Esta matéria foi elaborada com informações de quem esteve lá junto com Ferdinand Porsche, no caso o seu sobrinho e secretário Ghislaine Kaes, que vamos conhecer um pouco melhor adiante. Muitos sabem que Porsche esteve nos EUA para colher informações, mas eu acho que raramente esta viagem de estudos foi relatada desta maneira.
Já no começo de 1936 Porsche estava pensando em viajar aos EUA, mas uma série de acontecimentos acabou adiando a partida mais para o terceiro trimestre daquele ano. Um dos mais importantes acontecimentos de 1936 foi a realização do teste com os protótipos V3.
Em setembro, porém, Ferdinand Porsche estava pronto para deixar tudo de lado por seis semanas, delegando a supervisão do teste do V3 para seu filho Ferry e outros engenheiros e mecânicos. Em 19 de setembro de 1936 (aniversário de seu filho Ferry), Porsche disse pela primeira vez a seu secretário Ghislaine Kaes que queria fazer a viagem transatlântica em outubro. A decisão final veio dois dias depois, e Kaes teve então dez dias para organizar a viagem dos dois.
Ghislaine Kaes (07/07/1910 – 30/03/1986)
Ghislaine Kaes nasceu em Londres, onde seu pai, um austríaco, era importador geral de veículos Austro Daimler. Ele era irmão da esposa de Porsche, Aloisia Johanna Porsche, nascida Kaes, Por isso, Ghislaine era sobrinho por afinidade de Ferdinand Porsche. A família voltou para a Áustria e, depois da escola, Ghislaine Kaes aprendeu contabilidade e taquigrafia.
Quando seu tio, Dr. Ing. h.c. Ferdinand Porsche, que trabalhava na austríaca Steyr na época, quis um secretário em quem pudesse confiar, ele deu o cargo a seu sobrinho Ghislaine Kaes. Esse foi o seu primeiro emprego, aos 19 anos.
Quando a empresa Porsche foi fundada em Stuttgart em 1930, Ghislaine Kaes acompanhou seu chefe. Ele era o braço direito do talentoso engenheiro e o acompanhava em suas viagens mais importantes.
Durante a guerra, ele se recusou a trocar seu passaporte inglês. Ele estava ao lado do leito de morte do Professor em 30 de janeiro de 1951, provavelmente tendo conhecido o velho professor melhor do que qualquer outra pessoa.
Depois disto, Ghislaine Kaes permaneceu na Porsche e levou o primeiro Porsche 356 de produção — o 356/2 — para a Inglaterra em 1951, entregando-o pessoalmente a Charles Meisl, um tchecoslovaco nascido em 1917 e radicado na Inglaterra, onde era vendedor de automóveis. da firma Connaught Cars, em Surrey. Como Meisl era bem articulado, consegui um estande no Salão de Londres de 1951, em Earls Court, tendo o carro chamando enorme atenção.
Ghislaine Kaes pode ser considerado o fundador dos arquivos da Porsche. Ele criou os maiores arquivos sobre os primeiros dias da Volkswagen, e esses documentos ainda fazem parte dos arquivos da Porsche.
Porsche queria que apenas os dois viajassem. Ele queria ganhar experiência na construção de uma fábrica que pudesse produzir um milhão de veículos por ano. Tal fábrica não existia em nenhum lugar da Europa, então ele teve que atravessar o Atlântico para ver como isso poderia ser feito.
Em 1º de outubro de 1936, Porsche e Kaes saíram de Stuttgart de trem noturno para Paris, onde visitaram o Salão de Paris (“amargamente decepcionante”, escreveu Kaes). A França estava em meio a uma crise financeira e estava meio paralisada por greves. No dia seguinte, eles viajaram para Cherbourg, na França, onde embarcaram no transatlântico “Bremen” para a travessia de cinco dias do Atlântico até Nova York.
