Algumas fontes falam que foi um livro, como se lê no site Film Obsessive em seu artigo “Herbie abre caminho em nossos corações com o filme da Disney ‘The Love Bug’¹” e que inicia com a seguinte frase:
Baseado no livro “Car, Boy, Girl”, de Gordon Buford, Herbie abriu caminho para a indústria cinematográfica e, posteriormente, para o coração do público em todos os lugares, desde então.
Realmente, o roteiro do filme foi adaptado de um escrito de Gordon Buford. A história original acabou nunca sendo publicada, com a Disney comprando os direitos para um filme antes de uma eventual publicação. Incrivelmente, este escrito foi perdido e, até onde se sabia, não havia nenhum texto dele sobrevivendo em qualquer lugar ou mesmo alguém ainda por perto que parecesse se lembrar de alguma coisa neste sentido.
Bem, isso é o que se sabia até pouco tempo. Recentemente, no eBay, vários itens do acervo de Bill Walsh, um conhecido roteirista e produtor da Disney já falecido, foram colocados à venda, e um deles parece ser uma cópia original de Car-Boy-Girl (seguem algumas fotos deste documento). E o que ficou claro é que não se trata de um livro, mas de uma brochura com um roteiro de filme, quebrando o mito de que a origem seria um livro.
O documento aparenta estar em boas condições e há uma foto detalhando a etiqueta da capa:
Nesta etiqueta aparece um segundo título “That Haverson Fellow” (Aquele companheiro Haverson) que não tinha sido citado até agora.
Na capa interna se repetem os dados da etiqueta, e é indicada a propriedade de Gordon Buffort da pequena cidade de Soquel na Califórnia, situada a 62 km ao sul de San José. O trabalho foi registrado na Writer’s Guild of America (Associação de Escritores da América).
Também fazia parte da documentação para venda fotos da primeira página e da última página de texto deste roteiro para filme:
Traduzindo o texto temos:
TÍTULO E CRÉDITOS POR ANIMAÇÃO
FADE IN
LONGA TOMADA DO EXTERIOR DE UMA FÁBRICA DE MONTAGEM DE UM PEQUENO AUTOMÓVEL EUROPEU (VOLKSWAGEN).
TOMADA COMPLETA DO INTERIOR PRINCIPAL.
SÉRIE DE PLANOS PRÓXIMOS E MÉDIOS DAS VÁRIAS OPERAÇÕES DA FÁBRICA.
TOMADA MÉDIA DA EXTREMIDADE FINAL DA LINHA DE MONTAGEM.
A narração começa nesse ponto, depois que meia dúzia de carros saem da linha.
UMA SÉRIE DE TOMADAS MÉDIAS VOLTANDO PARA A LINHA DE MONTAGEM ATÉ QUE A CÂMERA CAPTA UM CARRO ESPECÍFICO, AINDA SEM CARROCERIA, NO PROCESSO DE MONTAGEM.
A CÂMERA ACOMPANHA ESSE CARRO COM UMA SÉRIE DE PLANOS MÉDIOS E PLANOS FECHADOS AO LONGO DA LINHA DE MONTAGEM ENQUANTO ELE É TRANSFORMADO EM UM CARRO COMPLETO.
Trata-se de um semi-conversível (teto solar) de cor vermelho rubi.
NARRAÇÃO
O carro a motor. A máquina mais confiável, obediente, útil, agradável e necessária que o homem criou para si mesmo. A insondável engenhosidade e imaginação do homem tornaram possível a montagem de seis mil peças em doze segundos . Cada peça é produzida em massa, o que faz com que todos os carros sejam exatamente iguais. Sim, exatamente iguais.
A câmera segue o carro para fora da linha de montagem.
PLANO LONGO DO CARRO ENTRANDO NO DEPÓSITO MARCADO PARA: EXPORT-U.S. Ele desaparece de vista.
NARRAÇÃO
Cinco mil por dia, um a cada doze segundos, e todos eles são exatamente iguais.
[Fim da transcrição da primeira página do script original]
Desta primeira página se nota que o carro, segundo o Gordon Buford era para ser um Volkswagen, tanto que tomadas eram previstas para serem feitas na fábrica de Wolfsburg.
