Recentemente eu falei sobre quatro presidentes globais de empresas automobilísticas que são autoentusiastas. Entre eles está Jim Farley, presidente da Ford Motor Company.
Nascido na Argentina, antes de se juntar à Ford em 2007, Jim Farley foi vice-presidente e gerente geral da Lexus, responsável pelas operações de vendas e marketing da marca de luxo da Toyota. Ele ocupou cargos importantes na Ford, incluindo presidente e executivo-chefe da Ford Europa, vice-presidente executivo de Mercados Globais e presidente de Novos Negócios, Tecnologia e Estratégia. Em 2020, assumiu o cargo de executivo-chefe da Ford. Ele participa de várias corridas e tem alguns carros interessantes.
No ano passado ele publicou um artigo no LinkedIn em que com muita autenticidade e sem medo de ser criticado, assume que mesmo sendo um car guy (cara dos carros) apaixonou-se pelos elétricos. Obviamente muitos podem pensar que ele tem interesse ou viés ao dizer isso para nos motivar ou influenciar na decisão por um elétrico. Mas não acho que é o caso. Isso porque compartilho com ele todos os pontos a partir da minha experiência com elétricos desde 2019, quando tive a oportunidade de preparar todo o lançamento do Jaguar I-Pace aqui no Brasil.
Abaixo a tradução do texto completo do LinkedIn.
“Confissões de um apaixonado por carros desde sempre. Eu amo veículos elétricos e isso não tem nada a ver com política.
Jim Farley
Presidente da Ford Motor Company
28 de junho de 2024
Com desculpas a “Goodfellas”: desde que me lembro sempre quis ser um cara dos carros.
O ronco de um V-8 soa como a trilha sonora da minha vida. Passei os últimos 40 anos desenvolvendo novos veículos, de Camrys e Scions na Toyota a F-150 Raptors, Broncos e Transits aqui na Ford, onde meu avô trabalhou com o próprio Henry Ford. Até hoje, passo muitos finais de semana correndo com Mustangs ou mexendo no meu Bronco 1973.
Então, como um apaixonado por carros desde sempre, fiquei surpreso, assim como qualquer um, quando me apaixonei por veículos elétricos.
Não foram políticas governamentais ou crenças políticas que despertaram essa paixão tardia por veículos elétricos. Foi porque eu dirijo um – o meu Ford F-150 Lightning Platinum. Ele é surpreendentemente silencioso e suave. A aceleração sem esforço deixa um sorriso bobo no rosto assim que você sente a adrenalina. Todas as manhãs, o meu está carregado com 300 milhas de alcance. Sem postos de gasolina, nunca. E o mais interessante é que o meu F-150 Lightning tem um enorme frunk (contração de front e trunk, porta-malas dianteiro) com fechadura a chave, além da caçamba. E o Lightning funciona como um gerador móvel, capaz de abastecer um canteiro de obras, um acampamento, um evento de “tailgate” ou até mesmo outro veículo elétrico, ou até minha casa.
É simples assim. Para mim, e para milhões de americanos, os veículos elétricos estão eliminando os incômodos diários e nos lembrando do motivo pelo qual amamos dirigir. Se você quer se divertir ao volante, leve um Mustang Mach-E Rally para uma estrada de terra.
Veículos elétricos não são para todos e nem para todo tipo de trabalho. Mas como principal executivo de uma grande fabricante, sinto a necessidade de dizer aos clientes a verdade sobre os veículos elétricos em meio a toda a desinformação e mal-entendidos.
Eu já vi esse filme antes. Quando a Ford anunciou que passaríamos a usar carrocerias de alumínio no nosso popular F-150, nossos concorrentes fizeram comerciais zombando da gente. Mas os clientes souberam identificar a melhor performance e economia de combustível quando viram.
Lembro-me quando os telefones celulares pareciam ser coisa apenas para médicos e corretores de ações. Quando computadores eram para a Nasa. Quando a internet era uma moda e CDs ficavam no visor da minha caminhonete. Leva tempo para as inovações se consolidarem. Mas quando o fazem, a mudança é profunda e duradoura.
Eu acredito que a próxima grande mudança nos veículos será em direção a carros elétricos e definidos por software.