Ghislaine Kaes lembrou-se de como Porsche se interessava por todos os detalhes do navio e passava muito tempo na sala de máquinas. O tamanho das máquinas fascinava Porsche; ele era um engenheiro por completo. Cada detalhe foi registrado no caderno de Ghislaine Kaes — pesos, dimensões, aspectos práticos.
Kaes também se lembrou de como Porsche ficou consternado quando, depois de três dias no mar, um comissário de bordo cometeu suicídio se jogando no mar A espera de 90 minutos para encontrar o mordomo resultou num atraso da viagem. Assim que desembarcaram nos Estados Unidos, Ferdinand Porsche se interessou por tudo que via ao seu redor.
Assim que desembarcaram na América, Ferdinand Porsche se interessou por tudo o que via ao seu redor. Os dois visitaram o arranha-céu Empire State Building, e foram ao cinema (Porsche adorava filmes) e assistiram à famosa corrida da Vanderbilt Cup. Ocasião em que Porsche prometeu inscrever um de seus carros de corrida Tipo 22, um carro de corrida da Auto Union, para participação nesta corrida. em 1937.
A foto do edifício Empire State Building que no ano de 1936 reinava na península de Manhattan, com seus 443 metros de altura (incluindo a antena) e que foi inaugurado em 11 de abril de 1931. Curiosamente, aparece também na foto o dirigível alemão Hindenburg, que seria destruído em desastre no dia 6 de maio de 1937 ao atracar no campo de pouso da base naval de Lakehurst, em New Jersey:
Porsche também foi convidado a falar no Hangar Club, uma associação de entusiastas de motores e engenheiros. Os tópicos abordados foram turbocarregamento em motores de aeronaves e as cargas nos mancais de motores boxer, como Kaes lembrou mais tarde.
Logo depois, viajaram de trem para Detroit, onde queriam dar uma olhada na produção automobilística americana. Eles permaneceram na “Motor Town” (Cidade do Motor) americana e em seus arredores por mais de duas semanas.
A primeira visita foi à grande fábrica da Ford no rio Rouge, perto de Detroit, em 14 de outubro. Porsche ficou impressionado com o tamanho da fábrica: 75.000 funcionários trabalhavam somente nessa fábrica, 140.000 no total na Ford, 2.500 aprendizes, e havia um estacionamento de funcionários de dois quilômetros de comprimento com 25.000 carros: 95% dos funcionários tinham um Ford! Bebidas alcoólicas e fumo eram proibidos.
A linha de montagem começava a funcionar lentamente pela manhã e depois acelerava 30% por volta das 11 h. Após a pausa para almoço, recomeçava em um ritmo mais lento, que voltava a aumentar à tarde, embora não tão rapidamente como pela manhã. Porsche pediu a Kaes que anotasse tudo -— este era um modelo para a sua futura fábrica de automóveis!
A fábrica de 650.000 m² era mantida limpa dia e noite por 5.000 funcionários de limpeza. Todos os meses eram necessárias 5.000 vassouras novas e 69 toneladas de sabão, observou Kaes. O fato de a Ford possuir 30 navios, sete dos quais eram oceânicos, impressionou muito a Porsche.
A usina de energia, que produzia 325.000 quilowatts de eletricidade e era arrefecida por 5.677 litros de água por minuto do rio Detroit, também era impressionante.
Nos dias seguintes, os cadernos de anotações foram ficando lotados de informações quando eles visitaram a Lincoln, subsidiária da Ford, bem como os laboratórios Edison, a fábrica da Packard e a Chrysler. Em 22 de outubro de 1936, eles visitaram o maior edifício comercial do mundo, a sede da General Motors.
O dia seguinte foi passado na fábrica de carrocerias Fisher, provavelmente a mais moderna fábrica de prensagem de carrocerias do mundo. Em todos os lugares por onde passavam, Porsche fazia perguntas sobre prensas de carroceria, técnicas de soldagem, tempos de produção, quantidades por hora, custos, composição de ligas,, etc. Quase todas as perguntas foram respondidas pelos representantes das empresas — apenas ocasionalmente uma resposta era negada.