Mas para se certificar se o carro certo para interpretar Herbie seria um VW Beetle como previsto no script original, os Estúdios Disney dispuseram um elenco de carros estacionados do lado de fora do estúdio. Havia Toyotas, um TVR, um punhado de Volvos, um MG e um Volkswagen Beetle branco pérola.
No almoço, os produtores saíam e observavam a reação das pessoas em relação aos carros. Eles as viam chutando os pneus ou agarrando o volante para ver como ele se comportava. Mas quando se aproximavam do Volkswagen, elas simplesmente estendiam a mão e o acariciavam como se fosse um amigo. Assim, dentre todos os outros carros, o VW Beetle foi escolhido para interpretar o papel de Herbie, confirmando o previsto no texto original.
Gordon Buford havia previsto em seu texto um VW Beetle de cor vermelho rubi, mas no filme acabou sendo um branco pérola. Mas o teto solar foi mantido.
Já a última página, de número 124, revela o fim que o Gordon Buford havia previsto em seu script:
Eu também fiz a transcrição e tradução desta página, a saber:
ADONNA
Acho que vou gostar da faculdade.
CLAUD
Depende muito da companhia que você tem.
Eles se aproximam para um abraço e um longo beijo.
PLANO MÉDIO
O motorista de um carro que se aproxima fica de olhos arregalados ao ver Claud e Adonna se abraçando sem ninguém dirigindo o carro.
PLANO PANORÂMICO
O motorista está olhando para o lado, para Claud e Adonna, enquanto seu carro sai da estrada e passa exatamente por uma cerca de estacas. As estacas voam para fora e para cima em um padrão quase perfeito enquanto o carro segue a cerca e finalmente volta para a estrada.
A IMAGEM FINAL é feita pelo vidro traseiro do carro de Claud enquanto eles ainda estão se beijando. O carro se afasta gradualmente da câmera.
FADE OUT
FIM
[Fim da transcrição da última página do script original]
Os nomes “Adonna” e “Claud” não chegaram a ser usados no filme que acabou tendo Carole Bennett, vivida por Michele Lee e o Jim Douglas, vivido por Dean Jones.
Sem esquecer de Tennessee Steinmetz, vivido por Buddy Hackett. Aliás o nome Herbie vem de uma cena do show dele sobre esqui em Las Vegas, na qual ele fazia uma piada sobre uma “coelha da neve” que só saia com homens chamados Herbie.
A vontade de ler todo o texto do script de Gordon Buford vai ter que esperar, pois a ação de venda no eBay foi suspensa pelo vendedor sem informação do paradeiro do documento. Seria interessante se o atual proprietário divulgasse o seu conteúdo, dado o seu valor histórico.
As únicas dicas reais sobre a história vieram de um pequeno artigo que Buford escreveu para a revista corporativa da Volkswagen, Small World, na primavera do hemisfério norte de 1970:
(Transcrição e tradução desta primeira página:)
“O que lhe deu a ideia; quero dizer, um carro que pensa por si mesmo?” A pergunta de sempre. Como acontece com todas as boas ideias, ela parece tão simples que todos se perguntam por que não pensaram nisso.
Em uma primeira análise, as ideias parecem surgir, de repente, na consciência da pessoa. Mas não acho que seja tão simples assim. É preciso haver uma base. É preciso haver um conjunto de experiências que preparem a mente para juntar dois mais dois.
Crescer em uma fazenda no Colorado dá a uma pessoa uma sensação de insegurança sobre seu transporte que nunca vai embora. Eu me perguntava se conseguiria pegar um cavalo e colocar um freio nele ou se conseguiríamos fazer com que nosso velho carro ganhasse vida e fosse para a cidade e voltasse.
As mudanças de humor dos cavalos e dos carros eram totalmente inexplicáveis para mim. Certamente, havia momentos fáceis com essas duas criaturas imprevisíveis. Às vezes, porém, nem a persuasão gentil de minha mãe nem os palavrões de meu pai conseguiam fazer com que nosso carro deixasse sua rebeldia silenciosa e teimosa. A ansiedade de minha mãe (a retenção de sua respiração no momento da verdade, quando seu pé empurrava o pedal de arranque) sutilmente me levou à conclusão de que os carros, assim como os cavalos, têm personalidades, que eles exercem um poder inquestionável sobre nós, meros humanos.
