O Porsche 911 é talvez um dos carros esporte mais importantes de todos os tempos. Nascido nos anos 1960 como uma alternativa mais moderna ao já consagrado Porsche 356, o 911 tornou-se uma lenda em pouco tempo. Não apenas pelo seu desempenho, mas pela sua conservadora construção com o motor boxer traseiro, mantido ao longo dos anos. É um carro polêmico, desde o seu nascimento, do tipo ame-o ou odeie-o.
Muitos já ouviram falar das histórias sobre os primeiros 911 e como eram assustadores de se dirigir. O peso do motor concentrado praticamente no pára-choque traseiro fazia dele um carro difícil de se pilotar de forma rápida. Qualquer erro faria com que o carro subitamente rodasse, graças à massa do motor localizada na extremidade traseira do carro. Mas este mesmo motor posicionado lá no fim do carro é que dava aos Porsches uma enorme capacidade de tração e também excelente capacidade de frenagem pela menor transferência de peso para frente. Quem pilotasse um destes carros com uma tocada arrojada e sobrevivesse, era um herói.
Nas pistas, o Porsche de seis cilindros foi um sucesso desde seus primeiros modelos, disputando desde ralis até provas de longa duração como a 24 Horas de Le Mans, com louvor. A confiabilidade alemã e o bom desempenho sobrepunham a forma mais crítica de pilotagem. Os pilotos de 911 já conheciam seus carros e sabiam o que esperar em situações mais inesperadas, e tiravam proveito da boa capacidade de tração para ter bons resultados.
Hoje em dia, os 911 são referência em desempenho e dirigibilidade, ainda mais se equipados com o sistema de tração integral. Afinal, é o que cinqüenta anos de evolução faz com um projeto automobilístico. Controles eletrônicos de todos os tipos imagináveis, geometria de suspensão muito bem feita — especialmente a traseira multibraço “Weissach” surgida em 1993 em substituição à de braços semi-arrastados — e bons pneus deixaram até o 911 Turbo civilizado. A Porsche nunca desistiu do 911, nunca mudou o conceito básico de seu carro-chefe. Algumas pequenas variações para competição foram feitas sim, fato que já comentamos aqui no Ae, mas o 911 até hoje mantém suas formas básicas inalteradas e o motor de cilindros contrapostos continua pendurado atrás do eixo. Um vídeo promocional da Porsche fala sobre esta evolução e conservadorismo, de uma forma muito poética.
Já mostramos este vídeo no Ae provavelmente mais de uma vez, mas não canso de assisti-lo e admirar cada vez mais a fábrica de Stuttgart, que nasceu das idéias de um dos maiores engenheiros de todos os tempos. Mas confesso que por muito tempo não entendi como o 911 era o escolhido de muitos pilotos de corrida ao redor do mundo. Como um carro perigoso e traiçoeiro poderia ser tão querido? Em competição, o que o piloto menos precisa é se preocupar se o carro vai tentar te matar ou não. Não fazia muito sentido. Sempre respeitei o 911 pelo o que este carro conseguiu alcançar em termos de sucesso e desempenho, mas será que era uma melhor escolha que um Ferrari?
Na Seis Horas de São Paulo, última etapa do Campeonato Mundial de Resistência (World Endurance Championship – WEC) de 2014, em Interlagos (leia mais aqui), entendi o porquê do 911 ser tão adorado. Tive a chance de andar na pista com um 911 para tirar a limpo de uma vez essas dúvidas. Até então, eu só havia andado com um 914/4 numa pista. Um kart, diversão pura, mas que nada tem a ver com um 911, principalmente pelo motor ser um quatro cilindros e estar no centro do carro, e 911 mesmo só andara em um 911T na rua.
Entre um evento da corrida e outro, o pessoal do Clube do Porsche organizou um passeio pela pista com os carros da marca. Por sorte, e muita sorte mesmo, encontrei com um amigo que iria participar do passeio com um belo Carrera 2,7 preto e laranja de 1975. Na hora que os carros estavam entrando na pista consegui entrar no Carrera do jeito que deu, na correria, com câmera fotográfica em uma mão e a mochila com os equipamentos da máquina na outra. E tinha que colocar o capacete, cinto de segurança, agradecer infinitamente pela carona e ainda tentar tirar algumas fotos.
O motor seis-cilindros de 2,7 litros não fez feio junto aos demais Porsches modernos que estavam no passeio. Se bem que de passeio teve muito pouco, pois deram liberdade para os carros andarem rápido e mais parecia um track day. Saímos no final da fila, com uns vinte carros à frente, mais ou menos. Já no começo o Carrera vinha roncado forte, o clássico barulho em “U” do motor boxer. As cinco marchas da caixa manual do Carrera engatavam com facilidade e precisão, algo que eu não esperava, dada a experiência anterior com o 914 e o Carrera também não ser um carro novo.