Outra questão que sempre interessou ao Porsche foi a dos salários e das condições gerais de trabalho. Estava completamente claro para ele que, se quisesse realizar seu projeto Volkswagen, também teria que contar com os funcionários. Ele ficou muito impressionado com a limpeza geral das fábricas, bem como com a iluminação (as luzes fluorescentes eram relativamente novas na época, mas amplamente utilizadas nas fábricas dos EUA). Ele também ficou impressionado com as condições sociais. Por exemplo: todos, trabalhadores e chefes, almoçavam juntos num grande refeitório.
Depois de uma visita à “Ex-Cell-O”, uma fabricante de máquinas especializadas, eles pegaram o trem para Chicago e, dois dias depois, visitaram a Bendix Corporation em South Bend, Indiana, uma fabricante de freios e carburadores.
No dia 28 de outubro, Porsche e Kaes visitaram a Cincinnati Milling Machine Company, um dos mais importantes fabricantes de máquinas para produção de peças de motores e outras tecnologias de precisão. As condições de entrega das máquinas para a Alemanha foram discutidas detalhadamente.
No dia seguinte eles voltaram para Chicago, onde Porsche comprou um Packard-Six novo. Na verdade, ele queria um Ford novo, mas a fábrica não conseguiu entregar o carro no prazo que eles necessitavam. O Packard custou US$ 1.000. Porsche calculou imediatamente quanto o carro custava em Reichsmarks (moeda alemã da época, marcos do Reich – RM) e chegou a um preço por kg de 1,72 RM — menos do que o preço projetado para o Volkswagen. Segundo as notas de Ghislaine Kaes, Porsche tentou durante muito tempo descobrir o segredo dos salários elevados nos EUA (em comparação com a Alemanha — ao contrário do que diziam os especialistas da RDA — Associação da Indústria Automobilística Alemã do Reich) e dos preços dos carros comparativamente mais baixos nos EUA.
Seguiram-se alguns dias de folga para ambos, durante os quais visitaram as Cataratas do Niágara e depois retornaram a Nova York no Packard, onde tiveram mais alguns dias de tempo livre. Porsche queria comparar companhias marítimas internacionais, por isso pediu a Kaes que organizasse a viagem de regresso à Europa no transatlântico “Queen Mary”, que era um navio novíssimo. O ano da viagem transatlântica inaugural do “Queen Mary” foi em 1936 e em agosto ele bateu um novo recorde mundial ao chegar a Nova York em menos de quatro dias. Eles embarcaram para a Europa em 4 de novembro.
A foto de abertura foi tirada a bordo do “Queen Mary” na saída de New York ao passar pela Estátua da Liberdade, que se vê através da bruma.
Curiosidade: como o “Titanic” se compara ao “Queen Mary”? O “Queen Mary” era 15% mais longo que o “Titanic” e 28% mais largo. Ela tem três vezes mais potência e foi capaz de viajar 39% mais rápido que o “Titanic”. O “Queen Mary” tem 3 deques de passageiros adicionais em comparação com o “Titanic”.
Em 1967, o “Queen Mary” completou sua última viagem de Southampton, Inglaterra, atracando em Long Beach, Califórnia, onde permanece permanentemente atracado, sendo uma atração turística do local.
Porsche novamente passou algum tempo na sala de máquinas. Contudo, os dois últimos dias de travessia foram menos agradáveis devido a uma tempestade atlântica muito forte. Porsche mediu e calculou que o navio inclinava 35° de um lado para o outro, mas nem ele nem Ghislaine Kaes ficaram enjoados.
Antes de regressarem à Alemanha, Porsche também queria ver como os ingleses construíam carros. Portanto, não deixaram o “Queen Mary” em Cherbourg, na França, mas permaneceram a bordo até Southampton, na Inglaterra.
No dia seguinte eles viajaram para Birmingham para visitar a fábrica da Austin em Longbridge, onde foram recebidos pelo Lorde Austin. Depois de ver as grandes fábricas americanas, Porsche não ficou particularmente impressionado com a fábrica inglesa.
