Como sempre digo, pauta sobre automobilismo para mim é cada enxadada uma minhoca. E uma minhoca puxa outra, e outra, e outra… É assim com meu tema de hoje: o Huayra Pronello-Ford (foto acima)), um belo desenvolvimento do engenheiro argentino Heriberto Pronello, lá pelos idos de 1969 para a categoria Esporte-Protótipo. Faz uns dias escrevi neste espaço sobre o humorista e apaixonado por carros Luis Landriscina e fuçando nos arquivos sobre ele, me deparei com este carro do qual nem me lembrava muito, o que é uma injustiça, até mesmo porque no ano passado o Huayra desfilou no Festival de Velocidade de Goodwood, na Inglaterra, que homenageia carros de corrida históricos. Falha totalmente minha.
E primeiro vamos esclarecer algo: este é um Huayra que não é do também argentino Horacio Pagani, um dos maiores designers de carros. Por sinal, Heriberto Pronello e Horacio Pagani são amigos e trabalharam juntos. Ou seja, este é um Huayra Pronello e não um Huayra Pagani, ok?
Não que o Huayra Pronello tenha colecionado sucessos — ao contrário, teve muitos problemas mecânicos durante as competições, a maioria no motor —- mas porque seu design era inovador, foi criado por um sul-americano e porque foi, segundo testes feitos no Catesby Tunnel, na Inglaterra, o primeiro modelo de competição que usou efeito solo, meses antes dos clássicos modelos March 701 de Fórmula 1 e o Chaparral 2J . E vamos ao primeiro parênteses, mesmo sabendo que escrevo para leitores profundamente informados: o efeito solo é um fenômeno aerodinâmico baseado no fluxo de ar em alta velocidade sob o veículo sem que escape para os lados que cria uma pressão subatmoesférica, com o objetivo de criar uma força vertical descendente (a propalada downforce) tal que o faça “grudar” no chão. Para aumentar ainda mais a velocidade do ar sob carro há um extrator no final.
Até pouco tempo atrás se achava que o March 701 de F-1, desenhado por Robin Herd e Peter Wright, havia sido o primeiro carro de corrida a usar o efeito solo, mas ele fez sua estreia em março de 1970, um ano depois do Huayra Pronello na Esporte-Prtotótipo. O March 701 tinha extensões laterais em formato de asa invertida, um conceito utilizado anos mais tarde na Fórmula 1 por Colin Chapman nos Lotus 78 e 79 e que, por extraírem o máximo do efeito solo, acabaram virando sinônimo deste recurso e foram seus maiores e mais bem-sucedidos expoentes.
Em julho de 1970 surgiu nos Estados Unidos o Chaparral 2J, criado por Jim Hall e Hap Sharp. A estreia foi na Série Can-Am, em Watkins Glen (EUA). O que mais chamava a atenção era o formato, que parecia uma caixa de sapatos. O segredo, no entanto, eram dois ventiladores posteriores que sugavam o ar que passava sob o carro e com a depressão permitia uma maior aderência e melhor manobrabilidade em qualquer velocidade. No entanto, no final daquele ano, a Federação Internacional do Automóvel (FIA) aceitou uma denúncia de Bruce McLaren que alegava que os ventiladores eram peças aerodinâmicas móveis e proibiu o sistema. Mais tarde, em 1978, o Brabham BT46B pilotado por Niki Lauda venceu o Grande Prêmio da Suécia, mas, por questões políticas, Bernie Ecclestone, dono da Brabham, decidiu não usar mais esse recurso.
Uma das características mais importantes do projeto de Pronello foi a carroceria aerodinâmica de compósito de fibra de vidro, aperfeiçoada após testes em túnel de vento com um modelo em escala. O engenheiro testou vários anexos aerodinâmicos, incluindo uma asa invertida montada elevada estilo Chaparral e um prolongameneto de traseira Kamm removível. Devido à moldagem apertada da carroçaria traseira este segmento teve que ser fixado a partir do interior do habitáculo, com uma estrutura especial. O Huayra Pronello também tinha um para-brisa envolvente de estilo aeronáutico, portas estilo asa de gaivota e uma altura de pelo menos 1.100 mm para cumprir os regulamentos.
