Essa é a terceira parte de uma trilogia que comecei contando minha origem nas corridas e a história do meu primeiro carro de corrida, um Passat, depois contei as agruras de minha primeira corrida, que terminei num excelente segundo lugar e, agora, finalmente, vou contar aos leitores e leitoras como foi aminha primeira vitória, em 1983.
Depois da minha primeira corrida, que foi lá pelo meio de 1981, eu precisava treinar e aprender um pouco mais, por isso ingressei nos treinos de aprendizado. Numa dessas provas, um acidente com o meu Passat, que era pilotado por um amigo — o carro rodou numa curva e bateu de ré no guard-rail, sofrendo grandes danos. Na verdade, virou um “Passat hatch”, perdendo toda sua protuberância da traseira. O conserto daquele estrago só foi possível emendando-se uma traseira nova naquela carroceria do meu velho e bom Passat
Em 1982, já com o carro bem arrumado e com novo visual, ostentando agora o número 10 em vez do 36 da primeira corrida, fiz um Campeonato Paulista de Turismo 1600 bem decente, em que sempre finalizava entre o terceiro e quinto lugar. Aprendi muito nesse período no que diz respeito preparação, acerto do carro para a corrida e, principalmente, como me comportar no meio de pilotos tanto mais experientes quanto aqueles com menos prática.
Não só eu, mas a equipe como um todo evoluiu. Nosso preparador, Milton Cozzolino Jr., o “Ruivo”, foi experimentando taxas de compressão, acertos de comando de válvula, carburação e ponto de ignição, e os resultados positivos foram aparecendo. Antes do início da temporada de 1982, recebemos em nossa equipe o piloto também iniciante Michael Walter (lê-se “Mirrael”, já que ele é de origem alemã). Ele confiou em nosso know-how de acerto dos carros e confiou à nossa equipe a preparação do seu Passat, para competir na mesma categoria que eu.
Com uma estrutura melhor, trazia consigo o patrocínio dos rolamentos FAG, que ajudava a pagar os custos e despesas da estrutura toda. Logo no início da temporada, Mic, como era apelidado Michael, mostrou-se competitivo, e estava sempre entre os primeiros do campeonato. Mas, força daqui e força dali, ele também acabou batendo feio na curva mais veloz do circuito de Interlagos, a antiga curva Um. Nessa ele perdeu completamente seu Passat, que ficou irrecuperável.
Como tinha uma boa estrutura graças ao patrocínio, compramos uma carroceria nova e refizemos seu carro do zero. Aí sim, nasceu um carro campeão, que só trazia de seu antecessor acidentado a mecânica. Tinha melhor rigidez torcional graças à carroceria nova, e aproveitamos para eliminar peso deixando de repor o material fonoabsorvente de produção normal que o carro original possuía. Mais leve e torcendo menos, o Passat ficou rápido, e o Michael chegou a fazer algumas pole positions e liderar corridas do campeonato com ele.
O fato é que esse Passat novo nos fez sonhar com a prova de longa duração mais conhecida e respeitada do automobilismo brasileiro, que seria realizada em janeiro de 1983: a famosa Mil Milhas Brasileiras. A proposta foi feita para a FAG, que imediatamente gostou da ideia de apoiar nossa equipe nessa grande e longa empreitada, já que mostrávamos resultados positivos. Terminamos o Campeonato Paulista de maneira que todos já tínhamos direito à carteira, desportiva de PC (Piloto de Competição), e não sermos mais pilotos Estreantes e Novatos.
Sabíamos que uma prova de mil milhas, ou pouco mais de 1.600 km, era realizada em cerca de 12 horas. Bem difícil para o carro e seus pilotos, e que exigiria muito da equipe inteira, desde mecânicos, abastecedores e por aí vai. Logo iniciamos a preparação do nosso Passat mais rápido, aquele do Mic, para correr as 12 horas ininterruptas, e não íamos nos contentar apenas em participar: queríamos a vitória.
Eu era o piloto mais velho, então com 28 anos. Logo em seguida, vinha meu amigo Alvino Pereira Jr., o “Coronel”, com 26. Ele era o mais rápido do grupo. O terceiro, o Mic, dono do carro e do patrocínio, já era um piloto maduro, mostrando-se veloz nas provas do Campeonato Paulista, despontando sempre a frente das corridas. Era um time que não ia levar desaforo para casa.
