O último dia do Festival Interlagos 2024 (11), realizado no Autódromo Municipal José Carlos Pace, em São Paulo, ficou marcado por um momento especial: uma volta simbólica no circuito de veículos históricos da Renault, prestando homenagem pelos 60 anos do Recorde Mundial de Resistência com o Gordini, que percorreu 51 mil quilômetros em 22 dias ininterruptos, no ano de 1964, no anel externo do circuito.
O desfile teve a presença de diferentes modelos Dauphine, Gordini e Interlagos, além de um Renault R8 Gordini 1300 1965 usado por Bird Clemente e Emerson Fittipaldi em competições, hoje pertencente ao colecionador Maurício Max.
O Gordini Tributo, desenvolvido por Bird Clemente Júnior, filho do piloto Bird Clemente (1937-2023), e que hoje faz parte do acervo do Dream Car Museum, em São Roque, SP, foi conduzido pelos familiares do piloto. Também participaram pilotos de época, como Luiz Evandro “Águia” Campos e Nélson Cintra, que fizeram história competindo com veículos Renault e Alpine produzidos no Brasil, como o Gordini e o Interlagos, além de colecionadores do modelo.
O Gordini
O Gordini, um projeto francês, teve sua fabricação nacional feita pela Willys-Overland do Brasil, sob licença da Renault francesa. Com 3.985 mm de comprimento e 2.270 mm de entre-eixos, era propulsionado por um motor traseiro longitudinal de 845 cm³ e 32 cv (potência líquida; 40 hp era a potência bruta). No Brasil, o carro teve quase 75 mil unidades comercializadas em nove anos de produção em série, de 1959 a 1968, nessas incluídos o Dauphine de 26 cv e o esportivado 1093 de 42 cv.
O Gordini detém, até hoje, o título de carro nacional de produção que percorreu maior distância sem parar num autódromo brasileiro, feito realizado em 1964, e que completa seis décadas neste ano, ainda sem igual dentro da sua categoria (G, para carros de motores entre 750 e 1.000 cm³). A chancela foi dada pela Federação Internacional do Automóvel (FIA), que acompanhou e aferiu todo o teste, até então inédito no nosso país, juntamente com o auxílio do Automóvel Clube Estadual de São Paulo. (ACESP). Nesta prova sem precedentes foram batidos 133 recordes, nacionais e internacionais.
O feito
São oito horas da manhã de segunda-feira, dia 26 de outubro de 1964. A bandeira de largada se agita à frente de um Gordini bege claro, que parte em busca de recordes mundiais. A missão era clara: mostrar da forma mais prática possível a qualidade, durabilidade e resistência do Renault Gordini, o carro-chefe da Willys brasileira.
A ideia do teste de resistência do Gordini foi do jornalista e publicitário pernambucano Mauro Salles (1933-2023), cuja agência Salles Interamericana tinha a conta da Willys-Overland do Brasil. Porém, além de cuidar da publicidade Mauro Salles, ele era conselheiro da presidência, ocupada pelo americano Wiliam Max Pearce.
O teste de longa duração, realizado no anel externo de Interlagos, Autódromo José Carlos Pace, tinha algumas metas a serem batidas: uma era a de percorrer, sem parar, 50.000 km, enquanto a outra era tomar o recorde mundial de uma prova deste tipo, até então de sete dias ininterruptos, pertencente a Ford inglesa. Metas batidas, foram além: para garantir mais três recordes, em decisão comum entre o chefe de equipe e pilotos, a prova, que terminaria na noite do dia 16 de novembro, foi estendida por mais algumas horas, até o final da tarde do dia 17, já que o carro se encontrava em perfeito funcionamento e pronto para mais voltas. O evento foi encerrado na terça-feira, dia 17, após exatos 51.233 km rodados em 514 horas, 37 minutos e 14 segundos (22 dias).
