O estranho título é, na verdade, nome do capítulo de um livro intitulado “Velocímetro de Emoções”, de Luiz Marinelli Neto (Giostri Editora, São Paulo, 2014), à venda nas boas livrarias por R$ 35,00. É um relato do autor de sua vida, sempre com emoção, às voltas com o automóvel.
Antes que o leitor pense que se trata de “ação comercial”, permita-me contar o por quê desta matéria. Conheci o Luiz por intermédio de uma grande amigo, já falecido, Jorge Lettry, que era o chefe de competições da Vemag. Jorge sempre me falava do Luiz, que costumava o visitar em Atibaia, onde viveu os últimos anos da sua vida (Jorge faleceu em 16 de maio de 2008, aos 78 anos). Foi numa das minhas idas a Atibaia visitar o grande amigo — invariavelmente com um carro de teste para ele conhecer — que conheci o Marinelli, como Jorge sempre se referia a ele e por quem tinha grande admiração.
O Marinelli, de 47 anos, nasceu em São Paulo e se formou em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mas é um apaixonado por automóveis e daí veio a chegar ao Jorge, que tanto admirava pelo passado ligado às corridas, especialmente pela sua atuação na Vemag de 1958 a 1966. Nasceu aí uma amizade que só a morte separou.
Como tinha de ser, Jorge costumava contar ao Marinelli suas boas e más experiências na fabricante do DKW e uma dessas más foi a fase final antes que passasse para as mãos da Volkswagen, em agosto de 1966.
Nessa fase final Jorge lutava para que a empresa saísse do buraco, que se revitalizasse, e uma das soluções seria um novo motor para o DKW, um V-6 de 1.300 cm³ dois-tempos, que havia na Alemanha e que chegara a ser planejado pela Auto Union. A idéia era comprar os direitos e produzi-lo no Brasil.
Para decidir pela aquisição do V-6, Jorge se reuniu com o influente diretor de Vendas da Vemag, Waldemar Geoffroy, para lhe mostrar tudo a respeito do V-6. A reunião foi em seguida ao almoço e enquanto Jorge falava olhando para a papelada, viu Geoffroy…dormindo. Pegou o material e, amargurado, deixou a sala. Nunca mais tocou no assunto em nível de diretoria.
Esse fato me foi contado pelo próprio Jorge, na época, e, evidentemente, ele a contou ao Marinelli.
Ao ler o livro, me deparei com o citado capítulo-título desta matéria e ao lê-lo, gelei. Por isso, fiz questão de compartilhá-lo com o leitor. O autor autorizou o AUTOentusiastas a publicá-lo.
BS
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NAS RUÍNAS
Os dois homens conversam no escritório. Jorge está de pé; o outro, sentado atrás de uma grande escrivaninha. A edificação isolada no meio do gigantesco terreno destoa em meio ao mato alto que tomava tudo ao redor. Jorge se aproxima da janela com vários vidros quebrados e, entre lâminas de uma persiana em frangalhos, olha para a rua. “Talvez mudem o nome dessa rua”, diz em tom de preocupação.
O homem atrás da escrivaninha retruca quase que indignado, e se segue questionando com certa incompreensão. “E por que diabos fariam isso?”.
Jorge dá um sorriso irônico para si mesmo, ainda com o olhar fixo no mesmo ponto. “Ora, meu amigo, é muito simples… Que razão ela teria para continuar a se chamar ‘Rua Vemag’?”.
O homem na mesa leva uma mão ao queixo. A outra segura um cigarro que não termina nunca. Depois de alguns segundos, entra em ar contemplativo, checando um lustre sem lâmpadas. “Bem.. Poderia ser diferente!”.
Jorge, irritado, permanece na mesma posição, e ainda de costas para o homem retruca um tanto alterado. “Poderia… Você disse ‘poderia’… Mas não o que aconteceu”.
O homem do cigarro agora sai em ataque argumentativo: “E você queria que eu aprovasse aquela loucura? Que trouxesse aquele motor V-6 para um país faminto e sem condições de encher o tanque de um simples Volkswagen? Me diga!”.
Jorge se volta para ele irritado. “Me diga você! Me diga os sonhos que teve naquele longo cochilo depois do almoço, quando marquei com você aquela reunião a portas fechadas e você simplesmente desabou em sono profundo sobre a mesa… Enfastiado pela generosa refeição…”.
O homem de terno preto esboça começar uma explicação e é interrompido por Jorge que, exaltado, lhe aponta o dedo em riste: “Dormindo! Isso mesmo, você estava dor-min-do… Certamente sua cabeça estava naquele interesse doentio por motonaútica… E eu, pateta, explicando coisas importantes, enquanto você desabava de sono em plena reunião… O que você tinha na cabeça? Contava carneirinhos de dois tempos? Me fala!”.
O homem se cala em semblante envergonhado. Tenta se justificar empreendendo um enfoque genérico. “Nós já estávamos liquidados. Só você não percebeu… “.
Jorge, agora com as mãos nos bolsos, começa um movimento inquieto com os pés em nítida irritação. Levanta o queixo e desafia: “Liquidados? Com mais da metade dos táxis da capital ostentando nosso emblema na carroceria? Ora, faça-me o favor!!!”.
Jorge assume certa indiferença e, em seguida, se volta para um velho arquivo enferrujado. Há uma etiqueta indicativa colada na primeira gaveta superior: “Departamento de Competições”. Apóia-se no móvel e puxa uma das folhas amareladas que saem pela fresta. Verifica o documento com ar saudoso. “Ah,… Como eu fui ingênuo!”.