Na preparação do carro tudo foi pensado para uma prova longa: esqueça a receita do motor 1600 de antes. Para essa prova, “Ruivo” adotou uma taxa de compressão mais baixa, com acerto de comando de válvulas praticamente igual ao original, pistões e bielas escolhidos a dedo dentro das especificações da VW, mas sempre com o peso mínimo, fora o balanceamento do conjunto polia/virabrequim/volante/platô de maneira que o motor girasse liso e livre, sem vibrações. Isso suportando fácil as 12 horas, chegando aos finais de reta a 7.000 rpm em quarta marcha. Entrava ainda um carburador Weber miniprogressivo de 32 mm de corpo duplo em vez do Solex original do carro. O Weber era novo, então mais confiável, embora resultasse em menos potência.
Nos freios, por exemplo, pastilhas com um composto um pouco mais duro do que aquele das provas rápidas, para ter frenagem com menos eficiência, mas num conjunto mais duradouro. Geometria de suspensão dianteira e direção: priorizamos a durabilidade dos pneus Pirelli CN36, que deveriam servir para toda a corrida, sem troca. Perdíamos um pouco de tempo em curvas, mas garantindo a durabilidade dos pneus.
Todo o sistema elétrico foi refeito, desde chicote até alternador e bateria. O alternador original de 35 A deu lugar a um de 55 A, para garantir energia para aqueles potentes faróis dianteiros durante toda a madrugada, e, se precisasse, a bateria de 36 A·h também foi trocada por outra de 54 A·h, mais pesada, mas suportando a sobrecarga do sistema elétrico. Se chovesse, precisaríamos dos limpadores, o que demandaria mais energia. Melhor sobrar do que faltar.
Cuidando de todo o dimensionamento da parte elétrica do carro, tínhamos o estudante de engenharia Mathias Budweg, que hoje, não por acaso, é um dos diretores da Bosch dos EUA. O “Ruivo cuidava da mecânica e Mathias da elétrica, os dois trabalhando juntos. Estava prevista na nossa parada às 6h00, quando o dia amanhecia, um dos membros da equipe com ferramentas próprias desconectar e retirar o farol auxiliar de longo que ficava na frente do radiador. O dia esquentava, e quanto maior a área de ventilação frontal, melhor. Isso salvou nossa corrida.
Participaríamos das Mil Milhas na classe de até 1600 cm³, e para isso deveríamos seguir o regulamento do Campeonato Paulista de Turismo 1600, ou seja, nosso carro estava pronto. Na 13ª Edição das Mil Milhas de 1983, que ocorreu nos dias 29 e 30 de janeiro daquele ano fazendo parte dos eventos de comemoração do 429º aniversário da Cidade de São Paulo, existiam algumas classes na categoria Turismo: até 1.300 cm³ (onde corriam os Fiat 147), de 1.301 cm³ a 1.600 cm³ (os Passat, incluindo o nosso), e acima de 1.600 cm³ (Chevrolet Opala, Ford Maverick V-8, etc.), além da categoria Hot Car, carros de turismo “envenenados” com alterações permitidas na carroceria e pneus de competição slick.
Na Mil Milhas, naturalmente, largavam muitos carros, cerca de 65. Nossa equipe, a FAG Afinauto, contava dez integrantes incluindo os três pilotos. Milton, o “Ruivo” era o preparador e cuidava do carro; Mathias, como uma espécie de chefe de equipe, coordenava a corrida; Thomas Budweg (irmão do Mathias, que se aposentou em 2020 como coordenador da área de novos projetos e protótipos da VW), Antônio Carlos Machado (“Toninho”), além do saudoso amigo Carlos Eduardo do Amaral, o “Cabral”, ficavam encarregados pelo reabastecimento nas paradas. Os três últimos eram estudantes de engenharia mecânica.
Como mecânicos, Edson Magno, o “Testa”, e Lourival Viana, o “Loro”, ambos também já falecidos, cuidavam da manutenção e reparos do Passat quando necessário. No trio de pilotos, eu, Alvino e Michael.
