O título acima provoca várias dúvidas. O que é “carburar” uma motocicleta? Nos velhos e bons tempos de preparação de motores, o termo era empregado quando o mecânico — ou o preparador — mexia no carburador para que este ficasse o mais acertado possível. A relação estequiométrica 14,7:1 (quatorze vírgula sete partes de ar para uma parte de combustível, no caso gasolina) era quase sagrada, a ordem era calibrar esse tão adorado componente para que a mistura ar-combustível ficasse a mais próxima possível dessa proporção.
A relação ar-combustível de 14,7:1 era teórica, mas na prática ficava muito próxima disso, o que se conseguia acertando o(s) carburador(es) por tentativa e erro. Um método conhecido era retirar a vela e observar a cor da superfície dela, compreendendo o final da rosca e os dois eletrodos. Como a relação estequiométrica perfeita deixa as citadas superfícies das velas com um tom marrom médio, o objetivo do preparador era calibrar o carburador pelos meios ao seu alcance — giclês principais, corretores de ar, tubos de emulsão e nível de combustível na cuba do carburador — ou se valer de um dinamômetro de bancada.
Um dos ajustes do carburador é o da marcha-lenta, com o motor funcionando, por meio de um parafuso de ponta cônica que deixa entrar mais ar ou menos combustível, de modo a deixar a marcha-lenta estável, uniforme. Outro parafuso age sobre a borboleta de aceleração de modo a ajustar ar rotação de marcha-lenta estabelecida pelo fabricante. O circuito de marcha-lenta é importante por influir na progressão da aceleração.
Não menos importante era o acerto do volume injetado associado a cada acelerada rápida, indispensável nos carburadores de difusor fixo como os de automóveis — nas motocicletas os carburadores costumavam ser de difusor variável, que dispensam essa injeção ao acelerar. Havia o uso de carburador de difusor variável, como nas motos BMW e até em automóveis, como os carburadores ingleses SU.
Saiba-se que quando um combustível está misturado com o ar na sua relação estequiométrica, sua queima é completa. Relação mais alta indica mistura pobre e mais baixa, mistura rica.
A relação estequiométrica do álcool de posto (etílico) é 9:1 e como hoje a gasolina contém 27% desse álcool, a relação estequiométrica dessa “gasolina” é cerca de 13,5:1.
Com injeção eletrônica, um sensor de oxigênio (sonda lambda) no escapamento analisa os gases queimados e passa a informação para o módulo de gerenciamento do motor (ECM, electronic control module), que identifica o combustível e determina o volume injetado que sairá dos bicos injetores para que a relação ar-combustível seja estequiométrica.
Com os motores flex o processo é o mesmo, apenas trata-se dos combustíveis de características bem diferentes. Atualmente, além da sonda lambda existe um sensor na linha de combustível que identifica prontamente o que está no tanque, não é preciso que o combustível seja queimado para ser analisado. Mas por segurança, o catalisador continua sendo utilizado.
Carburadores mais simples eram mais fáceis de serem “carburados”, em compensação não eram capazes de fornecer o combustível necessário em todas as rotações. Para isso existiam os carburadores mais complexos, cheios de segredos e truques para serem bem carburados.
Questão de tradição
Existiam, não, ainda existem! Mesmo com a quase totalidade dos motores modernos com o sistema de alimentação por injeção eletrônica, a tradição dos carburadores está muito viva, especialmente entre os apaixonados pelo antigomobilismo (o que inclui as motocicletas clássicas). E é por isso que estamos aqui versando sobre carburadores.
Aliás, a tradição é tão forte que até hoje existe nos treinos da 500 Milhas de Indianápolis o Carburation Day, para os últimos acertos da carburação antes da corrida, mesmo que carburadores tenham sido abandonados há décadas em favor da injeção de combustível, seja ela direta ou nos dutos de admissão.
Voltando ao título, o termo “carburar” pode tomar outro significado, na mesma direção de alguns termos muito utilizados pelos “doutores” em motores, como, por exemplo, “turbinar”. Se alguém te disser que “turbinou” um motor, é porque instalou um compressor ou um turbocompressor no sistema de admissão, em que este último conta com uma turbina movimentada pelos gases de escapamento para, por meio de uma árvores ligada a ela, movimentar o compressor propriamente dito. Nos compressores seu acionamento é mecânico, geralmente por uma correia de borracha poli-V a partir de uma polia no virabrequim.
Lembro que aqui no AE usamos os termos supercarregador no lugar de compressor e turbocarregador em vez de turbocompressor, por exprimir com mais precisão a fase de “encher” os cilindros com ar e, em alguns casos, com mistura ar-combustível. Quando um motor não tem um desses dispositivos ele é descrito como de aspiração natural, atmosférica.
