Para entender como e por que esse motor nasceu na Volkswagen do Brasil é preciso voltar a 1983, quando depois de um ano de corridas com carros de turismo, a CBA (Confederação Brasileira de Automobilismo) decidiu instituir um campeonato brasileiro de Marcas e Pilotos com carros de turismo fabricados no Brasil.
O então presidente da CBA, o português Joaquim Cardoso Mello, convenceu as quatro fabricantes de então, Ford, Fiat, General Motors e Volkswagen, que de uma forma e de outra tinham empenho no automobilismo, a participarem desse campeonato, do qual ao final da temporada sairia uma marca campeã; Além do prestígio que tal láurea confere, abria-se-pela primeira vez a oportunidade de exploração publicitária do feito baseada no título outorgado pela autoridade desportiva nacional de automobilismo, portanto de grande credibilidade e força.
Também, a exemplo do que ocorre no automobilismo internacional, Fórmula 1 inclusive, ao final do certame um piloto se sagraria campeão.
O acordo desenhado por Mello envolvia a adesão das fabricantes ao campeonato no sentido de se organizarem para dar apoio a pilotos e equipes, tal como aquisição de carros e peças com desconto, e concessionárias e as próprias fabricantes formarem equipes oficiais.
Carros
Modelos nacionais de grande produção, mínimo de 5.000 unidades idênticas ao longo de 12 meses consecutivos, motores de até 1.600 cm³, carrocerias sedã, hatchback e perua.
O regulamento
Foi marcada uma reunião na CBA, no Rio de Janeiro, nos primeiros dias de 1984, para discussão e aprovação do regulamento. Presentes representantes das quatro fábricas, o comissário técnico da CBA, Bruno Brunetti, o presidente do Conselho Técnico Desportivo Nacional (CTDN), Caio Alfaya. Pelas fábricas, Luiz Antônio Greco (Ford), Roberto Rocha (GM), Yutaka Fukuda (Fiat) e pela VW, eu.
Eu ainda não trabalhava na VW, embora o cargo de supervisor de competições (novo) e vaga já estivessem aprovados. Por isso, Ronaldo Berg, gerente nacional de Assistência Técnica/Produto, responsável por competições e que me convidara para a recém-criada função— somos amigos desde 1972 — pediu-me para representar a marca na reunião “por conta”, o que logicamente aceitei.
Na reunião, assim que tomei conhecimento da proposta de regulamento, chamado Grupo B Brasil, fiquei assustado. Era completamente sem pé nem cabeça. A discussão não terminaria naquele dia, como previsto, e nem nos próximos três. Cheguei a propor, para não haver discussão, que fosse adotado o regulamento internacional da FIA para carros de turismo (Grupo A), mas a proposta foi recusada, o grupo achou que eu estava querendo favorecer a VW. Houve um impasse. Como todos à mesa me conheciam bem, propus então eu redigir o regulamento, assunto que eu dominava (todos sabiam disso), já tendo eu feito diversos trabalhos para a CBA nessa área técnico-desportiva.
Foi bem fácil para mim e em poucos dias estava pronto o regulamento do Grupo B Brasil, feito à luz e semelhança do Grupo A da FIA. Importante salientar que na realidade são dois regulamentos sempre, o de Homologação (para os fabricantes) e o Técnico (para os concorrentes/pilotos). Esses dois regulamentos estavam misturados na proposta inicial, seria inviável utilizá-la num campeonato brasileiro envolvendo marcas e pilotos,
Propus que o peso dos carros seguisse o padrão FIA, que se baseia na cilindrada, justamente pensando na Fiat, de motor 1300, enquanto a concorrência era 1600.
Pela regra internacional, carros com motores de 1.151 cm³ a 1.400 cm³ devem ter peso mínimo de 840 kg, enquanto os de 1.401 cm a 1.600 cm³, 920 kg. Minha estimativa era de que o Fiat 147 CL de 1.297 cm³ (ainda não existia o Uno) poderia enfrentar Chevette de 1.598 cm³, Escort (CHT de 1.555 cm³), Gol/Voyage de 1.588 cm³ tirando partido de maior velocidade nas curvas e de relação potência-peso parecida. Mas a Fiat não concordou em correr com 147, preferia o sedã Oggi e foi adotada uma solução para tentar deixar a Fiat mais competitiva.
Ficou definido, por unanimidade, que um fabricante poderia homologar uma versão de maior cilindrada com produção mínima de 500 unidades, também dentro do preceito da FIA, correspondente a 10% da produção mínima de 5.000 unidades/ano. Assim, a Fiat se comprometeu a lançar um modelo com motor de 1.415 cm³, cilindrada obtida pelo aumento do curso dos pistões de 71,5 para 78 mm, modelo que viria a ser o Oggi CSS, embora com peso mínimo de 920 kg como os demais.
Foi definido também que poderiam ser homologados, sem produção mínima, anexos aerodinâmicos como defletores, saias e aerofólios invertidos.
