Há controvérsias. Algumas pessoas afirmam que o primeiro carro genuinamente brasileiro foi o pequeno e compacto Romi-Isetta (leia sua história), enquanto outros apostam suas fichas na camioneta DKW-Vemag Universal. Ambos foram lançados no segundo semestre de 1956, com uma diferença de apenas dois meses e meio entre eles (5 de setembro para o Romi-Isetta e 19 de novembro para o DKW-Vemag). Portanto se considerarmos as datas, temos o título de primeiro automóvel nacional para o Romi-Isetta.
Ocorre que para acelerar a implantação da indústria automobilística no Brasil, o presidente Juscelino Kubitschek, cinco meses após tomas posse em 31 de janeiro de 1956, criou o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (Geia), com poderes supraministeriais, tendo como secretário-geral o economista Sydney Latini, O Geia, além de delinear os incentivos para que fabricantes de automóveis estabelecessem filiais no país, definiu as regras para as empresas fazerem jus aos incentivos.
Uma dessas regras era o veículo a ser produzido aqui ser de no mínimo duas portas e quatro lugares e o italiano Isetta tinha porta única e somente dois lugares. Isso de modo alguma impediu que a Indústrias Romi S.A., de Santa Bárbara d’Oeste, SP se interessasse em produzir o Isetta aqui.
A DKW-Vemag Universal tinha duas portas mais a de caga traseira e transportava com comodidade quatro pessoas, ou mesmo cinco.
Por isso, fica a dúvida. Depende do ponto de vista de cada um, apoiando as regras do Geia ou não. De qualquer forma, o Romi-Isetta era 72% nacional em peso, enquanto o Universal não ia além de 54% de componentes nacionais, o restante vindo da matriz alemã.
A DKW
A DKW foi fundada em 1916 pelo engenheiro dinamarquês Jorgen Skafte Rasmunsen, em Zschopau, no estado da Saxônia, Alemanha. Começou fabricando peças para máquinas a vapor. Logo fabricou um carro a vapor, Dampf Kraft Wagen em alemão, mas fracassou. Em 1919 passou a fabricar brinquedos que eram máquinas a vapor em miniatura, as quais chamou de Dss Knaben Winsch, O Desejo dos Meninos e quase em seguida começou a produzir motocicletas com motor de dois tempos, com o mote A Pequena Maravilha, Das Kleine Wunder. As motos foram um enorme sucesso e a DKW progrediu ao ponto de em 1928 a DKW ser o maior fabricante alemão de motocicletas Em 1932, com a crise econômica mundial consequência da quebra da Bolsa de Nova York em 24 de outubro de 1929, a DKW se juntou à Audi (fundada em 1910), à Horch e à Wanderer, nascendo a Auto Union AG (sigla de sociedade anônima em alemão), sediada em Chemnitz, também na Saxônia.. O logotipo da nova empresa, quatro anéis entrelaçados, significava a união de quatro fabricantes. Como a Auto Union desaparecera com a Segunda Guerra Mundial, em 1949 renascia a Auto Union GmbH (limitada em alemão) exclusivamente com a marca DKW. Nove anos depois (1958) a Daimler-Benz adquiriu a Auto Union, que passou para as mãos da Volkswagen em 1965., quando a marca DKW logo desapareceria em favor da Audi. até hoje parte do Grupo Volkswagen — e usando os quatro anéis entrelaçados como logotipo.
No Brasil, a Auto Union concedeu licença (trabalho do Geia) à Vemag (Veículos e Máquinas Agrícolas S.A.) para produzir o DKW. Originária da Distribuidora de Automóveis Studebaker Ltda, fundada em 1945, para montar carros da marca americana, atividade estendida em 1951 à montagem de caminhões Scania-Vabis e em 1954 para montar tratores Ferguson, Em 1952 a razão social fora mudada para a acima citada depois de se fundir com a Elit Equipamentos para Lavoura e Máquinas Agrícolas.