Hoje, as vendas de veículos elétricos estão crescendo, mas muitos ainda são céticos devido ao carregamento e ao alcance, o que é compreensível. Mas nossa pesquisa mostra que cerca de metade dos americanos fazem viagens de mais de 150 milhas apenas quatro dias ou menos por ano. A Ford oferece vários modelos elétricos que podem ser equipados para ter um alcance superior a 300 milhas/480 km. Além disso, 80% dos proprietários de veículos elétricos carregam em casa, e a rede pública de carregamento está ficando maior, mesmo desde que fiz uma viagem pela região oeste dos Estados Unidos com o Lightning no ano passado. O acesso ao carregamento e a velocidade continuarão a melhorar, assim como as redes de telefonia móvel, que passaram de conexões com chiados e quedas constantes para redes claras e confiáveis.
Para muitas famílias, especialmente aquelas que possuem um veículo a gasolina para viagens mais longas e reboque, um veículo elétrico é uma excelente segunda opção. Muitos compradores de carros citam o custo como um motivo para não considerar um veículo elétrico, mas o preço médio de um suve elétrico caiu quase 22% nos últimos dois anos. Em nossa experiência, os proprietários do Mustang Mach-E economizam, em média, 64% em custos de combustível e 27% em manutenção programada por ano, comparado aos veículos a gasolina. A diferença de custo entre um veículo elétrico e um veículo a gasolina comparável pode ser menor do que você imagina.
O mais impressionante é que, uma vez que as pessoas experimentam um veículo elétrico, geralmente não querem voltar atrás. Quase 70% dos proprietários de veículos elétricos no mundo dizem que só comprarão veículos elétricos no futuro. Se há algo que aprendi em 40 anos é o seguinte: você nunca quer estar do lado errado dos clientes e do que realmente importa na vida deles.
A Ford é líder em veículos de trabalho e nossos clientes comerciais fornecem um caso de estudo interessante. Por que? Porque o sustento deles está em jogo e cada dólar conta. Eles sabem calcular o custo de propriedade, produtividade e conveniência. Empresas que dirigem F-150 Lightning elétricos poderiam economizar apenas em custos de combustível cerca de $ 2.600 ao longo de três anos.
Aqui vai outro ponto. Estamos em uma corrida global para competir em um futuro onde a propulsão elétrica será, sem dúvida, uma grande força no transporte. A América não pode ceder a liderança em inovação para a China, Europa ou qualquer outra região. A Ford sobreviveu e prosperou por 121 anos porque nunca tivemos receio de aproveitar o momento para inovar e enfrentar o futuro. Agora, estamos investindo bilhões em fábricas, centros de tecnologia e em nossa força de trabalho para criar os carros, suves e caminhões indispensáveis do amanhã.
É verdade que estamos perdendo dinheiro com veículos elétricos nas primeiras fases dessa transição, principalmente devido aos custos iniciais de investimento. Mas isso também está mudando. Afinal, qual grande avanço tecnológico não foi desafiador e custoso nas fases iniciais?
O ponto de inflexão que estamos trabalhando para alcançar não virá dos reguladores que nos pressionam ou dos políticos que tentam nos segurar. Virá dos consumidores. Não quando uma fatia arbitrária de mercado for alcançada, mas quando os veículos elétricos forem simplesmente melhores para mais clientes — melhores para dirigir, mais baratos para manter e mais fáceis de se integrarem na vida cotidiana. Essa já é a realidade para milhões de pessoas.
Continuaremos oferecendo aos clientes opções incríveis em gasolina, híbridos e elétricos — para trabalho e para diversão.
Eu poderia dizer “acredite em um cara de carro” que os veículos elétricos são uma ótima escolha para muitas pessoas. Mas você estará melhor ao experimentar um por si mesmo e tomar sua própria decisão. O que pode ser mais americano do que isso? Quem sabe, você pode se surpreender. Eu sei que me surpreendi.”
Esse artigo do LinkedIn acabou gerando uma belíssima entrevista concedida a NBC News. A entrevista completa com legendas em português pode ser vista nesse link. Eu a assisti inteiramente e destaco alguns pontos que me chamaram a atenção.
Primeiro de tudo ele é um verdadeiro entusiasta por carros. Muito além de um “business man” e isso está fazendo toda a diferença para a Ford. Ele sempre foi apaixonado pela empresa e se descreve como um “old school car person” (tradução livre: pessoa que adora carros à maneira antiga). Acho que em termos de Brasil foi bom a Ford focar em carros importados e que mantém as características de carros melhores dos que os que a Ford fazia aqui. Mas que agora atue em segmentos superiores e com preços mais elevados.
Como no artigo do LinkedIn, ele inicia sua fala demonstrando sua paixão por dirigir. Já logo aponta que os carros elétricos proporcionam muito prazer de dirigir, um prazer diferente. Uma “experiência” que precisa ter mais gente falando sobre ela para propagar as diferenças e vantagens. Foi brilhante nisso.
