalmente, e a velocidade máxima era de 127 km/h. Com 981 cm³ a 4.500 rpm, o motor arrefecido a água fornecia 44 cv. O câmbio era de quatro marchas sincronizadas com alavanca na coluna de direção. Mas também chamava a atenção a tração dianteira, algo destacado nas propagandas e nos testes das revistas especializadas da época
No período de duração da fábrica, foram produzidos, além do sedã 1000 S, uma espécie de Kombi para 8 passageiros, um furgão, uma picape (todas com o econômico motor de 981 cm³) e, claro em se tratando da Argentina, uma versão station wagon. Em 1963 foi lançado o Auto Union 1000 S Sport, um modelo esporte para quatro passageiros de duas portas desenhado pelo estúdio italiano Carozzeria Fissore. Sim, mais uma vez a combinação carros + italianos + argentinos.
Digressão número sei lá quanto, mais para curiosidade talvez: a Auto Union exigia, naquela época, que no botão da buzina fosse colocado o brasão da província ou estado onde estava instalada a fábrica que havia produzido aquele carro. Isto valia para quase todas as unidades em qualquer lugar do mundo. Por isso, os Auto Union-DKW argentinos saíam com o brasão da província de Santa Fe no volante.. O “quase” fica por conta do Brasil, em que foi usado o brasão da cidade de Dusseldorf em vez de São Paulo, onde ficava a fábrica do DKW-Vemag.
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A divisão de motocicletas da DKW estava sob a direção de Ernesto Bessone, pai do ex-piloto de Turismo Carretera e TC 2000, Ernesto “Tito” Bessone II. Entre os modelos mais populares da época estavam a RT 125 e a RT 150.
Em 1965, cinco anos depois do início da IASFSA, a fábrica de Sauce Viejo tinha área construída de 38.000 metros quadrados, capacidade para produzir 25 veículos diariamente e empregava 1.500 pessoas. Dentro da mesma unidade eram realizadas todas as operações de montagem do motor, caixa de câmbio, construção da carroceria de todos os utilitários, tapeçaria e montagem final de todos os veículos. No final daquele ano já haviam sido montadas 27.571 sedãs de quatro portas, station wagons, sedãs de duas portas e utilitários. Naquele ano, a súbita expansão do setor parecia ter seus dias contados, e dos 26 projetos aprovados cinco anos antes, apenas 13 ainda estavam operacionais. O mercado estava praticamente controlado por filiais de multinacionais de veículos. Mas a Auto Union-DKW continuava produzindo dentro de um nicho: era das poucas indústrias automobilísticas pequenas que se mantinha constante. Embora seus carros não tenham atingido exatamente um sucesso de vendas, tinham um mercado que os aceitava bem e o enorme reconhecimento de sua importância por parte de toda a província de Santa Fe e, especialmente, da comunidade em torno de Sauce Viejo.
Mas em 1964 a Auto Union GmbH, que pertencia à Daimler-Benz desde 1958, passou para as mãos da Volkswagen AG, quando a marca DKW deixou de existir. Ficou inviável continuar a produzir o Auto Union-DKW de 1967 em diante, tal qual como aconteceu no Brasil naquele mesmo ano, quando o DKW-Vemag saiu de cena.
Além disso, em 1967 a história mudou radicalmente. Uma série de acusações de contrabando e evasão fiscal deram origem a um processo judicial que afetou toda a operação até que em 1969 a fábrica de Sauce Viejo foi finalmente paralisada. Até aquele momento haviam sido produzidas 32.698 unidades. Do ponto de vista social, o fechamento foi terrível para a cidade, que atingiu índices de desemprego de dois dígitos, ficou entre as três cidades de todo o país com maior índice de pessoal sem trabalho e viu a criminalidade crescer brutalmente. As instalações foram compradas pela Fiat Concord e alteradas para produzir tratores e, posteriormente, caminhões pesados e chassis para ônibus.
Nos anos 1980, a fábrica fechou definitivamente e a província de Santa Fe nunca mais teve um projeto de indústria automobilística. Fim de mais um capítulo de vasta história automobilística argentina. Uma pena e, de fato, Santa Fe nunca mais teve uma indústria deste tipo — perdeu sempre para a vizinha Córdoba.
Mudando de assunto: não resisto a uma piada infame, especialmente se envolver autoentusiasmo.
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.