Há algum tempo, quatro décadas atrás, era comum ouvir que alguém turbinou seu carro, assim como ainda se ouvia dizer que ele “envenenou” seu motor. E lá vinham os “entendidos”, abrindo a boca para falarem sobre o que pouco sabiam. O cara queria mais potência, então ele “envenenava” o motor, trocando carburador, comando ou mesmo os pistões. Ou então simplesmente “turbinava” o seu motor. Foi aí que ouvi a melhor do século passado: o cara me disse que não queria turbinar, então ele “aspirou” seu motor. Isso é sério, ouvi mesmo.
Como um motor não turbinado era chamado de “aspirado”, ou, para ser mais preciso, “naturalmente aspirado”, o cara achou que para aumentar o rendimento de seu motor, sem apelar para um turbocompressor, ele poderia “aspirar” seu motor.
Eu já aspirei um motor, mas para isso usei um aspirador de pó, para tirar a sujeira que havia acumulado por cima dele…
E vamos “carburar” uma motocicleta!
E vamos nós novamente com o mesmo título. É que esta pauta surgiu do conhecimento de uma legião de motociclistas que preferem o carburador à injeção eletrônica, mesmo que esta já seja equipamento original de suas motocicletas. Eu já sabia de casos em que se trocou o carburador por um moderno sistema de injeção eletrônica (os primeiros sistemas, dos anos 90, ninguém quer), mas ao saber desse grupo que está substituindo a injeção original de suas motos por carburadores, fiquei curioso.
Cheguei a uma pequena oficina no bairro paulistano do Itaim, cheia de motocicletas, onde fui conhecer uma Royal Enfield Classic 500 que tinha acabado de ganhar um carburador. Lá chegando, me deparei com quase todas as motocicletas dessa marca, dentro da oficina, funcionando com carburador.
De acordo com os donos de suas novas “carburadas”, a velha e boa Royal Enfield 500, originalmente a injeção, ganha nova vida com o carburador. Mais potência e uma resposta mais rápida ao acelerador foi a principal melhoria. Isso é fácil de entender, já que, para os “dinossauros” da mecânica, é mais fácil acertar um carburador do que mexer naqueles complicados sistemas modernos, que exigem scanners e, principalmente, conhecimento dos dados exibidos na tela.
Para “carburar” uma motocicleta, então, Milton Maio, o mago chefe da oficina Box 7, começa retirando todos os componentes da injeção eletrônica, como bomba de gasolina, corpo de borboleta, bico injetor e módulo eletrônico. O equipamento instalado é mais simples, consistindo em uma torneira no tanque, com posição reserva, um simples filtro de passagem e um carburador.
Experimentei a motocicleta do Murilo, um dos clientes da oficina, e, apesar da voltinha bem curta, notei um certo vigor adicional da Classic 500. Na motocicleta de Orlando, outro cliente da oficina, Milton trocou o pistão original do motor da Royal por um de Fusca, aumentando seu diâmetro e chegando a uma cilindrada de quase 600 cm3. Com o carburador, aquele monocilindro ficou realmente bem mais forte, embora a maior cilindrada ajudasse.
Se alguém quiser “carburar” sua Royal Enfield Classic 500, então, pode se aventurar para fazer a troca dos componentes, porém é mais fácil e seguro chamar o Milton para esse serviço. É que tem mais uns segredinhos, como acertar o volante original do magneto para a correta leitura do sensor, entre outros pequenos truques.
São retirados da motocicleta os seguintes itens:
– central eletrônica (ECM)
– bomba de combustível completa
– bico injetor de combustível
– coletor de admissão
– cânister
– sensor de oxigênio (sonda lambda) do escapamento
– conjunto do corpo de borboleta com os sensores de TPS (sensor da posição da borboleta de aceleração) e o MAP (sensor de pressão na admissão) da motocicleta
Apesar das informações técnicas aqui citadas, o objetivo desta reportagem não é ensinar a fazer a substituição dos sistemas, nem informar o custo exato da transformação, mas sim mostrar que “existe mais coisas além da injeção”. O que não deixa de ser muito interessante. A curiosidade criou muita coisa bacana neste mundo.
Só é preciso saber que essa modificação torna a moto irregular quanto aos limites de emissões pelo escapamento determinados pelo Promot – Programa de Controle da Poluição do Ar por Motociclos e Veículos Similares, cuja fase mas recente, a M5, vigora desde janeiro do ano passado. Vai que…
GM