E antes que me perguntem, a origem do nome Huayra é, como quase sempre, algo um pouco casual. Uma parente de Pronello, que era noiva de um artista plástico, viu a maquete feita para os testes no túnel de vento e ao ver o formato dele cravou: este carro tem que se chamar Huayra, que significa vento na língua indígena quetchua. E assim foi. Tudo a ver, não?
O Huayra Pronello disputou somente quatro temporadas na categoria Esporte-Protótipo, entre 1969 e 1972, mas não era a primeira incursão de Pronello nessa categoria. Ele já havia sido muito bem sucedido com o meu amado Torino (sobre o qual já escrevi neste espaço) na argentiníssima categoria Turismo Carretera para a qual desenvolveu dois modelos. Os dois Huayra Pronello, com forte apoio da Ford e motor F-100 V-8 com quatro carburadores Weber 48 IDA, duplos, verticais, foram para as mãos de ninguém menos do que Carlos Reutemann e Carlos Pascualini: venceram e bateram o recorde de velocidade do circuito oval de Rafaela, na Argentina, em junho de 1969. Naquele ano, o Huayra Pronello foi o carro mais rápido nas classificaçõe e em em quase todas as corridas. Ah, e o motor era de 5 litros e 430 cv.
A estréia foi em 18 de maio no circuito Oscar Cabalén, na província argentina de Córdoba. Reutemann e Pascualini empataram no segundo lugar na classificação, mas abandonaram a prova por problemas mecânicos (lembra que já havia mencionado isso?). Na prova seguinte, em 22 de junho no circuito de Rafaela, na província de Santa Fé, ocorreu o único triunfo absoluto do Huayra. Naquela época era um circuito em sentido horário, oval (ainda é), mas sem chicanes de nenhum tipo. Reutemann fez a pole e Pascualini ficou em segundo, a apenas 0,7 segundo.
No dia da prova, ambos dispararam na frente, tão juntos que chegaram a empatar o recorde de volta, a 225,583 km/h. Mas embora o carro de “Lole” Reutemann tenha abandonado por problemas mecânicos (eu já havia avisado, não?) Pascualini ganhou a primeira bateria com quase um minuto (!) de vantagem sobre o segundo colocado, Juan Manuel Bordeu, e ainda venceu a segunda bateria, terminando com a excelente média de 216,078 km/h, recorde daquele ano na Esporte-Protótipo. O próprio “Picho” Pascualini (algum dia vou escrever sobre os apelidos dos pilotos argentinos, raramente há algum que não tenha um) lembrou daquela vitória: “Nós mergulhávamos nos curvões a quase 300 km/h. Foi quando andei mais rápido num carro de corrida, mas o Huayra grudava no chão, estava equilibrado, virava e freava de maneira impecável”, disse o piloto. “Foi o triunfo mais importante da minha carreira”
.Mas vou voltar um pouquinho no tempo para explicar como foi o início do Huayra. Pronello já havia projetado diversos carros quando foi procurado pela Ford Motor Argentina para fazer os Esporte-Protótipos e Turismo Carreteras. Sobre os outros modelos, escreverei semana que vem pois é também uma história ótima; aguardem.
Pois então, em setembro de 1968, Pronello assina um contrato com a Ford para criar seis carros, dois para Esporte-Protótipo e quatro para Turismo Carretera, mas desses dois de TC foram vendidos para pilotos particulares e os outros foram para a Ford. A fábrica americana queria entrar de sola nas duas categorias. Mas o contrato era bastante leonino e exigia que nas primeiras quatro corridas do campeonato Pronello colocasse pelo menos um carro nas quatro primeiras colocações. Até que isso acontecesse, todos os recursos para pesquisa e desenvolvimento dos projetos deveriam sair do bolso de Pronello e sua equipe. Só a partir desse sucesso é que a Ford começaria a financiar a empreitada. Pronello conseguiu o feito e a Ford passou a fornecer os motores F-100 V-8 que eram preparados por Guillermo Mikulán.
