Tenho falado bastante sobre carros argentinos — a maioria, de linha. Mas há uma lista de protótipos, ou quase isso, que vale a pena mencionar, embora tenham vivido muito mais no imaginário de seus idealizadores do que nas ruas da Argentina.
Foram verdadeiros “conceitos”. Poucos chegaram a circular realmente, mas em ínfima quantidade e por pouco tempo a ponto de ter muita gente que sequer ouviu falar deles e outros que duvidam de sua existência.
Muitos nem conheceram as linhas de montagem por falta de recursos, outros por inviabilidades várias, mas sempre acho válidas as pesquisas, por mais loucas que possam parecer. Principalmente, porque quando começamos a desenvolver uma ideia, não sabemos onde terminará — e isso faz parte do interesse pelo desconhecido.
Faz pouco tempo, conversando com um amigo sobre o quanto gostei de conhecer as reservas de animais na África do Sul, ele me questionou qual era a diferença entre ver um leão na reserva Ballule (onde estive) e no zoológico. “Na reserva, às vezes a gente não encontra um leão. E isso faz parte do charme da Natureza. No zoológico, ele sempre estará lá”, respondi. Acho bárbaro sair num safári (fotográfico, sempre) sem saber o que vamos achar. Protótipo ou carro conceito é a mesma coisa: às vezes, a ideia não vira realidade viável, mas para mim isso faz parte do charme da pesquisa e de criar algo livremente, sem saber onde terminará.
A história automobilística argentina é pródiga em projetos, sonhos, sucessos e fracassos. Como já contei em outras escrivinhações, houve dois períodos de destaque: o início da década de 1950, cheia de projetos (alguns francamente inexequíveis) na esteira do plano de industrialização do então presidente Juan Domingo Perón e a década de 1960, com os programas de incentivo à indústria automobilística promovidos pelo então presidente Arturo Frondizi. No meio, claro, uma história de golpes e de derrubada de presidentes, como sói acontecer na Argentina.
Nos primeiros anos da década de 1950, não apenas fábricas consagradas, como Mercedes-Benz, tinham carros circulando pelo país, mas também exemplares da incipiente indústria local, o que fazia das ruas argentinas (especialmente de Buenos Aires, onde sempre se concentrou praticamente a metade da população do país inteiro) um caleidoscópio de marcas e modelos, algo tão variado quanto efêmero. Vejam, por exemplo, a foto de abertura que mostra a famosa avenida Corrientes no começo dos anos 1950, tendo como fundo o conhecido Obelisco — a quatro quarteirões de onde moraram meus avôs paternos boa parte da vida deles, assim como meu pai e meu tio.
Vamos, pois, a esses modelos de curta vida, mas que, por diversos motivos, vale a pena conhecer ou relembrar.
Mitzi
Como em outros casos, este carro surgiu pelas mãos de uma empresa que pouco tinha a ver com automóveis. Em 1954, a Rosatti y Cristóforo Industrias Metalúrgicas S.A. (RYCSA), que produzia guindastes, caldeiras e trabalhava com construções metálicas, assina um acordo com a italiana Societá Italiana Auto Trasformacioni Accessori (SIATA) para produzir, sob licença, o Mitzi B40, um pequeniníssimo carro destinado a uso nas grandes cidades. Para não variar, o lançamento seguiu o ritual de vários outros na época: apresentação no autódromo de Buenos Aires (chamado, naquela época, 17 de Octubre, em lembrança ao movimento daquele dia, no ano de 1945, que pediu a libertação de Perón que estava preso. Os peronistas chamam a data de “San Perón”. Fim da primeira digressão cultural.) A segunda apresentação do Mitzi foi no prédio da estatal petrolífera YPF, em pleno centro de Buenos Aires.
A nova empresa automobilística se chamou Imema e foi construída uma fábrica na cidade de Caseros, no interior da província de Buenos Aires, que chegou a ter 1.500 funcionários, muitos dos quais italianos que estavam lá para supervisionar os trabalhos, como o próprio Juan Rossi, que liderava os trabalhos. Além do Mitzi, foram lançados o Gilda, um sedã de duas portas batizado em homenagem à esposa de Rosatti, e a picape Gauchito, que usava a plataforma do Gilda. Os planos originais eram de produzir 2.500 unidades do Mitzi já em 1956 e 10.000 nos anos seguintes.
O Mitzi media apenas 3,1 metros de comprimento e pesava 420 kg. Podia transportar três adultos graças a um pequeno banco de emergência na parte traseira e tinha teto solar de lona. O motor era de Vespa de dois cilindros e quatro tempos, com 12 (sim, 12!) cv e podia chegar a 85 km/h.