Na classificação, como nosso carro era muito mais confiável do que rápido, ficamos depois do quinquagésimo tempo, nem me recordo mais. Largaríamos lá no chamado “pelotão da mer…”, já que lá quase sempre aconteciam as falhas e erros, e eram comum acidentes. Mas isso pouco importou para nós, afinal seriam mais de 12 horas de corrida, e a posição de largada pouco fazia diferença.
Depois dos vários treinos diurnos e noturnos que a corrida permitia, fomos para a prova cuja largada seria na meia-noite de sábado para domingo. O escolhido para largar fui eu, pois a equipe acreditava que meu cuidado ao volante ajudaria, assim como a menor competitividade. O que interessava naquele pelotão bagunçado era apenas manter o carro na pista, e rodando, sem acidentes ou imprevistos.
às 23h45 de sábado, dia 29/1, fui dar minha volta de apresentação para posicionar o carro no grid de largada, e nessa volta veio uma surpresa desagradável: o carro falhava e não tinha potência. Mal consegui completar a tal volta de apresentação. Ao invés de ir para o grid, corri para o box, e a equipe entrou em pânico: o que estava acontecendo? Eu sabia que era problema no sistema de alimentação, e quando os mecânicos foram olhar logo descobriram: em uma das verificações, alguém tirou e colocou o tanque de combustível novamente, só que esmagando a mangueira que alimentava o motor.
Problema resolvido na hora, em menos de um minuto, mas quando fui dar a segunda volta de apresentação, o box já estava fechado. Assim, eu só largaria depois que o último carro passasse pela saída dos boxes, e foi o que aconteceu. Depois que aquela turma de mais de 60 carros passou, aí pude entrar na pista, começando em último lugar. E para completar, como desgraça pouca é bobagem, na primeira volta, na curva do Pinheirinho, com a pista lavada de álcool e gasolina de quem havia passado antes, acabei dando uma rodada daquelas que se perde o rumo. Endireitei o carro e recomecei, afinal de contas era só a primeira das 204 voltas.
Tínhamos combinado que nosso ritmo de corrida era virar na casa dos quatro minutos com o dia claro e em torno de 4min10seg quando fosse noite. Pois bem, meu ritmo desse início de corrida na madrugada seria virando 4min10seg, um tempo fácil de fazer já que o carro era bom, em que pese sua potência limitada. Segundo Mathias, que comandava o ritmo da corrida de nossa equipe, deveríamos virar naquele tempo estipulado, e a cada 2 horas faríamos a troca dos pilotos e o reabastecimento do carro. Assim pretendíamos, depois de 12 horas, ter a vitória.
Só para que se tenha uma ideia, a Volkswagen disputava a prova na mesma categoria que nós, com um Passat preparado dentro da Ala Zero, ode ficava a oficina de assistência técnica da frota. O carro era um verdadeiro canhão, e virava na casa 3min50seg durante o dia e 3min55seg a noite, muito mais rápido que o nosso. Esse Passat da VW era pilotado pelo saudoso jornalista Charles Marzanasco Filho, o querido Charlinho, e seu companheiro Emilio Camanzi, na época ambos da Revista Quatro Rodas.
Para a nossa sorte, o Charlinho, em uma de suas pilotagens de madrugada, tomou uma fechada de um outro Passat no meio da antiga reta, perdendo o controle e batendo de frente no guard-rail. Ali terminou a corrida do Passat canhão feito na Ala Zero. Fomos inicialmente acusados de termos provocado esse tal acidente, mas a verificação do mapa da corrida provou que, no momento do ocorrido, nosso Passat FAG Afinauto, de número 54, estava em outro ponto do circuito. De forma alguma poderia ser o responsável pelo acidente que “vitimou” o carro da VW.
Nossa equipe funcionou como um relógio suíço: o carro não quebrou absolutamente nada em momento algum, fez apenas as cinco paradas programadas — às 2h00, 4h00, 6h00, 8h00, e 10h00, depois até o final da corrida as 12h30, tudo com precisão cirúrgica e dentro daquilo combinado pela equipe. Mathias monitorava volta após volta o tempo do carro, e, com uma placa e um farol, iluminava o tempo da volta anterior, mostrando ao piloto e dizendo se estávamos dentro ou fora do padrão.
