Pois é, caros leitores, cá estou eu de volta, depois de uma viagem lindíssima. Mais uma vez, meu superplanejamento deu certo e apesar de termos feito um roteiro longo, por todo o Reino Unido, deu quase tudo certo. Pouquíssimos perrengues que, claro, sempre há. No meu caso, chegamos bem aqui, mas sem as malas. O kafkiano da situação é que a companhia aérea levou 11 horas para nos trazer de volta da Europa até São Paulo, mais 24 horas para transportar nossas malas da mesma origem até o mesmo destino e depois foram quatro dias até que fossem entregues na minha casa — saindo do aeroporto de Guarulhos. Muito, muito bizarro. Diga-se, quatro dias, um zilhão de telefonemas e um enorme e desnecessário desgaste. Mas elas chegaram bem e intactas. Felizmente, há tempos colocamos chip nas nossas bagagens e sabíamos exatamente onde estavam, com mais precisão até do que a companhia aérea, a cada minuto.
Mas, por que estou contando tudo isto? Para explicar o motivo pelo qual ainda não vou escrever sobre minha viagem nesta semana, mas sobre outro assunto que vinha pesquisando desde antes de viajar, pois ainda preciso separar tudo que estava na mala, baixar fotos, separar folhetos… Mas aguardem que, acho, valerá a pena.
Volto hoje a um tema que já abordei aqui, mas no qual, em função da atualidade, preciso insistir. A Câmara de Deputados voltou a colocar em pauta a votação sobre a liberação do porte de drogas abaixo de um certo limite, que passaria a ser considerado para consumo próprio.
A discussão teve uma reviravolta e agora pode voltar a ser crime portar qualquer quantidade de drogas. Ou não. Como no Brasil, assim como diz a canção de Lulu Santos, “tudo muda o tempo todo” e “tudo o que se vê não é”, escrevo aqui tudo sobre hipóteses e sobre o que acho que deveria ser levado em consideração, em termos de trânsito, antes de se aprovar algo assim. Isto porque não vejo esse debate em lugar algum — apenas a discussão ideológica e de costumes.
Tenho, é claro, minhas convicções pessoais sobre o uso e a liberação de drogas — de todas e de cada uma delas — mas isso não vem ao caso hoje. Digo isto porque meu ponto não é por uma questão de moral, ideologia ou religião, mas apenas de segurança no trânsito.
Como disse da outra vez, preocupa-me (olha aí uma ênclise de volta aos meus textos! Fazia tempo que não usava uma, não?) que não haja nem nunca tenha havido uma discussão sequer sobre os reflexos dessa, digamos, flexibilização em outros campos de nossa vida. Por exemplo, o trânsito. (foto de abertura)
E quero destacar a enorme ajuda que tive para levantar dados sobre este assunto, pois a maior parte das discussões se dá em torno de questões políticas (direita x esquerda), ideológicas (liberais x progressistas) e de toda ordem, exceto pragmática e médica. Bem, como vocês sabem, pragmatismo é praticamente meu nome do meio, então vamos lá. Em primeiro lugar, quero agradecer a ajuda de alguns amigos muito queridos, como o ótimo médico psiquiatra Carlos Loyola, o engenheiro (e das pessoas mais cultas e informadas que eu conheço) Isaak Gruberg, o arquiteto (e fuçador de todo tipo de assunto) Guilherme Moraes, e da psicóloga Georgia Lago (que também tem larga experiência com dependentes químicos). Ou seja, pessoas de diversos espectros profissionais, mas todas elas extremamente bem informadas. A todos eles, obrigada pelas informações, pelos estudos que me enviaram e pelos links. Agora, então, vamos ao assunto.
Drogas no trânsito
No Brasil, há raríssimos trabalhos sobre os efeitos do uso de drogas no trânsito —encontramos de álcool e direção, mas quase nada sobre maconha ou outros entorpecentes, apesar de que o debate sobre sua liberação esteja bem adiantado, a ponto de já termo visto votações em algumas instâncias e muitos a defendam abertamente..
Pouco antes de viajar cheguei a ouvir uma entrevista de um advogado numa rádio em que ele defendia a liberalização de todas (sim, todas) as drogas, alegando que os efeitos negativos apenas incidem contra o próprio usuário. Oi?? O sujeito nunca deve ter passado perto da chamada Cracolândia, em São Paulo, por onde perambulam como zumbis viciados em drogas e onde ser registram elevados índices de furtos e roubos cometidos justamente por estes viciados, além de outros atos de violência de maior ou menor grau. Ou não conhece parentes e amigos de viciados para dizer que somente eles é que são prejudicados pelas drogas. O que aconteceria se usássemos o mesmo argumento em relação ao álcool? Dá para dizer que um bêbado que saia dirigindo um veículo ou que pegue uma metralhadora ou um cassetete será o único prejudicado pelo seu vício? Ah, “seu adevogado”, me poupe! Se quer defender a liberação das drogas use algum argumento coerente!
