Já enquanto editava a matéria do Daniel S. de Araújo sobre o Paulistinha me bateu uma saudade danada do tempo em que comecei a aprender a pilotar avião pelo idos de 1961, com 18 anos.
O interesse pela aviação veio do singular fato de que a saída do aeroporto Santos-Dumont, no Rio de Janeiro, rumo sul, passava exatamente sobre nossa casa, na Gávea — hoje, após decolar, os aviões tomam proa da Ilha Rasa, mar a dentro, e depois viram à direita para seguir para o sul. Já no tempo do Electra II, e mais agora com os 737 e A319/320, era possível “pular” sobre o Pão de Açúcar, mas por segurança adotou-se a subida com bloqueio da Ilha Rasa.
Passava de tudo sobre a casa, de Fairchild PT-19 da FAB a Lockheed Constellation da Panair; Douglas DC-3 era o que mais havia. Havia vezes que passavam até baixo demais e à noite era comum ver a chama azul do escapamento dos motores radiais.
Adolescentes, eu e meu irmão lidamos com aeromodelos U-control, o motor que me lembro era o japonês OS 29, o número indicando 0,29 polegadas cúbicas, que vem a dar 4,75 cm³. O combustível era álcool metílico misturado com óleo de rícino.
Nosso tio Paulo nos trouxe da França um motor desses, só que Diesel, sem a “vela” glow plug. O combustível era complicado, até éter levava na mistura, mas para nossa decepção o motor jamais funcionou, nem uma única combustão sequer para nos alegrar. Até que um dia enfiamos tanto combustível no motor que aprendemos o significado de calço hidráulico: o motor arrebentou por completo. Foi para a lata de lixo.
Assim foi que viemos apreciando avião e aviação. Assistíamos filmes de guerra aérea (havia muito naqueles anos 1950) e pudemos assistir o épico “Um fio de esperança” (The high and the mighty, de 1954), o primeiro filme aerocatástrofe do cinema. Era um vôo de Honolulu a São Francisco em que ocorre problema num dos motores do DC-4, disparo de hélice, uma das pás atinge a asa e fura um dos tanques. O drama então é se o avião consegue chegar à costa da Califórnia ou será preciso amerrissar por falta de combustível, a briga entre o comandante Robert Stack e o co-piloto John Wayne, o primeiro queria amerrissar e o segundo, não, a mudança de comportamento dos passageiros diante da possibilidade da morte. A canção-tema ganhou o Oscar.
Serviço militar
Chega, então, o momento de prestar o serviço militar obrigatório. Um ano de caserna não era exatamente o que eu e o mano pensávamos. Fazer o CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) não tinha nada a ver com o nosso jeito. Em conversa, um amigo, vizinho de muro, disse que quem tirasse o brevê de piloto ficava dispensado de servir.
Lá foram os irmãos ao Aeroclube do Brasil, no bairro de Manguinhos, na Av. Brasil, colher informações. De fato, era isso mesmo. Eu ainda não tinha 18 anos, o mínimo para começar a ter aulas, e só meu irmão se registrou no curso de pilotagem; eu, só no ano seguinte. Com o brevê na mão — brevê de brevet, em francês patente, licença, “carteira” — ia-se ao Ministério da Aeronáutica e se requeria certificado de serviço militar prestado, que se recebia como soldado de 2ª classe, ficando quites com o serviço militar.
Assim, no início de 1961, 18 anos completados em novembro, comecei o curso. O meu instrutor era um gaúcho, filho de alemães chamado Salo Roth, tinha toda pinta de piloto da Luftwaffe. Que piloto! Voávamos em instrução tanto de CAP 4 quanto de P-56. Seu método de instrução era deixar o aluno fazer besteira, mas quando percebia desatenção era uma bronca para não esquecer.
Comecei a aprender decolagem e pouso num P-56. Na primeira decolagem, alinhado com o eixo da pista, potência: a reação ao torque do motor tirou o avião da reta, saímos do asfalto para a esquerda e fomos parar no acostamento. O Salo riu mas disse: ‘Te falei que tinha da calçar pé direito, não falei? Faça isso da próxima vez!”. Na hora de dar potência para iniciar a rolagem para decolar, leme à direita, que o avião reto no eixo. A segunda tentativa deu certo, leme direito na hora certa, decolagem sem problema.
Como o primeiro vôo solo seria num CAP 4, voamos bastante nele também. Nesse caso eu sentava no banco traseiro para já ir aprendendo a pilotar ali quando chegasse o momento “do pinto sair da casca do ovo”. Era assim por questão de balanceamento do avião, voar solo era no banco traseiro. No P-56 o solo era no banco dianteiro, bem melhor.