Eu concordo muito com ele pois quando comecei minha experiência com carros elétricos passei por algo transformador. Mesmo eu sendo um autoentusiasta com um grande vínculo ao passado, além de muito respeito e amor, eu também adoro o desenvolvimento tecnológico. E as respostas rápidas, o silêncio a bordo, a simplicidade e a tecnologia em si me encantaram, e até moldaram uma maneira de dirigir nova e melhor. Mas isso vou explicar mais em outra matéria.
Jim Farley segue mostrando a importante posição rumo a eletrificação da Ford nos EUA e explica que os modelos híbridos estão sendo valorizados como indicativo do interesse pela eletrificação. As pessoas têm interesse, mas a eletrificação não pode ser algo imposto. E todo mundo já percebeu isso. Quem aqui não tem vontade de experimentar um elétrico? Independentemente das questões de disponibilidade de carregamento e alcance. Claro que há muitos, assim como eu, nunca vão deixar de amar o som borbulhante de um V-8. Mas se alguém disse que ama as respostas, som e vibrações de um 3-cilindros de 1,5 litro, eu vou achar estranho.
Achei interessante ele voltar para 1909 quando um terço do mercado americano era de carros elétricos e os argumentos de vendas não eram relacionados ao fato de serem elétricos, e sim sobre a sensação de dirigi-los. Ele mostra uma propaganda da fabricante Detroit Electric dessa época.
Este é o carro que tornou outros tipos de elétricos obsoletos
Vamos recapitular brevemente alguns dos pontos que conquistaram o primeiro lugar para o Detroit Electric—o automóvel que, com sua notável viagem de 1.060 milhas de Detroit a Atlantic City sem nenhuma peça quebrada, estabeleceu o recorde mundial para veículos elétricos.
Aqui em Detroit – o centro automobilístico da América – o Detroit Electric substituiu todos os outros modelos.
Aqui, e em todas as comunidades de destaque, é o carro escolhido por engenheiros elétricos, construtores de automóveis a gasolina e outros especialistas em técnica e prática.
Como isso aconteceu?
A imagem praticamente responde a essa pergunta. Ela mostra um carro de elegância e dignidade incomparáveis.
- Mostra que a porta do Detroit Electric abre para a frente, em vez de para trás.
- Os apoios para os pés são ovais, em vez de terem cantos afiados e quadrados.
- Os pneus são mais luxuosos: o traseiro tem 20 polegadas, e o dianteiro, 15 polegadas. (Nos outros elétricos, os pneus que você provavelmente viu têm 18–19 polegadas na parte traseira e 13–14 polegadas na parte dianteira.)
- As janelas frontais curvas são maiores, garantindo que nada obstrua a visão do operador em qualquer ângulo.
- As alças das portas—e todos os acabamentos—são prateadas.
Estes são apenas alguns dos principais detalhes que garantem conforto e luxo perfeitos no Detroit Electric.
Agora, vejamos os detalhes mecânicos e operacionais:
- A bateria é maior e mais potente, proporcionando maior alcance e velocidade. Muitos proprietários do Detroit Electric, em uso contínuo no dia a dia, relatam uma média consistente de 85 milhas por carga, com 100 milhas facilmente alcançáveis.
- Você tem cinco velocidades para frente e três para trás. (Antes, três para frente e uma para trás eram consideradas o limite máximo.)
- O controle de velocidade, o alarme e o freio do motor estão concentrados em uma única alavanca, tornando o controle mais simples e fácil.
- Montar o motor sob a carroceria, no centro do chassi, reduz o peso e o desgaste excessivos no eixo traseiro e nos pneus.
Poderíamos continuar enumerando as cinquenta características e melhorias exclusivas do Detroit Electric, que aumentam sua eficiência e economia de operação.
Mas já não mostramos o suficiente para provar que este é um automóvel esplêndido—superior até mesmo aos melhores que você já viu de outras marcas?
Escreva para nós e solicite o catálogo completo, além do livreto que detalha e ilustra a viagem de Detroit a Atlantic City mencionada acima.
Nos dias de hoje ele sugere que os reguladores respeitem as opções dos clientes sem forçar os carros totalmente elétricos. Que os reguladores entendam que os clientes farão suas escolhas baseadas em seus usos e condições. E assim a transição vai acontecer na velocidade dos clientes. Completa que os BEVs (Battery Electric Vehicles, veículos elétricos a bateria) não devem ser considerados como a solução total ou, na outra ponta, como a solução errada. O que acho certíssimo. E tão logo quando a malha e o tempo de carregamento, o alcance, e os preços se igualarem aos movidos a combustão, os modelos elétricos poderão ser preferidos.