Vou, então, fazer primeiro um rápido apanhado da situação em alguns lugares fora do Brasil onde algumas drogas já foram liberalizadas e onde foram realizados estudos sobre acidentes de trânsito.
Canadá
No Canadá, a liberalização da maconha ocorreu em 2018, mas ainda com venda em lojas previamente designadas. Os pesquisadores Daniel Myran, professor-assistente de Medicina da Família na Universidade de Ottawa observou um aumento de 94% nos atendimentos nos pronto-socorros e, à medida em que a comercialização da cannabis aumentou, essa porcentagem subiu até 233% quando comparada com o período anterior a liberalização. Simultaneamente, os acidentes de trânsito que comprovadamente estavam relacionados ao consumo de maconha (pois os motoristas que haviam provocado os acidentes haviam sido testados para entorpecentes por meio de exames de sangue nos hospitais em que foram socorridos) aumentaram 475% entre 2010 e 2021. No mesmo período, os acidentes de trânsito comprovadamente envolvendo motoristas alcoolizados subiram somente 9,4% no mesmo período.
O dr. Marco Solni, professor associado de Psiquiatria da Universidade de Ottawa e pesquisador do Ottawa Hospital Research Institute, que não participou do estudo, ressaltou que o problema que se depreende das conclusões do estudo não é o número absoluto, mas sim o aumento das taxas e que, certamente, há uma subnotificação dos pacientes, já que o estudo apenas focou naqueles de maior gravidade que precisaram de atendimento hospitalar sério.
O mesmo estudo de Myran apurou que nos acidentes que envolviam maconha, 90% das vítimas chegaram de ambulância. Quando a droga não estava envolvida, essa porcentagem caía para 40%. Outro dado importante é que dos usuários de maconha envolvidos em acidentes de trânsito atendidos no hospital, quase 50% precisaram de internação hospitalar, enquanto apenas 6% dos que não haviam consumido maconha precisaram de internação após o primeiro atendimento. A diferença se repete no caso de internação em unidades de terapia intensiva: quase 22% dos acidentes envolvendo pessoas que dirigiam sob efeito de maconha precisaram ir para uma UTI, mas apenas 2% dos acidentados que não haviam consumido maconha ou álcool precisaram de UTI, revelou um estudo publicado pela plataforma JAMA (Journal of the American Medical Asociation) Network Open.
“Devido à forma como a cannabis afeta o desempenho ao dirigir (reduz o tempo de reação, diminui a capacidade de se concentrar ou prestar atenção a vários eventos e pode aumentar o comportamento de risco) as pessoas que têm problemas de cannabis enquanto dirigem podem estar dirigindo mais rápido, percebendo perigos mais tarde e desaceleração mais lenta. Uma receita para entrar em colisões de trânsito mais graves e exigir níveis mais elevados de cuidado”, disse Myran.
O professor Solni, que revisou mais de 100 ensaios clínicos e meta-análises sobre o tema, disse que embora o estudo seja específico sobre o Canadá, o problema está acontecendo em todo o mundo, em lugares onde o uso recreativo da cannabis e legal.
Estados Unidos
Nos Estados Unidos, dirigir sob a influência de álcool tem diminuído nos últimos anos, mas nos últimos anos tem aumentado consideravelmente a condução de veículos sob a influência de maconha — especificamente, foi constatado um aumento de 48% entre 2007 e 2014 segundo um relatório da Administração Nacional de Segurança no Tráfego Rodoviário (NHSA). Está prevista uma atualização do relatório para este ano e acredita-se que o consumo de maconha tenha continuado subindo. O Estudo de Risco de Acidentes com Drogas e Álcool de 2016 apurou que a maconha foi a droga mais frequentemente detectada além do álcool e que as pessoas que consumiam cannabis tinham maior probabilidade de se envolverem em acidentes.
O Estado do Oregon foi dos primeiros a ir na contramão da liberalização. A governadora Tina Kotek assinou, no dia 1 de abril (não, não é piada), a recriminalização da posse de certas drogas apenas três anos depois de o Estado ter se tornado o primeiro do país a descriminalizar a posse e o uso pessoal de todas as drogas. O projeto de lei 4002 foi aprovado com muita folga pelas duas câmaras da legislatura estadual, com apoio dos dois partidos dominantes. Pela nova lei, os infratores podem ser condenados a penas de até seis meses de prisão ou se submeter a tratamentos antidrogas. A nova lei se baseou em fatos: as mortes por opiáceos no Oregon triplicaram entre 2019 e 2022, especialmente devido ao fentanil, cuja posse e consumo havia sido descriminalizado, mas agora o endurecimento voltou a abranger todos os entorpecentes.