O Salo era de opinião, e tinha liberdade para tanto como instrutor credenciado, que antes do primeiro vôo solo o aluno deveria dominar todas as manobras do avião. Por isso eu já estava com 18 horas de instrução mas ainda não havia solado (havia quem solasse com 8 horas apenas).
Só que aí aconteceu o desastre: o presidente Jânio Quadros mandou fechar o Aeroclube do Brasil. Da noite para o dia. Tudo porque houve uma quase-colisão de um North American T-6 da FAB com o Vickers Viscount presidencial, na cercanias do aeroclube, e por essas coisas típicas de Brasil, o AeCB acabou pagando o pato. Fechou de vez e eu no meio do curso.
O jeito foi “me mudar” (outros alunos e o Salo também) para o Aeroclube de Nova Iguaçu e continuar o curso lá. Praticamente todo dia pegava a Vespa e “viajava” até Nova Iguaçu, bem longe da Gávea, num tempo que se tinha que passar pelo centro da cidade para depois seguir viagem pela Av. Brasil rumo à rodovia Presidente Dutra. Quando chovia ia de DKW, mas muitas vezes chegava lá e não tinha vôo, a pista era de grama e ficava encharcada.
Foi em Nova Iguaçu que um dia, após uma sessão de decolagem e pouso, o Salo me mandou para o avião na lateral da pista, próximo ao prédio do aeroclube, tirou o cinto, abriu a porta e disse: “Está contigo agora”. Chegara o momento especial na vida de qualquer aluno-piloto, o primeiro vôo solo.
De repente, aquele banco dianteiro do CAP 4 prefixo PP-ROL estava vazio! Dependia exclusivamente de mim levar o avião para o ar e trazê-lo de volta ao solo. O Salo tinha avisado que o avião ficaria diferente sem o peso dele, mas eu não aquilatara quanto. Ja na aceleração inicial, muito mais rápido. A roda traseira em poucas dezenas de metros deixou o solo e muito mais cedo que antes foi atingida velocidade aerodinâmica de vôo, puxando ligeiramente o manche e o ROL alçando vôo. Que sensação! O avião respondia mais rápido aos comandos e rapidamente chegou aos 1.000 pés (300 metros) de altitude.
Agora era o momento crucial, o pouso. Iniciado o planeio com motor em marcha-lenta, como custava mais a perder altura. Eu não queria perdera minha primeira aproximação solo da vida de maneira alguma. Como o CAP 4 não tinha flapes (tampouco o P-56), apliquei o que o Salo tão bem me ensinara (por isso é que ele só liberava para o primeiro solo depois de o aluno aprender tudo sobre o avião), fiz uma glissagem (do francês glissage, derrapagem), manobra que consiste em dar inclinação pelos ailerons e leme cruzados, em que o avião perde altura mais rapidamente numa atitude até um pouco estranha, mas segura. Sucesso, cruzei a cabeceira na altura correta e fiz um pouso perfeito. Eu havia solado! Voltei ao ponto onde o Salo havia desembarcado, ele continuava lá e disse: “Repita duas vezes!”. E lá confirmei o meu primeiro vôo solo.
E o banho de óleo queimado, como vai ser?, pensei logo. É uma tradição na aviação após o primeiro vôo solo tomar-se um “banho” de óleo velho. Mas achei que não muito a ver ficar todo melado de óleo e assim que estacionei o CAP 4, corri para a Vespa e me mandei…
O Salo depois voou na aviação executiva no Brasil e nos Estados Unidos, aposentou-se e mora em São José dos Campos. Nunca mais o vi, mas estamos sempre nos correspondendo por e-mail. Ficamos amigos, eu sempre entendi que as broncas em vôo faziam parte do aprendizado e isso serviu para me forjar. Depois da instrução era comum irmos à cantina do aeroclube tomar uma cerveja.
Tudo isso dá mesmo uma imensa saudade, mas é só parte das minhas andanças pelos ares. Vou voltar a esse assunto proximamente, garanto, faço questão de compartilhá-la com o leitor porque tem muito a ver também com o dirigir automóvel. Inclusive, falar mais da teoria de vôo, comandos do avião e muitos outros detalhes que valem a pena conhecer.
E ao Daniel S. de Araújo, amigo que nunca vi mas nem por isso menos amigo, meu agradecimento por me levar a fazer “a busca no meu HD” e achar tanta coisa que havia ficado para trás.
BS