Lembram-se do tal farol auxiliar retirado na parada das 6h00? Pois ele foi um dos fatores fundamentais para ganharmos. Explico: quando amanheceu, o tempo esquentou muito, e às 10h00 o sol forte incomodava. Nós estávamos em segundo lugar, a três voltas do líder, e em terceiro vinha outro Passat uma volta atrás. Naquele calorão típico de janeiro, passando um pouco das 10 da manhã, o Passat que liderava entrou nos boxes.
A equipe abriu seu capô e alguém jogou um balde de água fria no motor, levantando uma nuvem de vapor. Eles não tiraram os faróis auxiliares, que tampavam a grade do radiador. Com a alta temperatura, não deu outra: o carro deles ferveu, e lá no box mesmo ficou. No nosso box, a equipe já pulava e comemorava, já que viramos líderes da corrida na categoria Turismo até 1.600 cm³. O Mic, que estava ao volante, não pararia mais, e, naquela toada, venceríamos a corrida sem esforço.
Mas sabemos que em corrida nunca devemos ser presunçosos, já que tudo pode acontecer, inclusive o inesperado! Como utilizávamos o tanque de combustível do carro que disputava o Campeonato Paulista, ele tinha um dreno, obrigatório pelo regulamento do Campeonato Paulista, que servia para esgotar o combustível velho do tanque na hora do abastecimento e evitar fraudes. Na Mil Milhas isso não era necessário, mas nós tínhamos mesmo assim.
Como a Lei de Murphy atua nas mais variadas áreas e é inexorável, o bujão do tal dreno foi se soltando, e nós perdíamos combustível com isso. Pelo regulamento da Mil Milhas, a prova deveria se encerrar na volta número 204, e quem daria a bandeira quadriculada de final da corrida seria o então secretário Municipal de Esportes de São Paulo. O problema é que esse senhor estava distraído posando para a foto do ato da bandeirada. Pois bem, o carro que liderava a corrida no classificação geral, um Passat Hot Car, cruzou a linha de chegada mas não recebeu a bandeirada, assim como o nosso carro.
Pelo regulamento, a corrida terminava ali, na volta 204. Como o sinalizador errou, a bandeirada não foi dada, mas o que valia era o regulamento, e não o secretário com a bandeira quadriculada. Na volta 205, aquela “extra”, nosso carro parou por falta de combustível. Por mais que o Thomas tenha saído correndo dos boxes com um galão de combustível para reabastecê-lo na pista, a corrida encerrou-se na volta 205 e com a vitória de Amadeu Rodrigues na categoria, num outro Passat 1600. Ele era o carro que vinha uma volta atrás, que só conseguiu tirar a diferença quando nosso Passat parou sem combustível na volta 205.
Fiz meu ato político indo à direção de prova com o regulamento em mãos, mostrando que o encerramento foi na volta anterior, como previa o regulamento. A bandeirada da volta 205, atrasada, não tinha valor. Ciro Baumann, responsável pela cronometragem de toda a corrida, examinando o mapa da prova, confirmou: na volta 204, o Passat número 54 da Equipe FAG Afinauto passou em primeiro lugar dentro da classe até 1600 cm³. Pronto! Ufa, estava confirmada nossa primeira vitória na Mil Milhas Brasileiras.
A partir daí, só festa. A noite, no Gallery, uma extinta balada chique dos Jardins, em São Paulo, foi feita a festa de entrega dos prêmios, incluindo uma quantia em dinheiro, que dividimos entre os dez membros da equipe. Lá fomos receber nossos troféus da vitória, muito merecida, diga-se de passagem. Uma vitória que só foi possível graças a um trabalho conjunto de uma equipe que, aí sim, mostrou a que veio. Nesses últimos dias comemoramos 40 anos dessa verdadeira epopeia, que só foi possível graças à união de um grupo de amigos e a dedicação com que cada um cumpriu sua missão.
Aprendizado que mostrou que quando todos remam numa mesma direção, os bons resultados são certos. Agradeço aos amigos que me proporcionaram um evento como esse, alguns hoje trabalhando, alguns aposentados, e outros que já partiram para o outro lado. Essas são as boas coisas que levamos da vida.
P.S.: Vale falar da segunda grande vitória em minha carreira de piloto na Mil Quilômetros de Brasília em 2004, correndo com os Fiat Marea Weekend (que você pode ler sobre a preparação delas aqui)
DM