Alemanha
O país liberou, em abril, o uso da maconha para fins recreativos. Ainda não há estudos sobre seus reflexos no trânsito, mas confesso que me preocupa isso num país onde não há limites de velocidade na maior parte das estradas e onde as normas de trânsito são quase sempre respeitadas e raramente alguém olha para o lado antes de cruzar uma rua se estiver numa preferencial porque parte-se do pressuposto de que o outro motorista parará para dar a preferência. Tenho muita curiosidade em saber como os geralmente ótimos motoristas alemães se comportarão.
Brasil
No Brasil, o artigo mais recente e mais específico que achei (com a ajuda dos meus já mencionados amigos) é de autoria de Julio de Carvalho Ponce (Bacharel em Ciências Moleculares e pós-graduando do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e Vilma Leyton (IProfessora doutora do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e foi publicado na Revista de Psiquiatria Clínica, aqui no Brasil.
O trabalho dos dois acadêmicos divide as análises por tipo de psicotrópico mas conclui que todas as drogas psicotrópicas causam prejuízos nas funções psicomotoras e riscos aumentados de envolvimento em acidentes de trânsito, sendo necessária uma legislação específica que aborde esse tema. Esse, justamente, é meu ponto. Não se trata aqui de discutir liberalização de drogas do ponto de vista de costumes ou mesmo de saúde. Acho que há outros foros para isso e, claro, tenho minha opinião a esse respeito. Aqui analiso apenas as consequências disso no trânsito. Ponto.
Ponce e Leyton têm pontos muito interessantes. Por questões de espaço, omitirei aqui as citações bibliográficas. Como no Brasil não está sendo discutida a liberação de drogas como cocaína ou ecstasy, vou pular as conclusões dos estudos sobre estas e outras drogas e focar naquelas que, por enquanto, tem maiores chances de aprovação. Apenas por questão de metodologia, mas se a questão entrar no debate, volto a ela. Certo?
• A cannabis, entre nós conhecida por maconha, é a droga ilícita mais comumente utilizada por motoristas em todo o mundo. Essa droga influencia percepções, desempenho psicomotor e cognitivo e as funções afetivas. Dessa forma, são afetados, no motorista, a coordenação, a vigilância e o estado de alerta e, consequentemente, a capacidade de dirigir. Os efeitos debilitantes se concentram nas primeiras duas horas, mas podem durar por mais de cinco horas. Testes experimentais feitos com concentrações de até 300 mcg tetra-hidrocanabinol/kg promovem efeitos semelhantes à dose de mais de 0,5 g/L de álcool.
• Motoristas parecem compensar seus comportamentos na direção, mas problemas podem surgir em situações de emergência.
• Há um risco 1,6 vez maior de provocar acidentes para aqueles que consomem maconha mais de 50 vezes ao ano.
• Estudos recentes indicam um risco 6,4 vezes maior para condutores que fizeram uso de cannabis.
• Os estudos mostram que o consumo de drogas, associado ou não ao álcool, pode estar relacionado com 40% a 70% das fatalidades no trânsito. Um estudo de revisão na União Europeia determinou que de 1% a 3% dos motoristas dirigem sob efeito do álcool, mas que a proporção de intoxicados nos acidentes com vítimas fatais é muito maior.
Um artigo publicado por Adriana Moraes, psicóloga da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, especialista em dependência química e colaboradora do site da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas) em março deste ano, afirma que “dirigir é uma tarefa complexa na qual o condutor recebe informação continuamente, analisa-a e reage a respeito desta. Substâncias que influem nas funções cerebrais ou em processos mentais envolvidos na condução certamente irão afetar o desempenho do condutor. Alterações motoras provocadas por drogas ilícitas têm recebido crescente atenção em anos recentes como uma possível ameaça à segurança no trânsito. Pesquisas têm indicado a presença de drogas psicoativas em motoristas mortos ou feridos em acidentes de trânsito, e estudos experimentais mostram prejuízo no desempenho de indivíduos sob efeito de drogas”.
Gostaria muito que estas considerações, e muitas outras relativas a este tema, fossem levadas em conta antes de aprovar qualquer descriminalização de drogas, pois há muita ideologização envolvida. Nas minhas pesquisas sobre este assunto vi matérias de jornal com ONGs favoráveis à liberação da maconha alegando que “dirigir sob o efeito de maconha é menos nocivo do que sob o efeito de álcool”, mas sem negar que há efeitos negativos nos dois casos. Isso é como dizer que matar alguém com uma facada é menos ruim do que matar alguém com duas facadas. Ora, matar é ruim. Ponto. Não se deve perder o foco da discussão com essas perfumarias e digressões.
Mudando de assunto: fiquei pouco mais de um mês fora, deixei de ver duas corridas de F-1 (fuso horário diferente, muitos passeios, hotéis nos quais nem sempre tinha acesso a canais esportivos), volto e a Red Bull arruma um novo piloto de simulador para testar os carros? Como assim??? Mas confesso que achei fofíssima e muito promissora a Penélope, filha da Kelly Piquet, no volante. Acho que a menina tem talento…
https://www.facebook.com/reel/1133374797871477
NG
A coluna “Visaõ feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.