Mas Porsche disse uma coisa a Kaes após a visita: o método inglês de cuidar do carro e dirigi-lo pelo maior tempo possível era o caminho certo. Ele era de opinião que a abordagem americana de sucatear os carros depois de quatro anos e meio era errada. As limitadas reservas mundiais de matérias-primas obrigavam a população a utilizá-las da maneira mais econômica possível.
Outra pequena história que Ghislaine Kaes relembrou muitos anos após a visita a Longbridge foi que houve uma discussão durante a visita (que ocorreu em 11 de novembro de 1936) sobre qual carro Porsche deveria pegar para dirigir pela fábrica, uma limusine normal de produção ou o carro do chefe. “O carro do Lord Austin também só tem quatro rodas”, foi o comentário de Porsche! Ghislaine Kaes costumava dizer: “Embora Ferdinand Porsche se encontrasse com frequência com pessoas em posições muito elevadas, ele nunca perdia o chão sob seus pés. Ele estava sempre e constantemente interessado no pequeno homem da rua — afinal, quem mais compraria o Volkswagen”?
Ferdinand Porsche e Ghislaine Kaes chegaram de volta a Stuttgart em 14 de novembro, bem no meio do teste do V3. Em sua maneira típica, Porsche já estava pensando em como poderia aplicar as informações e técnicas que acabara de adquirir à futura série do Volkswagen. E, ainda mais importante, ele estava pensando em como produzir os carros a um valor que tornasse possível o preço de venda dos mágicos 1.000 RM (valor imposto por Hitler). Em resumo, quanto de sua experiência americana poderia ser incorporada ao Volkswagen?
E Porsche voltou para Nova York em 1937 para vencer na Vanderbilt Cup no dia 5 de agosto
Desta vez seu filho Ferry Porsche se uniu ao grupo para acompanhar uma corrida realizada em meio a uma situação geopolítica muito tensa. Participaram da corrida carros da Auto Union, Mercedes, Alfa Romeo (com a Scuderia Alfa Romeo chefiada por Enzo Ferrari). Nomes como Bernd Rosemeyer, Rudolf Caracciola e Victor Tazio Nuvilari participaram da corrida no autódromo Roosevelt, de Long Island, perto de Nova York.
No dia da corrida, todos os olhares dos cerca de 80.000 espectadores estavam voltados para os reluzentes e sobrenaturais Auto Unions. Em comparação, os outros carros de corrida pareciam totalmente modestos, e seu desempenho refletia isso.
O carro da Auto Union era revolucionário com seu motor central-traseiro V-16 com supercarregador era a mais avançada tecnologia experimental da época, projetada por Ferdinand Porsche. Desafiando esses saltos de desempenho estavam os pneus rudimentares do pré-guerra, as tecnologias de freios, aerodinâmica e de segurança que exigiam derrapagens massivas em cada curva e macacões de tecido comum e os protetores de couro como única proteção para os pilotos.
No fim das contas a vitória ficou com Rosemeyer e foi a única vitória dos bólidos da Auto Union nos EUA. E a Auto Union levou para casa a gigantesca Vanderbilt Cup e um prêmio de US$ 20 mil por seus esforços.
Uma curiosidade ainda no contexto desta corrida — a revista automobilística estoniana Auto, de 3/4 de 1937, escreveu: “O carro do povo (Volkswagen) é uma dor de cabeça! O Dr. Porsche, o construtor dos carros de corrida da Auto Union, disse que é mais fácil construir 10 carros de corrida do que um carro popular”.
Parabéns se você chegou até aqui. Para mim este assunto é muito interessante e eu espero que muitos se interessem por esta história única.
AG
Para este trabalho a pesquisa foi feita no livro “Der Käfer” de Chris Barber. As fotografias foram garimpadas em vários sites da internet, conforme indicado nos devidos créditos. No site do Audi Club North America encontrei dados sobre a Vanderbilt Cup.
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