Bem, caros leitores, quem me conhece já deve ter percebido que eu escrevo mais ou menos como quando converso — com interrupções e mudanças de assunto constantemente. E hoje aconteceu de novo. Semana passada abri um parêntese no que seria uma espécie de segunda parte da minha coluna sobre os carros da empresa argentina Pronello. Para quem quiser ler ou reler a primeira, ei-la.
Então, sem mais delongas, vamos ao assunto de hoje, os carros Liebre (lebre, mesmo, em espanhol) produzidos pela Pronello. Como comecei a explicar, Heriberto Pronello já tinha experiência com carros de corrida usando como base o Torino quando lançou o Huayra, sobre o qual falei neste espaço. Vamos recuar um pouco, então, para lembrar como foi a entrada do time Industrias Kaiser Argentina (IKA) no campeonato de 1967 de Turismo Carretera, quando tentou (e conseguiu) quebrar o domínio de Ford e Chevrolet.
A IKA era a fabricante do meu querido Torino, sobre o qual já falei em outras oportunidades e sobre o qual não canso de falar. Desculpem a insistência, mas é paixão, mesmo e não quero me curar. Mea culpa, mea máxima culpa. Pois bem. A IKA chamou os craques Oreste Berta (o “mago” de Alta Gracia, sobre quem falei neste espaço) e Heriberto Pronello para que ambos preparassem dois Torinos, uma versão coupê e outro sedã. Berta cuidou da parte mecânica e Pronello do desenho. Os pilotos? Eduardo Copello, Héctor Gradassi e Jorge Ternengo.
Copello ganhou duas vezes o campeonato de Turismo Carretera em 1967 e a Fórmula B do TC em 1970, nas duas vezes com Torinos Liebre II além de um vice-campeonato em 1968. Gradassi foi tetracampeão de TC em 1972, 1974, 1975 e 1976 com Ford e Jorge Ternengo obteve duas vitórias na TC. O trio, numa brincadeira interna, era chamado de Esquadrão CGT, num trocadilho entre as iniciais dos três e as da Confederación General del Trabajo, uma gigantesca central sindical de trabalhadores da Argentina.
Outro parêntese, e lá vou eu de novo falar do Torino. É que Copello participou da famosa “Missão Argentina”, o time que foi correr a Marathon de la Route de Nurburgring de 1969 com o IKA Torino 380 W. Vou me segurar e não contar toda a história de novo, mas quem quiser saber mais sobre essa façanha do automobilismo sul-americano, cá está o link.
Na primeira corrida de 1967, o Torino de Copello, chamado Liebre I, usou um modelo de frente muito penetrante que se tornaria um ícone da categoria. Ao longo da temporada, foi acrescentado outro modelo chamado Liebre II, também baseado no Torino, cujas linhas eram completamente diferentes do carro de linha “normal”. Esses veículos dominaram com folga a temporada. Copello venceu o Campeonato Argentino de Turismo Carretera 1967 com o Torino Liebre II e valeu a Berta e a Pronello o reconhecimento da imprensa especializada e até mesmo do público em geral.
E por que o nome “Liebre”? É um pouco mais rocambolesco do que eu imaginava, pois presumia que era apenas por ser um veículo muito rápido. Segundo contou o próprio Pronello, o nome foi dado por um engenheiro americano que disputou provas da então Fórmula Indy. “Quando começamos a fazer o Torino com Oreste Berta, com o nariz modificado e diferente do 380 W, ele chamou aquele carro inovador, de “lebrel”, o nome de uma raça de cães de corrida, extremamente rápidos”, disse Pronello. Nos Estados Unidos, esse é também o nome dado ao carro que é mandado à frente do pelotão para acelerar ao extremo e forçar o ritmo dos outros para que, eventualmente, quebrem. É sempre um veículo extremamente rápido e do qual é exigido o máximo. “De ‘lebrel’ surgiu ‘liebre’ ” explicou Pronello. Outro piloto, “Negro” Paredes, chegou a sugerir o nome “Pachamama”, que significa Terra Mãe em quetchua, mas Pronello conseguiu “neutralizá-lo”, como disse. Em termos de Marketing esta escriba acha que teria sido um erro e gosta mais de Liebre. Pronto, falei. Mas oficialmente o carro foi registrado na fábrica como Torino Pronello Mkl.