Todos entenderam o regulamento que redigi e ele foi aprovado só com uma mudança: para usar câmbio de 5 marchas, só se existisse no modelo de produção normal, e o Gol e o Voyage só tinham então câmbio de 4 marchas.
A solução da VW
Essa mudança, obviamente, foi uma maneira velada de diminuir o potencial do Voyage e do Gol na pista (ainda não havíamos decidido qual usar). Concordei sem reclamar, mas rindo por dentro, já havia solução para os VW correrem com quatro marchas.
Para nós, com a fábrica de câmbios na Fábrica Anchieta, nada mais fácil contornar o “problema”. Modificamos o câmbio de maneira a 1ª do 4-marchas passar a ser a 2ª do 5-marchas, a 2ª passar a ser a 3ª, a 3ª passar a ser a 4ª e 4ª passar a ser a 5ª marcha. Até que ficaria bom, teríamos um câmbio mais leve e com menos atrito interno, e para os pilotos ficaria mais fácil trocar marchas num padrão de “H” do que num de 5 marchas com a quinta fora do “H”. A única desvantagem seria a primeira marcha “fraca” no momento da largada (era a segunda do 5-marchas), mas previmos que não atrapalharia tanto, o que logo seria confirmado.
Do ponto de vista regulamento, tudo certo, o Voyage ou o Gol seria homologado com câmbio de 4 marchas e homologaríamos um câmbio de 4 marchas com outras relações sem produção mínima conforme, previsto no Regulamento de Homologação, exatamente como no Grupo A da FIA. No primeiro treino do nosso carro de Marcas os pilotos tiveram que “aprender” a curva Bico de Pato, normalmente feita em 2ª, pois agora era preciso engatar 1ª — só que esta era a “nova” 1ª, na verdade a 2ª do câmbio de cinco marchas.
Para fazer o 4-marchas com outras relações deu certo trabalho, pois a árvore primária tem engrenagens condutoras de 1ª e 2ª talhadas nela e não podem ser mudadas Foi necessário trabalho de usinagem para remover a engrenagem condutora de 2ª e aplicar outra, da relação que se queria, introduzindo-a na árvore primária e soldando-a ali. Mas isso nos traria um problema inesperado.
Vitória na estreia
Na primeira corrida, em Brasília, a VW (acabou sendo escolhido o Voyage) venceu, tendo conquistado do primeiro ao quarto lugar. (foto de abertura) Após a corrida houve uma vistoria técnica por iniciativa da CBA para examinar motores e câmbios. Quando o comissário técnico (não me lembro quem era) viu a engrenagem de primeira soldada na árvore primária, denunciou irregularidade aos comissários desportivos e estes nos desclassificaram. O comissário técnico argumentou serem proibidas soldas pelo Regulamento Técnico, o que define as modificações autorizadas na preparação do veículo, como de fato são proibidas. Só que não era o caso, não se tratava de preparação no sentido estrito, a que o piloto/concorrente efetua, mas produção da Volkswagen, em que é discrição absoluta de qualquer fabricante o processo de produção para juntar peças, como rebitagem, colagem, soldagem, etc. O eixo de torção, por exemplo, tem soldas.
É claro que eu, como concorrente ao título de Construtores, entrei com recurso, e algum tempo depois a colocações nos foram devolvidas. Todo esse problema ocorreu exclusivamente por falta de entendimento do comissário técnico e dos comissários desportivos sobre algo tão simples.
A marca Volkswagen foi campeã de Marcas, mas havia um consenso da que a Fiat estava sem possibilidade de alcançar bons resultados pela inferioridade de motor em termos de cilindrada e havia um novo Fiat, lançado em agosto, o Uno.
Nova reunião na CBA, no Rio de Janeiro, marcada para 18 de dezembro de 1984. Esse dia havia sido marcado para o nascimento do meu segundo filho (cesariana), que precisou ser adiado para o dia seguinte — eu tinha que estar nessa reunião, pela sua importância.
Todos com motor 1300
A essa reunião compareceram rodos os da primeira um ano antes, menos um, o representante da GM. A fabricante de São Caetano do Sul já havia avisado que não participaria da temporada de 1985.
Na reunião o assunto principal era a harmonização de cilindrada para 1.300 cm³. Já tínhamos conhecimento dessa proposta de mudança e antes de ir ao Rio para a reunião, nosso engenheiro Luiz Antônio da Silva, eu e Ronaldo Berg já tínhamos a solução, embora o tempo fosse apertado, o campeonato começaria em três meses.
Na reunião, VW e Ford concordaram, para satisfação da Fiat. E no dia seguinte, 19 de dezembro passei com minha mulher na maternidade, o Beto veio ao mundo às 9h40, tudo correu como devia no Hospital Nove de Julho. Silenciosamente, me desculpei com ele por atrasar sua chegada. ao vê-lo pela primeira vez no berçário, Tenho certeza de que ele entendeu.