O homem da escrivaninha se movimenta, mas permanece sentado. Recosta-se ainda mais e começa um vai e vem na cadeira giratória. Dá uma tragada no eterno cigarro e exclama em tom disciplinar: “Quando você voltou daquela viagem não percebeu? Não notou que representávamos aqui no Brasil uma empresa cadáver? Uma companhia quase já extinta lá na Europa?”.
O diálogo transcorre como uma partida de xadrez. Jorge diz, em meio a risos: “Engraçado você falar agora em cadáver… Bem inapropriado…. Como todas as suas decisões! Inclusive, todas as vezes que suas lembranças repletas de mágoas e arrependimentos me trazem pra cá é sempre tudo igual”.
Jorge vai até o banheiro lavar o rosto. Não há água nas torneiras. Olha para o espelho e não vê nada; nem mesmo a própria imagem. Só o reflexo dos exíguos azulejos partidos atrás de si na parede úmida. Passa as mãos no pescoço, com se checasse um barbear malfeito, e volta para o escritório.
O homem da escrivaninha brinca com uma caneta, girando-se sobre a mesa como se fosse uma roleta. Jorge nota que a cada vez que se volta para falar com ele, um item do mobiliário daquela sala desaparecera. Já não há mais quadros nas paredes; manchas quadradas denunciam que ali havia algo daquele formato, mas agora são só pregos que parecem pendurar sombra. Alheio a isso, retoma do ponto onde parara anteriormente. “E por falar em decisões inapropriadas… O que que fez com que aprovasse um carro com o peso de uma locomotiva chamado ‘Fissore’? Pois é…Foi escolhido inclusive um ‘carrozziere’ italiano, especializado em carros funerários, para o desenho da carroceria. Foi longe mesmo, hein!”. Jorge se senta na cadeira que sobrara. “Agora fiquei curioso. Vai, desembucha… Escolher um rabecão foi porque nós representávamos uma empresa já morta? Afinal, foram essas as suas palavras há pouco, não foram? Esclareça!”.
Rainha agora toma o Bispo, naquele hipotético tabuleiro.
“Bem, eu só queria….”
“Ah, você só queria… Talvez você, no seu ‘querer’, não tenha desejado com o devido bom senso… Quem sabe tenha usado a mesma precipitação que teve quando assinou os papéis de venda de toda a fábrica por um valor que depois diversas vezes confessou ser irrisório.”
O homem agora já não tem a escrivaninha diante de si. Jorge olha para o lado a tempo de flagrar o desaparecimento total daquele arquivo, fecha os olhos e, com o polegar e indicador, aperta o espaço entre sobrancelhas. Quando abre os olhos novamente dá pela falta do lustre. De fato, a sala já não tinha mais o teto…
“Olha, Jorge,… A questão do ciclo ultrapassado dos dois tempos já era um fato consumado!”.
Jorge se levanta da cadeira e se aproxima do homem. Bispo agora toma Torre. “Hum… E você, que entende tanto de motonáutica, acha que as lanchas são a vapor, eu suponho”.
Xeque-mate.
O homem de terno preto se cala. Coça a cabeça e retrai o pescoço em expressão de surpresa. Jorge quer voltar a se sentar, mas não encontra aquela cadeira que usar anteriormente. Continua de pé.
Com o cigarro entre os dedos, o homem sentencia: “Nós não tínhamos perspectiva… Ou sorte. Sei lá”.
O técnico em pé amarga aquelas palavras ditas pelo diretor sentado. “Você é bom no hipotético, no abstrato. Daqui a pouco vai dizer que todas as nossas vitórias em Interlagos foram obras divinas da sorte! Ah, mas isso eu não vou tolerar mesmo!”.
Os dois de pé agora se confrontam em uma sala nua de objetos e sem qualquer móvel, entre paredes descascadas e sem pintura.
“Bem, vamos esquecer os rancores”, diz o homem de terno, que esboça um sorriso tímido. Com a mão do cigarro, gesticula, enquanto diz: “Eu ia dizer para o último apagar a luz, mas…”. E aponta para o teto inexistente. “A propósito, Jorge… Que dia é hoje?”.
“Que dia é hoje?!”, Jorge rebate indignado. “Quantas vezes você já me perguntou isso? Por que não pergunta em que ano estamos, já que também não fará qualquer diferença?” Quanto tempo passou, quarenta, cinqüenta anos? Talvez mais!”
Jorge, com lágrimas nos olhos contempla novamente a Rua Vemag. Exclama com um nó na garganta: “Nós fomos esquecidos!”. O homem de terno põe a mão no ombro de Jorge e diz: “Eu talvez…. Mas você, nunca!”.
Mostrando exaustão, Jorge complementa: “Quantas vezes mais vamos ter esse diálogo? Para sempre?”. “Não, acho que esta é a última”, e o cigarro se apaga na mão do homem de terno. “Perdidos na névoa… Fumaça azul…”, diz Jorge. “Quanta ironia! Seremos lembrados?”
“Talvez, meu amigo. Talvez”.
Tudo desaparece. Já não há mais escritório e nem mesmo sinal dos dois homens. No local resta apenas um monte de areia com alguns tijolos. É primavera. Alguns meninos empinam pipas no enorme terreno e olham curiosos a chegada dos primeiros tratores para terraplanagem.
P.S.: Fumaça azul é aquela expelida pelo escapamento dos motores de dois tempos DKW, e é como é chamado o encontro anual dos carros da marca, Blue Cloud (em português, “nuvem azul”).