O Gordini provava ali a sua capacidade, mesmo quando exigido ao máximo durante 22 dias sem parar, trafegando a maior parte do tempo perto de sua velocidade máxima, de 118 km/h. Só para que se tenha uma ideia, a média horária após o teste, que teve paradas apenas para a troca de pilotos, reabastecimento, trocas de óleo, pneus e outros fluídos, foi de 97,15 km/h, com tempo de volta variando entre 1’51” e 1’55” com pista seca.
A grandiosa estrutura
Os investimentos para a realização do evento foram vultosos. Além do recapeamento de todo o anel externo da pista de Interlagos (3.213 metros na época), foram feitos, na área dos boxes, dormitórios, uma cozinha, refeitório, banheiros, sala de lazer, centro médico e até uma pista de autorama, que servia para o entretenimento dos integrantes do teste de longa duração.
Para o carro, uma bomba de combustível, igual às de postos, para encher seu tanque nas paradas, e uma rampa de inspeção, que permitia um exame da sua parte de baixo nas paradas no box. Sem contar, claro, um estoque considerável de óleo lubrificante (trocado a cada 2.500 km) e gasolina.
A equipe inteira, formada por mais de 100 pessoas dentre pilotos, cronometristas, mecânicos, técnicos e engenheiros, médicos e enfermeiros, cozinheiros, copeiras, seguranças e por aí vai, ficou instalada durante os 22 dias nos alojamentos da pista. A estrutura funcionou por todo o período de duração do teste, mas no sábado dia 24, dois dias antes da largada, algumas voltas foram dadas em caráter experimental, para ver se tudo estava nos conformes (equipe de cronometragem, mecânicos, pista, sinalização etc.).
O valente carro
O Gordini testado, com motor original de produção de 845 cm³ e carroceria pintada na cor bege claro, não tinha nada de especial. Foi escolhido aleatoriamente na linha de produção da Willys-Overland do Brasil em São Bernardo do Campo, SP por Paul Pierre Michel Massonet, comissário francês da FIA que veio ao Brasil especialmente para acompanhar o evento, para ter total isenção quanto a preparações mecânicas ou estruturais. Após a escolha do carro e a conferência quanto a sua normalidade (estava idêntico aos demais), jornalistas, pilotos, funcionários da Willys, Massonet e outros participantes o assinaram na tampa do motor e teto.
Além da troca dos pneus diagonais de fábrica por radiais (Pirelli Cinturato CF67), por questões de segurança, nada mais foi alterado no carro. A FIA determinava, ainda, que todos os componentes de possíveis reparos e substituições fossem transportados no interior do Gordini durante a prova, assim como havia sido em testes anteriores homologados pela Federação.
O renomado time de pilotos
No total, onze pilotos dirigiram o Renault Gordini durante os 22 dias de sucesso da maratona, se revezando a cada três horas de direção: Wilsinho Fittipaldi (piloto de F-1, F-2 e protótipos na Europa), José Carlos Pace (o “Moco”, vencedor do GP do Brasil de F-1 em 1975), Luiz Pereira Bueno (também da F-1 e fundador da Equipe Hollywood), Bird Clemente (primeiro piloto profissional do Brasil, contratado pela Willys), Luiz Antônio Greco (famoso dirigente das principais equipes de competição automobilísticas do país), Chiquinho Lameirão (piloto nacional de monopostos e bipostos), Carol Figueiredo (pioneiro no kart nacional), Vitório Andreatta (gaúcho, especialista em carreteras), Waldemyr Costa (também piloto de aviões na Varig), além de Danilo de Lemos e Geraldo Meirelles.
O teste e seus incidentes
Depois da largada no dia 26, passaram-se cinco dias de prova com períodos de chuva, mas ainda assim o Renault Gordini já havia dado mais de 3.200 voltas no anel externo de Interlagos e batido diversos recordes locais, estaduais e nacionais. No dia 31, acontece o inesperado: por conta da chuva, uma verdadeira corredeira de água com detritos de asfalto se formou na região da Curva Três, e Bird Clemente, que pilotava o carro naquele momento, se deparou com uma pista sem condições de aderência. O carro derrapou, e já na saída da curva bateu a traseira em um barranco, capotando por várias vezes em seguida.