Entre 1966 e 1970, o TC passou por uma verdadeira revolução. Foram os anos das “Liebres” (foto de abertura) . Além dos campeonatos ganhos por Copello em 1967 e 1970 e o de 1969 vencido por Gastón Perkins (também membro da Missão Argentina) com um Liebre III. Aliás, o domínio dos Torino Liebre foi tão impressionante que uma publicação da época chegou a colocar no título de uma notícia sobre os Liebres: “O pecado de ganhar”. De fato, os carros foram vetados na TC e foram para outra categoria, a Esporte-Protótipo.
Por isso a incursão dos Liebres, embora muito intensa, durou pouco. Em 1968, a equipe IKA aposentou-se oficialmente e Pronello apresentou outros dois novos modelos, sempre derivados do Torino original: o Liebre 1 ½, uma curiosa combinação que tinha as suspensões do Liebre II, motor deslocado para dentro da cabine, frente mais leve e carroçaria de Torino coupé; e o Liebre III, que tinha linhas mais estilizadas e soluções mais avançadas que o Liebre II. Mas o campeonato daquele ano seria vencido por Carlos Pairetti e seu incrível Chevrolet Trueno (trovão, em espanhol) Naranja (laranja) , um modelo lindo saído das pranchetas de Pedro Campo.
Depois de construir alguns Liebres I ½, II e III, em setembro de 1968, Heriberto Pronello assina contrato com a Ford Motor Argentina para construir o Esporte-Protótipo e TC da equipe oficial da marca. No total são seis carros: dois EP e quatro TC. Deles, os dois primeiros e os dois TCs formariam a equipe Ford, enquanto os outros dois TCs seriam vendidos para particulares como já contei quando falei do Huayra.
É então em 1969 que a Confederação Argentina de Automóveis Esportivos (Cadad, pela sigla em espanhol) decidiu iniciar uma nova categoria com regulamento diferente da Turismo Carretera que passou a chamar de Esporte-Protótipo para disputar exclusivamente provas de estrada. E aí voltamos ao lançamento do Huayra, sobre o qual já falei.
Felizmente, as Liebres não desaparecerão completamente. Heriberto Pronello, aos 88 anos, está trabalhando no projeto Liebre IV em sua oficina. É um projeto esportivo de um carro de rua. Pronello está trabalhando com o engenheiro mecânico Eduardo Mogdans (especialista em desenho) e com Fermín Feijóo (modelista), além de outros profissionais. “O Liebre IV será um esportivo elegante com um desenho que chamará a atenção, mas que terá de honrar a fama das Liebres de competição: terá de ser muito rápido nas pistas, agradável à vista, mas muito rápido e potente” diz Pronello. “Nada tem de ser bonito à toa”. Bem, a palavra original é outra, mas vamos dizer que eu a traduzi mais suavizada. Lembrem-se, caros leitores, que os argentinos herdamos dos espanhóis essa mania de falar palavrão a torto e direito.
Os compradores do LIebre IV receberão o veículo com 9 pneus, quatro para uso nas ruas (além do estepe), todos Michelin Pilot Sport, e quaro extra slicks para uso em pistas de competição. Haverá mais de uma opção mecânica. Uma com o clássico motor Tornado de 6 cilindros dos Liebres III, mas com injeção eletrônica e pouco mais de 300 cv. A segunda opção será de 6 cilindros em linha que a BMW produziu para o Toyota GR Supra, com quase 400 cv e que permitiria chegar a 310 km/h.
Um detalhe interessante sobre o Liebre IV: ele está sendo construído sob as normativas da Lei dos Carros Artesanais, pela qual o próprio Pronello lutou bastante. Resumidamente, a Lei 26.938 regulamenta a produção e circulação em vias públicas de automóveis fabricados artesanalmente e fixa categorias que limitam a quantidade de veículos que cada fabricante pode produzir por ano.
São três categorias, sempre para veículos construídos desde o zero, em sua totalidade:
– Automóvel reprodução (categoria AR1) – cópia fiel de um modelo original cuja produção tenha sido encerrada há pelo menos 30 anos do momento do início da fabricação de sua reprodução. Limite de 50 unidades ao ano por fabricante
– Automóvel Réplica (categoria AR2) – replica não fielmente um determinado modelo original cuja produção tenha sido encerrada há elo menos 30 anos do momento do início da fabricação de sua réplica. Limite de 100 unidades ao ano por fabricante
– Automóvel Inédito (categoria AI) – composto por uma estrutura e carroçaria de desenho original e inédito. Limite de 100 unidades ao ano por fabricante.
NG
A coluna “Visão feminina” é de exclusiva responsabilidade de sua autora.