O Gilda (abaixo) foi totalmente desenvolvido na Argentina, isto é, a mecânica, a carroçaria e o chassi. Tinha um motor de 4 cilindros de 1.792 cm³ e 55 cv.
A picape Gauchito tinha as mesmas características do Gilda, mas com motor de 50 cv.
Mas se vocês, caros leitores, nunca ouviram falar destes modelos, não se sintam sós. Nenhum dos três alcançou a menor relevância, a ponto de não existirem sequer dados sobre seus volumes de produção e os poucos registros, incluindo os fotográficos, são de péssima qualidade. Foram diretamente das pranchetas para o ostracismo, com uma fugaz passagem por alguma rua, mas tão fugaz que há gente que duvida que eles tenham mesmo existido como carros de produção. Os motivos? Adivinhem: o golpe que derrubou Perón da presidência em 1955, a mudança nas condições econômicas do país e o fim de uma política de subsídios à indústria nacional. A RYCSA sobreviveu até 1977, aos trancos e barrancos, mas apenas porque voltou a suas origens. Depois de ter chegado a produzir 3.000 toneladas de ferro para concreto armado em seus melhores momentos, quando teve 260 empregados, pediu concordata e em 1978, depois da morte de um dos sócios, fechou definitivamente.
O Bambi
Já falei várias vezes sobre minha implicância com alguns nomes de modelos e de empresas argentinas e sobre o quanto os acho pouco marqueteiros, mas aqui preciso fazer um esclarecimento. Na Argentina o nome Bambi é associado exclusivamente ao fofo personagem de Walt Disney e, por extensão, a todos os tipos de veadinhos — logo, não tecerei críticas ao nome dado a este protótipo. É um pouco como meu nome. Meus pais quebraram a cabeça para escolher um que fosse fácil de pronunciar, que não desse margem a gracinhas, que as iniciais dos meus dois nomes e meu sobrenome não permitissem resultados como RIP ou coisas parecidas, mas esqueceram de pensar que em português ele teria outro significado. Paciência. Aliás, sempre gostei muito do meu nome. Fim da digressão cultural (familiar, talvez?) número dois.
Produzido pela Fábrica de Automotores Utilitarios S.A.I.C.Y.F, na Grande Buenos Aires, especificamente na cidade de Ciudadela, o Bambi foi idealizado para ser a versão argentina do Fuldamobil
O carrinho era oferecido em duas versões, cupê e como utilitário, no modelo Sporty (foto Bambi Sporty) que, para mim, tem um quê de carrinho de parque de diversões, aqueles de bater. O objetivo deste veículo era que fosse usado em pequenas entregas e ambos seguiam o conceito de pequenos e econômicos veículos tão comum no pós-guerra, especialmente na Alemanha, de onde veio a inspiração.
O Bambi tinha carroceria de resina de poliéster e o desenho lembrava o de uma gota. O motor era um pequeno Sachs de dois tempos, 191 cm³ e 10,2 cv fabricado na Argentina pela empresa Televel. O comprimento total da versão Sporty era de 3,4 metros, a largura de 1,4 metro e a altura de 1,3 metro. Sim, o carro conseguia ser mais baixo que esta que vos escreve. Incrível, não?
Segundo o fabricante, o Bambi podia percorrer 22 quilômetros com um litro de mistura óleo e gasolina. No lançamento, em 1960, o preço dos dois modelos era o mais baixo de todos os veículos zero-quilômetro no país. Duraram mais do que o Mitzi, o Gilda e o Gauchito e foram produzidos até 1963, num total de 500 unidades. Pessoalmente, não lembro de ter visto sequer umzinho em todos meus anos de Argentina nem nas centenas de vezes que fui lá depois que me mudei para o Brasil.
Mudando de assunto: por indicação do meu mestre Bob Sharp assisti ao documentário Fangio, na Netflix. Belíssimo trabalho de edição, imagens e coleta de depoimentos. Fangio mostra duas características que sempre lhe foram peculiares: a simplicidade e a humildade – longe, muito longe de alguns pilotos estrela que temos na atualidade. Impressiona também ver a elegância que lhe era inerente. Gostei muito do filme, embora lamente que foque apenas na Fórmula 1. Adoraria ter visto a história dos Torino em Nürburgring e outros causos saborosos da vida deste pentacampeão tão querido não apenas pelos argentinos, mas por gente no mundo todo. Ficam claros também outros dois diferenciadores dele, que muito me remeteram a outro ídolo meu, Nélson Piquet: os conhecimentos de mecânica (e como isso sempre foi fundamental para o sucesso do piloto) e a quantidade de amigos dentro do meio automobilístico, além da fidelidade dele com os outros e a retribuição. Vale a pena ver, pois não tem um minuto de desperdício.
NG