Aponta que ainda serão necessários mais cinco anos para rentabilizar nos elétricos com carros menores e mais acessíveis. Atualmente é dificílimo ter lucro em carros grandes e caros onde só as baterias podem custar US$ 50.000. Ele se entusiasma ao falar do sucesso da Ford em veículos comerciais em que a utilização mais previsível e repetitiva os torna mais atraentes para eletrificação. A Ford detém 70% do mercado de veículos comerciais elétricos nos EUA.
Em seguida nos dá uma pequena aula sobre o sucesso da China com sua estratégia em direção a eletrificação iniciada há 10 anos e que hoje produz 70% dos carros elétricos do mundo. Considerando os subsídios do governo chinês fica difícil a competição e a recente tarifação de carros chineses nos EUA vai ajudar a indústria americana tirar o atraso.
Demonstra uma grande preocupação com veículos modernos (e chineses) sendo máquinas de coleta de dados de várias naturezas. Na China há regulamentação sobre esses dados mas nos EUA ainda não. E aí veículos chineses rodando nos EUA podem ser um problema muito sério.
Na sequência mais uma aula sobre a produção de baterias e os elementos necessários e onde são extraídos e processados. Hoje tudo é processado na Asia, e os EUA têm que investir nessa frente também.
Há dois anos a Ford criou uma operação “skunkworks” (laboratório secreto ou uma operação independente que não tem que seguir as regras da organização) na California para desenvolver inovações.
Essa decisão foi feita com base na experiência em fazer três modelos elétricos, o Mustang Mach-E, a F150 Lightning e o Transit EV. Nas palavras dele, se você solicitar aos engenheiros de produto e produção de veículos a combustão que façam um modelo elétrico esse modelo não será um grande veículo.
Do ponto de vista dos clientes serão ok, mas do ponto de vista de custos não. Os modelos elétricos demandam uma abordagem de engenharia totalmente diferente com foco em otimizar tudo para proporcionar a menor bateria (em tamanho) possível. Isso porque a bateria ainda é a parte mais cara de um veículo elétrico. Ele também explica diferenças de abordagem na manufatura, como, por exemplo, a montagem de módulos eletrônicos logo depois da pintura, para que esses módulos possam monitorar as montagens subsequentes e assim eliminar processos e aumentar a qualidade.
Essa operação skunkworks deve ter seu primeiro modelo no mercado em 2 anos e meio, um carro de US$ 30.000, rentável, e competindo com Tesla Model 2 e modelos chineses.
Sobre AI ele aponta para as possibilidades otimizações na cadeia de fornecedores e manufatura, e nos engenheiros de software. Mas acredita que a força de trabalho continuará, porém evoluindo para outros tipos de trabalho. Interessante que ele levantou uma questão sobre a quantidade de energia necessária para manter os grandes centros de processamento de dados, necessários para operações digitais dos dias de hoje, e como esse tema ainda demanda soluções.
Na sua abordagem sobre carros autônomos e robotáxis ele explica que a Ford tirou o pé disso e decidiu focar em condução semiautônoma nível 3 para ser usada em estradas e diminuir riscos de acidentes o quanto antes. A complexidade para a implementação segura de robotáxis requer muitos investimentos e outros fatores que ainda precisam ser resolvidos. Focar no nível 3 com implementação mais rápida contribui para a redução de acidentes agora, enquanto robotáxis e condução autônoma vão demorar muito mais tempo para ser confiável.
Perguntado sobre a competição com a Tesla, antes de responder ele reconhece e agradece a importância de Elon Musk pela sua visão e implementação dos carros elétricos. Agradeceu também pela Tesla concordar e ceder o uso da sua rede de carregadores à Ford, que acabou sendo seguida por outros fabricantes. Quanto à competição ele explica que a Ford não vai concorrer no segmento de comodities. Continua:
“Quando os clientes entrarem em um Ford não se sentirão como em um Tesla.”
Eu apontei aqui apenas alguns pontos. Vale assistir o vídeo completo.
Obrigado, caro Jim Farley, por ser um autoentusiasta acima de um burocrata. Torcendo e acreditando no sucesso da Ford nessa nova ordem mundial.
PM
A coluna “Substance” é de exclusiva responsabilidade do seu autor.