Em mais de um piquenique, ouvi com certa apreensão a discussão, geralmente com o capô levantado, sobre se o carro “conseguiria chegar em casa”.
[Fim da transcrição da primeira página da matéria de Gordon Buford]
Abaixo mais alguns trechos desta matéria de Gordon Buford, se bem que a matéria em si não revela muito sobre a história original:
“Mas passar de uma premissa bastante simples de um carro que se dirige sozinho para uma história de longa-metragem é um grande passo, e não deixei de ter algumas dúvidas enquanto escrevia o roteiro. Por que esse carro era tão especial? Como ele alcançou uma existência tão exaltada em relação a seus milhões de irmãos e primos? E por que um Volkswagen entre as centenas de carros do mundo?
“A história original do ‘Love Bug’ era uma sátira à megalomania americana e ao culto à tecnologia. Essa paixão pelo grande se manifesta em um amplo sentido cultural no automóvel. Em 1959, a mania da barbatana caudal (N.d.T.: rabo-de-peixe no Brasil) no estilo da carroceria havia atingido seu zênite nauseante. Até mesmo alguns carros europeus tentaram colocar uma pequena barbatana aqui e ali.
“Até então, os Volkswagens pertenciam a um tipo de americanos que era considerado excêntrico, na melhor das hipóteses, e suspeito de todos os tipos de coisas obscuras, na pior delas. Na era das barbatanas traseiras, o Volkswagen simplesmente não podia ser de verdade. O carro era o polo absoluto, a própria antítese dos produtos e gostos americanos.”
Por falar em Volkswagen, como o Fabricante do Carro não tinha aderido ao projeto os Estúdios Disney, apesar de ser uma tarefa impossível devido à conhecida forma do carro, retiraram todas as identificações da marca do carro. Mas com o sucesso do primeiro filme da série nos demais a Volkswagen entrou com força nos projetos.
Buford escreveu apenas um outro conto, sobre um cão ladrão, que também foi comprado pela Disney e se tornou o filme My Dog, The Thief (Meu cão, o ladrão), de 1969 (mesmo ano de The Love Bug).
As descobertas do leilão no eBay e da matéria na Small World são descobertas importantes para aqueles que se interessam por Herbie, e se interessam em estudar as origens do Herbie, amado por milhões de fãs espalhados pelo mundo.
Chegando ao fim da matéria apresento uma sequência do filme The Love Bug com a participação de um urso no carro do vilão Thorndyke, personificado por David Tomlinson com uma das mais divertidas cenas com um urso:
O que torna esta piada de urso tão boa é como os papéis são invertidos entre urso e humano infeliz. No início, o urso é o aterrorizante, mas uma vez que ele faz Thorndyke desmaiar na direção, então o urso começa a se assustar no carro descontrolado, e a maneira como o urso tenta sacudir Thorndyke para acordá-lo com sua grande pata de urso é o ponto alto desta sequência.
Os Estúdios Disney, mesmo tendo retrabalhado bastante o roteiro inicial, respeita sua autoria indicando nos créditos do filme como roteiristas: Bill Walsh, Don DaGradi e Gordon Buford.
Mas, para matar a curiosidade sobre o roteiro inicial do Gordon Buford vamos ter mesmo que esperar a boa vontade do atual proprietário dele.
(¹) – O filme “The Love Bug” no Brasil recebeu o título de “Se meu Fusca Falasse parafraseando um filme de 1960 estrelado por Jack Lemon e Shirley MacLaine ,”Se meu apartamento Falasse”— título original “The Apartment”. Não há dúvida que nesta titulação em português houve malícia no sentido das atividades que também eram exercidas nos Fuscas pela juventude da época.
AG
Para esta matéria foram feitas pesquisas nos seguintes sites: theautopian.com com o trabalho de Jason Torchinsky; disney.fandom.com; mouseplanet.com com o trabalho de Jim Korkis; metv.com com o trabalho da equipe MeTV Staff; filmobsessive.com com o trabalho de Kacie Lillejord; imdb.com; e Wikipédia. Informações sobre esta fontes podem ser dadas sob consulta.
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