No começo da primeira volta o que mais chamou a atenção foi mesmo o motor, como é suave e como empurra o carro com vontade para frente, mesmo não sendo muito potente (215 cv) para os dias de hoje. O Carrera 2,7 é mecanicamente igual ao lendário Carrera RS, fabricado de 1973 a 1974, com motor equipado com injeção mecânica Bosch.
Aí veio a primeira curva rápida. Como entramos pela pista de acesso lateral do Laranjinha, o Mergulho foi a primeira curva feita com mais velocidade, e é uma curva de Interlagos que pode te pegar de surpresa, mas o Carrera contornou firme e na mão. Subindo a Junção e passando o Café, alguns dos outros Porsches já haviam ficado para trás. O S do Senna e a Curva do Sol também passaram sem sustos, com o carro na mão. E assim foram as demais curvas de Interlagos.
A simplicidade do painel contrasta com a funcionalidade. O grande conta-giros mostra de forma clara ao motorista onde o boxer-6 está na sua faixa de atividade. Tudo é bem visível e intuitivo. A visão é boa para todos os lados, o grande pára-brisa deixa você ver bem até o topo dos dois pára-lamas, o que ajuda a posicionar melhor o carro nas curvas. O Carrera contornava o Laranja bem apoiado e com motor cheio, querendo escorregar de leve, mas que ao menor comando do motorista voltava para o lugar, e como quem estava ao volante tinha bastante experiência de pista em Interlagos, eu estava tranqüilo. A reta dos boxes e a reta oposta davam um descanso para os freios, e tempo para aproveitarmos o ronco do motor.
Nas mudanças de trajetória, como o S do miolo do circuito perto do Pinheirinho, o Porsche é estável, seguro, mas é perceptível a inércia da massa do motor se movimentando de um lado para o outro. Talvez este seja o movimento que mais perturba o comportamento do 911, as mudanças de direção em seqüência de curvas esquerda/direita. Eu sempre imaginei um 911 dos antigos se comportando de forma totalmente sobreesterçante sob tocada esportiva, com a traseira bem solta, como o famoso Ruf CTR “Yellowbird” turbo do vídeo em Nürburgring, um show de pilotagem.
Os demais Porsches modernos do evento (Carreras 4S, Boxsters, Turbos e Caymans) poderiam ter despachado o “nosso” Carrera com facilidade por conta dos motores bem mais potentes e complexos sistemas de tração e suspensão, mas o 2,7 preto e laranja estava lá, lutando com vontade e garra para se enturmar. Na verdade, até mais rápido que os demais, pois do fim da fila logo estávamos atrás do carro de segurança que puxava a fila, um Audi R8. Demos uma diminuída para nos distanciarmos do R8, e depois tudo de novo, fazendo o carro mostrar que estava em ótima forma. Sabíamos que não dava para andar forte por muito tempo seguido pois os freios superaqueceriam, então foi até bom fazer assim, pois dava para uma esfriada nos freios antes de voltar ao ritmo.
Vale a pena contar do 911 slantnose (frene inclinada) branco que estava andando. Seu motor turbo era forte, quando invocado despejava potência nas enormes rodas traseiras que patinavam mesmo em velocidade.
O Carrera me surpreendeu muito. Estávamos em um carro com quase quarenta anos de idade, com tecnologias ultrapassadas e que não podiam ser comparadas com os demais Porsches na pista. Vim a saber depois quando paramos o carro no estacionamento que aquele Carrera estava com pneus modernos de track day, do tipo semi-slick. Fazia uma grande diferença, com certeza, mas ao meu entendimento o comportamento do carro não muda muito. O limite apenas é deslocado para cima, o carro não deixa de ser sub ou sobreesterçante, ele continua como é, as coisas apenas acontecem em velocidades maiores, uma vez que não há diferença de composto entre os pneus dianteiro e traseiros, o que isso sim poderia modificar a dinâmica do carro. E era sensível quando o carro começava a escorregar, de forma suave e gradativa, apenas era em uma velocidade acima do que seria no carro com os pneus originais.
Era tão previsível que se deve acostumar facilmente com este comportamento, podendo ser provocado conforme a vontade do motorista para melhor entrar em uma curva, ou dar uma escorregada de traseira em uma saída de curva, apenas pela diversão. E em momento algum, o 911 deu sinal da idade ou de que algo poderia falhar. Alguns carros, se você dirige rápido, deixam a sensação de que algo vai dar errado, algo vai quebrar. Mas não o 911. Sempre firme, sempre disposto. E perfeitamente em casa dentro de um autódromo.
Agora entendo por que mesmo depois de cinqüenta anos com o mesmo conceito de automóvel o Porsche 911 faz tanto sucesso. Como diz o comercial da Porsche, “como seria o mundo, se tudo tivesse que ser prático? […] O que aconteceria com homens com sonhos? Sonhos loucos, impossíveis, inacreditáveis e nada práticos? […] Como seria o mundo se tudo tivesse que ser racional?”
MB