Por sorte de Bird, que saiu praticamente ileso do ocorrido, o valente Gordini parou em pé, com as quatro rodas no chão. A FIA não permitia ajuda externa enquanto o carro estivesse na pista, ou seja, se ele terminasse capotado com as rodas para o ar, era o piloto que teria que desvirá-lo sozinho. Apesar dos danos significativos na traseira, teto,, para-brisa quebrado e rodas tortas, logo o Gordini voltou a funcionar, e Bird seguiu a volta até chegar nos boxes.
Lá, por questões de aerodinâmica e turbulência, foi preciso retirar o vidro traseiro também, e após a troca de uma das quatro rodas e de seu respectivo pneu, o carro estava pronto para voltar a rodar. Nada do seu trem de força foi danificado, mas a lataria seguiu amassada até o final, mesmo após a tentativa de um reparo “rústico” no teto: Nélson Brizzi, chefe dos mecânicos, usou seu porte avantajado para ir empurrando parte da lata com as costas para seu local original.
Como o Gordini seguiu sem para-brisas ou vidro traseiro, os pilotos seguintes precisavam utilizar óculos, balaclava e outras proteções contra os fortes ventos, chuvas e mosquitos que encontrassem no caminho.
A região de Interlagos era absolutamente deserta naquela época e, também graças aos lagos, existia um grande fluxo de animais por lá, e era comum o aparecimento deles na pista. Duas situações curiosas chamaram a atenção nos 22 dias de prova: um dos pilotos relatou, em uma parada, que infelizmente havia atropelado um enorme lagarto, porém sem danos ao carro; e, em outro perigoso ocorrido, com Carol Figueiredo ao volante, um cavalo branco invadiu a pista, obrigando manobras do piloto para evitar outro acidente.
Ainda assim, apesar da capotagem (que também fez reduzir um pouco sua média horária por volta), o carro não apresentou problema algum durante a prova inteira.
Bandeirada e recordes
Com o aumento da prova por mais um dia e cerca de 1.230 km extras após o recorde dos 50 mil km, a bandeirada quadriculada foi dada por volta das 18 h do dia 17 de novembro de 1964, e ao volante estava Luiz Antônio Greco, chefe da Equipe Willys, que liderava o time de pilotos e também dirigia o Gordini. O dia extra também garantiu mais três recordes ao carro, Equipe e time de pilotos, chegando assim a 133 no total: 25 internacionais (10 de distância e 15 de tempo), 54 nacionais (28 de distância e 26 de tempo) e outros 54 estaduais (28 de distância e 26 de tempo). Memoráveis!
O Renault Gordini, que tinha a missão de provar sua confiabilidade, acabou dando um show de resistência e valentia nesses 22 dias e mais de 51 mil km de prova de longa duração. Alguns pilotos e mecânicos da época disseram até que o carro seria capaz de repetir a prova e resistir bravamente a outros 50 mil km. Sem dúvida, o carro surpreendeu a todos da indústria automobilística nacional, e entrou para a história!
Mesmo 60 anos depois, seu feito extraordinário ainda é digno de aplausos: um Renault comum, saído aleatoriamente da linha de montagem, que foi escalado para ficar ininterruptamente correndo em um circuito por mais de 50 mil km, recebendo apenas manutenções mínimas, provando da melhor forma possível suas qualidades e resistência. Tanto que, ainda em 1964, ele foi estrela no IV Salão do Automóvel de São Paulo, realizado entre novembro e dezembro daquele ano.
MF
Nota do editor: Em 15/8/24 o leitor Jorge comentou a matéria e anexou um filme que vale a pensa assistir pelo valor histórico, O filme é de 9 minutos/BS