Volta e meia vem algum comentário de leitor reclamando a falta de críticas a respeito dos carros em teste. Tudo bem, mas eles querem o quê? Que culpa tenho dos carros estarem cada vez melhores? Que culpa tenho da competição pelo mercado estar funcionando? Talvez seja o costume, ainda arraigado em alguns de nós, adquirido após décadas vivendo um mercado restrito a pouquíssimos fabricantes e pequena variedade de produtos. Devido a uma discutível reserva de mercado, por décadas convivemos com modelos obsoletos e só nos restava engoli-los.
Para caçar precisávamos de um cão e nos contentávamos com um gato.
Mas a coisa mudou. Nosso mercado cresceu e se abriu, e só não abre mais porque nossa indústria carrega nas costas — assim como todos os que aqui produzem qualquer coisa — um Custo Brasil absurdo, impraticável. Carregam um peso que os concorrentes externos não carregam. Não temos como competir, portanto. Se pegássemos um “transmigrador de moléculas”, o antigo pó de pirilimpimpim da Emília, e num zap trouxéssemos para o Brasil uma fábrica coreana, com os seus operários junto, veríamos que se ela se submetesse ao nosso Custo Brasil seus carros custariam bem mais caro cá do que lá. Não adianta. Essas taxas sobre o carro importado só poderão ser retiradas quando este país entrar nos eixos.
O Brasil, como dizem, não é para principiantes. Aqui a vaca tosse (na verdade toda vaca tosse e não sei de onde veio essa idéia de que vaca não tosse). Aqui o clima de negócios muda da noite para o dia. É ciclotímico. Hoje, euforia; amanhã, depressão. Ou como no velho ditado da terra de Tio Sam, “galinhas hoje, penas amanhã”. De dezembro do ano passado para este janeiro as vendas de automóveis caíram 31,4 %. Em janeiro deste ano venderam 18,8 % menos do que em janeiro do ano passado. Isso quebraria as pernas de qualquer empresa que tocasse seus negócios por aqui como os tocam nas matrizes. Aqui a cobra não só fuma, como tosse.
Dependemos de fatores que fogem ao racional, portanto, prever o futuro do mercado é depender muito de chute. Nunca temos nada muito conclusivo. E numa situação dessas ninguém que está disputando mercado se arrisca muito, ninguém responsável investe para valer. Precaução, para ter chance de sobreviver e poder esperar por melhores tempos, é a chave. Por outro lado, todos eles sabem que temos um imenso potencial e que cedo ou tarde haveremos de nos livrar das pragas que nos assolam. Isso feito, sabem que este país crescerá com força e consistência. Nosso DNA é bom. Só estamos momentaneamente doentes. Se nos tratarmos direito, se nos livrarmos do mal, tudo bem. E foi por isso que para cá vieram muitos fabricantes de veículos. Eles, nos observando de fora, crêem mais na saúde do Brasil do que muitos de nós, brasileiros.
Hoje somos o país que reúne o maior número de fabricantes de veículos e nenhum deles é bobo ou detém tecnologia insuficiente. Todos eles sabem muito bem que não há mais espaço para pôr no mercado modelos com vícios, “defeituosos”. Sendo assim, não espere o leitor notícia séria e bombástica do tipo “a suspensão é mal projetada, o carro tem estabilidade precária e impede um guiar tranqüilo e seguro”. Dessas coisas estamos livres. Os carros atuais têm características, não defeitos. Todos, hoje, estão suficientemente bons. Defeito é algo que sai eventualmente errado num exemplar de carro, não é da série toda, e é aí que entra a experiência e o discernimento do testador, separar o joio do trigo, separar o que é defeito na unidade testada da característica do veículo. Hoje um modelo é do jeito que é porque o fabricante o queria assim. Se ele não emplaca, não vende tanto quanto esperavam, é porque as características que lhe impuseram foram mal avaliadas pelos responsáveis. Só isso. O jeito é copiar as características dos modelos que estão dando certo e tratar de oferecer algo a mais, e por um preço igual ou menor.
Hoje os “defeitos” recaem sobre detalhes que só um sensível autoentusiasta nota. Por exemplo, pedais mal posicionados para um punta-tacco, estabilidade não tão boa nas curvas, comandos mal modulados, tipo acelerador muito nervoso, pedal de freio idem, ou volante leve demais. Isso são detalhes que passam batido para o motorista padrão.
Não adianta também chorar que nossos carros estão caros. Isso todo mundo sabe ou deveria saber. Acontece que aqui no Brasil tudo está caro, tudo. A nossa energia elétrica é uma das mais caras do mundo, apesar da maioria dela provir da mais barata fonte. Nossa gasolina, idem, além de ser — por causa do “álcool-bucha” que ela contém — a que propicia menor por litro. O nosso hambúrguer Big Mac é o 4º mais caro e o nosso Toyota Corolla também está entre os quatro mais caros (ambos os produtos, por terem vendas em todo o mundo civilizado, passaram a ser referência mundial de preços). Dizem que a nossa vizinha Argentina está na draga, muito mal economicamente. Tudo bem, está sim, mas o fato é que a renda per capita argentina ainda é coisa de 10% maior que a nossa. A do Chile é ao redor de 30% maior. Estamos só uns 10 % acima da do Turcomenistão, essa é que é a verdade.
Nosso país é psicodélico, quase tudo é meio distorcido, desarranjado — e é difícil manter as referências em meio a tal confusão. Aqui, por exemplo, temos a impressão de que o Ford Mustang está num nível bem superior ao Ford Fusion, já que um nos custa ao redor do dobro, ou mais, que o outro. Mas acontece que nos Estados Unidos, não. Seus preços são bem similares, o Fusion começando com US$ 22.010 e o Mustang começando com US$ 23.800, ou seja, só 8 % mais caro. E é por aí que tem que ser. Se formos analisar o automóvel em si, nas versões em que eles têm motores semelhantes, não há por que um deva custar muito mais que o outro. A distorção vem de termos um acordo de livre comércio de automóveis com o México (que é outro país que também tem maior renda per capita que a gente), assim como temos com a Argentina, que desonera parte específica de nossas trocas comerciais. E como o Fusion é fabricado no México, ele é bem menos taxado na importação que o Mustang, fabricado nos EUA. Ora, por que temos acordos comerciais com esses países de economia instável e não com os Estados Unidos? Os EUA são nossos inimigos? Meus é que não são.
Bom, toda esta conversa escrita originou-se quando comecei a escrever sobre o Peugeot 208, câmbio automático, que estou testando esta semana. Tentando satisfazer os tais comentaristas sedentos de sangue, andei sendo cri-cri em busca de defeitos. E até agora nada, a não ser que o câmbio bem que poderia ter 5, em vez de 4 marchas. Mesmo assim, tenho consciência de que o motorista padrão nem vai saber quantas marchas o câmbio tem. Na verdade, nem sabe que câmbio automático tem marchas.
E la nave vá!
AK