As primeiras unidades do Huayra foram testadas na estrada mesmo e no circuito Oscar Cabalén com o próprio Pronello pilotando. Apesar de resultados variáveis, a Ford manteve o apoio ao projeto. E por “variáveis” entenda-se até mesmo um incêndio do Huayra durante os testes realizados em Buenos Aires em abril de 1969. O carro ficou quase totalmente destruído.
Os problemas dos motores acabaram com as chances dos carros nas competições. Segundo disse Pronello, a ansiedade do então presidente da Ford Motors Argentina, Douglas Kittermann, apaixonado por corridas de automóveis, fez com que a Ford fornecesse motores a todos os que pediam. Assim, pilotos de equipes concorrentes do time de Pronello recebiam exatamente os mesmos motores que a equipe Huayra, unidades que chegavam a 320 cv girando a 7.000 rpm. “Esse excesso de produção prejudicou a qualidade e, embora os motores fossem excelentes, a falta de perfeição nos componentes acabavam levando à quebra”.
Assim, os resultados do Huayra começaram a desapontar e, mesmo com os modelos Huayra Spyder competindo a partir de 1970, quando o novo regulamento passou a permitir carros abertos, a marca acabou perdendo protagonismo. Isso, somado à perda de interesse na categoria por diversas marcas, acabou matando a Esporte-Protótipo.
Antes do fim do Huayra aconteceu um fato curioso: lá pelos idos de 1972, apareceu na oficina de Pronello um piloto da Esporte-Protótipo chamado Orlando Buzzurro à procura de um modelo de corrida que pudesse ser convertido para uso diário. Heriberto Pronello lhe ofereceu um Huayra Spider que estava pronto, mas nunca havia corrido. A equipe de Pronello adaptou o chassis e a carroceira e Buzzurro foi à procura de um motor. Comprou um Chevrolet de Turismo Carretera que foi equipado com um comando de válvulas mais apimentado, carburador Weber 40 duplo, caixa de câmbio ZF, diferencial autobloqueante e freio a disco nas quatro rodas. Por fora, o modelo lembrava mutio um carro de corrida, exceto por uma espécie de parachoque na dianteira e na traseira. Foi batizado de Huayra Pronello Stradale, mas não consegui descobrir que fim teve este Huayra-Chevrolet.
Em compensação, consegui seguir o destino de um Huayra original. É uma bonita história: em janeiro de 2005, o restaurador de carros (ourives talvez seria mais apropriado, tal a qualidade do trabalho dele) Ricardo Zeziola encontrou os restos de um Huayra na provínica de Córdoba. Eram partes do chassis, do trem dianteiro (incluindo os freios s disco), o diferencial, boa parte da mecânica (incluindo o motor em si), duas rodas e algumas partes da carroceira.
Quando a história da restauração começou a se espalhar apareceu o dono de um conta-giros Jaeger original do carro na longínqua cidade de Río Gallegos, na província de Santa Cruz. O próprio Pronello examinou as partes e certificou que se tratava do chassis número 002, um daqueles utilizados por Reutemann e Pascualini em Rafaela. Zeziola já havia comprado e restaurado um Halcón Ford em 1996 junto com Pronello e foi quando começou a amizade e o contato profissional entre ambos.
Aliás, foi Pronello quem supervisionou e colaborou com a restauração e fez a ponte entre Zeziola e o fabricante de cabeçotes Tahuilco, da cidade de Tandil, que ainda conservava as matrizes do projeto original do Huayra. Adoro histórias com final feliz, como esta. Aliás, quem não?
Mudando de assunto: piadinha bem do meu jeito…
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.