A Vemag — acrônimo de Veículos e Máquinas Agrícolas — foi a primeira a aproveitar os incentivos do governo para a criação de uma indústria de carros nacional. Foi ágil, tanto que lançou seu primeiro modelo em novembro de 1956, apenas cinco meses depois da criação do Geia. O nome da marca ficou DKW-Vemag, modelo Universal, que os empresários julgavam como mais adequado à família brasileira. Na realidade, essa Universal feita no Brasil era praticamente idêntica a DKW F91 Universal vendida na Europa, com sutis mudanças visuais. Para noção de referência, falamos de um veículo de porte e proposta que lembram as das camionetas Fiat Panorama e Chevrolet Marajó.
A propósito, no Brasil as letras D ,K e W eram pronunciadas como na Alemanha, de-ca-vê até pela Vemag; Nunca se ouviu alguém dizer de-ca-dábliu. Já com BMW ouve-se tanto be-eme-dábliu quanto be-eme-vê. O w em alemão é pronunciado vê.
O veículo familiar da Vemag era propulsionada por um motor de três cilindros, dois tempos, 903 cm³ (71 x 76 mm) e parcos 34 cv de potência 4.000 rpm, que pecava pelo torque extremamente baixo, 7 m·kgf a 2.000 rpm, para um carro de 925 kg. Com esses números modestos, a Universal não tinha o desempenho como uma de suas virtudes: demorava eternos 47 segundos para acelerar de 0 a 100 km/h e não passava de 110 km/h, claro que, nesses casos, vazio, com apenas o motorista a bordo. Como seu motor era dois-tempos, a lubrificação era feita pela adição de 1 litro de óleo à gasolina na proporção de 40:1.
Já imaginaram o quão era complexo era manter essa proporção de 40 para 1 à medida que fossem necessários reabastecimentos? Para começar não existiam latas de óleo de 1 litro, eram todas de 1/4 de galão ou 0,946 litro. A proporção gasolina-óleo nesse caso passava para 38 litros para uma lata, recomendava a fábrica. Como a operação era primeiro óleo, depois gasolina, complicava encher o tanque de 42 litros (passou a 45 litros em 1958). Com menos óleo do que o recomendado, o motorista corria risco de ter o motor engripado, enquanto com óleo demais a Universal trafegava fazendo uma enorme fumaceira até o motor atingir a temperatura de funcionamento normal, além de acelerar a carbonização mais o motor.
A vida não era fácil para os donos dos carros produzidos pela Vemag na época: além da camioneta, também foi lançado um sedã de quatro portas em 1958. Era chamado de Grande DKW-Vemag (Grosse DKW na Alemanha) por ter o arcabouço F-94, bem mais largo, melhoria compartilhada com camioneta. E teve o jipe DKW-Vemag, também em 1958, que em 1960 foi rebatizado Candango como homenagem da Vemag aos trabalhadores que construíram a nova capital do Brasil inaugurada no dia 21 de abril daquele ano..
Voltando a camioneta Universal, seu conceito não era dos mais modernos. Ainda usava a construção com chassi separado da carroceria, e não era reforçada como deveria: suas longarinas não iam além do eixo traseiro, ou seja, todo o peso do porta-malas era sustentado apenas pela lataria e soldas. Com as nossas condições de piso e malha viária da época, sem contar a qualidade construtiva bem inferior à dos veículos atuais, o resultado prático disso eram várias camionetas com a traseira “caída”. Só foram corrigir esse problema em 1966, dez anos depois!
Outra curiosidade, não muito positiva, do primeiro familiar brasileiro era que suas portas se abriam no sentido oposto, estilo conhecido como “portas suicidas”, já que eram fáceis de se abrir e difíceis de fechar com o carro em movimento. O fator segurança ficava em segundo plano até no veículo original alemão, assim como a comodidade (essas portas eram mais difíceis de serem fechadas e complicavam o movimento de entra e sai). Por outro lado, devemos lembrar que falamos do início de tudo, quando técnicos e engenheiros brasileiros ainda estavam, literalmente, aprendendo na prática como era a arte de fabricar carros. Não eram erros, mas sim experimentações que foram sendo corrigidas. Só em 1966 o sentido de abertura das portas seria invertido.
Na próxima semana darei continuação nessa história da DKW-Vemag Universal, a camioneta familiar que muita gente considera como o primeiro carro brasileiro.
DM
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