Usarmos o motor 1300 alemão (1.272 cm³, 75 x 72 mm) de Passat, Golf, Jetta, etc. havia sido descartado. Não daria tempo para trazê-lo ao Brasil, havia os trâmites dei importação e outros entraves, seria inviável. Não daria tempo, e na opinião do Luiz dificilmente seria um motor brilhante. Ele já tinha a “receita” para o 1300 da VW do Brasil:
• Bloco de 1600, aberto para 81 mm mm de diâmetro)
• Novo virabrequim para curso dos pistões de 63 mm, para 1.298,5 cm³, graças à presteza do fornecedor Sifco em produzir a peça bruta em tempo recorde
• Bielas normais 136 mm (relação r/l 0,23)
• Cabeçote de 1,8 com válvulas aumentadas para 40 x 35 mm em vez 38 x 33 mm do original
• Comando de válvulas de 288º (usado no 1,6 no ano anterior)
• Carburador Brosol H50 de duplo corpo
• Tuchos de válvulas especiais lisos, sem pastilha de ajuste de folga no topo, para evitar serem “cuspidas” em razão das altas rotações previstas,; no seu lugar, pequenas pastilhas-copo entre a haste de válvula e o tucho
• Coletor de escapamento 4-em-1 com comprimento calculado
• Taxa de compressão 14:1 (corria-se com álcool, era obrigatório).
A potência no dinamômetro chegou a 130 cv a 7.200 rpm e torque de 14,3 m·kgf a 5.500 rpm. A curva de potência mostrava queda ínfima até 8.000 rpm, que foi estabelecida como limite de rotação. Devido ao pequeno curso dos pistões, a essa rotação a velocidade média deles era de apenas 16,8 metros por segundo.
Aproveitamos o novo processo de homologação e incluímos câmbio de cinco marchas (já estava em linha) com relações adequadas às características do motor 1300.
O motor se mostrou campeão e a marca o obteve seu segundo título de Construtores. Foi realmente um trabalho de engenharia primoroso, capitaneado pelo engenheiro Luiz Antônio da Silva.
Lamentavelmente a CBA mudou o regulamento para 1986 e todos os motores passaram ser turbocarregados com cilindrada de até 1.142, 8 cm³. Para isso foi usado o bloco de 1600 com diâmetro original (79,5 mm) novo virabrequim para curso dos pistões 57,5. Essa baixa cilindrada era para, uma vez aplicado o fator de equivalência 1,4 da FIA para motores supercarregados ou turbocarregados, enquadrar o veículo na classe 1.401 cm³ a 1.600 cm³ (atualmente esse fator é 1,7).
Novamente o motor VW foi exitoso e a marca chegou ao terceiro título de Construtores.
Para 1987, nova mudança no regulamento, todos os motores de 1.600 cm³ seriam turbocarregados. A Fiat já dispunha de 1,6-L no Uno (Sevel, argentino), todo mundo estava em pé de igualdade agora. Mas com uma mudança importante, ideia brilhante do piloto Ingo Hoffmann, um dos nossos pilotos: em vez do habitual limite máximo da taxa de compressão, havia um limite mínimo, 12:1. Desse modo era inútil usar pressão de turbocarregamento muito alta, pois ocorreria a destruidora detonação.
De novo, o motor VW sobressaiu e a marca foi tetracampeã de Construtores. Mas com a formação da Autolatina anunciada ainda em 1986 e consolidada em 1987, as coisas mudaram na VW. Uma delas ocasionou um fato curioso.
A balança que assustou
Em 1987 houve a determinação de que não poderíamos mais usar o dinamômetro da engenharia na Ala 17. Desenvolver e medir motores, só no Centro de Pesquisa da Ford, na via Anchieta, sentido São Paulo.
Precisando usar um dinamômetro, lá foi o engenheiro Luiz Antônio ao Centro de Pesquisa levando dois motores numa Kombi. A chegada daquele “estranho da VW” num ambiente Ford causou inquietação misturada com curiosidade. Um dos funcionários da Ford fez perguntas sobre o motor VW, qual a potência, essas coisas. Quando o Luiz Antônio respondeu “uns 155 cv” ele notou que o “fordiano” fez cada de quem não acreditou muito.
Motor colocado na bancada, tudo pronto, dada a partida para aquecimento, temperatura normal atingida, o Luiz Antônio deu a primeira puxada com carga. Para quê….
A medição de força ainda era do tipo antigo, por balança de braço com peso. Assim que o Luiz deu carga total, acelerador todo aberto, o braço da balança chegou ao batente, com forte pancada e ruído. Os “fordianos” que estavam na sala dos dinamômetros tomaram um enorme susto, pois nunca haviam visto aquilo acontecer com motores de quatro cilindros. Foi necessário deslocar o peso no braço da balança para poder medir o motor, que chegou a 160 cv naquele dia!
A incredulidade do pessoal da Ford na potência que o Luiz Antônio havia informado acabou ali mesmo, na hora…
BS