Não, pessoal. Não é nada do que alguns possam estar pensando. Trata-se de um texto sobre essas coisas que têm rodas e por enquanto ainda queimam gasolina em sua maioria, não sabemos até quando, chamadas veículos automotores, objetos de nosso entusiasmo. Nesse caso especifico um daqueles exemplares com apenas duas rodas chamados motocicletas, mais parecidos com os de quatro rodas do que pode imaginar quando se olha ou se monta.
Muita gente torce o nariz às motos, e se recusa a aprofundar-se no assunto. Esse texto foi escrito pensando nessas pessoas, às quais eu me incluía até meados do ano retrasado, quando uma semente plantada despretensiosamente começou a germinar na minha cabeça que começou a aventura impensável até então: seria possível viver em uma metrópole e ter uma motocicleta sem que isso implicasse em atentados contra a minha integridade física?
Pois bem. Até então essa questão já estava respondida antes mesmo de ser perguntada, até porque na minha formação médica tive um período de entusiasmo pela cirurgia geral que me levou a ser estagiário no maior hospital de trauma de Belo Horizonte e um dos maiores do Brasil, onde eu era claramente influenciado pelo resultado das barbaridades que a imperícia e a imprudência poderiam causar à saúde humana, mutilando dezenas de pessoas no auge de sua vida produtiva. E reparem que dentro de um hospital ainda se vê aqueles que sobrevivem. No IML a coisa é bem mais taxativa, dizem. Ainda assim já tinha, pois, opinião formada. Moto em cidade grande brasileira não dava.
No entanto, sempre simpatizei com essas engenhocas de duas rodas, meu primeiro contato com um comando de veiculo do qual tenho lembrança foi aos quatro ou cinco anos: numa ladeira, em subida, me ser passado o lado direito do guidão pelo meu tio me pedindo que à medida que o morro fosse acabando soltasse lentamente o acelerador para manter a mesma velocidade. Isso para uma criança nessa idade, com um motor barulhento embaixo das pernas e o cheiro de gasolina que brotava daquele respiro do tanque da XLX 250 deve ter sido o grande evento que me fez amar os automóveis. Uma overdose de sensações quando se tem um cérebro em branco e ávido por informações. Outros tempos aqueles. O que aconteceria nos dias de hoje ao meu pobre tio e a mim se isso fosse flagrado, ou pior, filmado? Chamada no Fantástico, domingo à noite, para a irresponsabilidade? Prisão perpétua? Morte aos dois por apedrejamento? Reciclar a moto e transformá-la em latinhas para plantação de mudas de árvore? Difícil prever.
Cheguei mesmo a tirar carteira de moto, com 19 anos, depois de ser habilitado para automóvel, mas nunca havia me aprofundado em como pilotar. Fui lá, andei naquela pista de malabarismo ridícula, e como um macaquinho amestrado voltei com a carteira A… Pouco andava naquilo, e o pouco que andava, no interior, seja na roça ou cidade tranqüila, era pela praticidade. O entusiasmo se direcionara mais aos carros, mesmo.
Então certo dia estava eu em um site daqueles que você só vai quando já leu tudo que presta sobre carros, mas a cachola pede um pouco mais de informação. E no meio dos comentários eis que surge um assunto sobre motos e o risco de pilotá-las no dia a dia, e alguém cita um tal artigo de revista chamado “The Pace”, explicando brevemente a filosofia de obter diversão a bordo de motos, em vias públicas, sem se expor a riscos de acidentes ou multas. Interessante, pensei. Fui atrás do tal artigo, publicado por um instrutor e ex-piloto americano chamado Nick Ienatsch e logo descobri também um livro do mesmo autor explicando sua relação com as motos, lições de sobrevivência em ambientes urbanos e muitas dicas de pilotagem baseadas em suas experiências na pista.
Consiste em aprimorar a técnica de pilotagem, com ajuste fino de frenagem e dirigibilidade, buscando a perfeição, o tangenciamento perfeito, o uso do acelerador e freios como forma de auxilio nas curvas, bem como tirar vantagem da movimentação do corpo sobre a moto alterando o centro de gravidade. Enfim, sintonia fina de pilotagem. A proposta é ser capaz de se colocar a centímetros da trajetória planejada, e conduzir a moto em vez de se tornar um passageiro em potencial em caso de imprevistos. Detalhe importante é que não há um tipo de moto, marca ou cilindrada ideal. O importante é incorporar esse estilo de pilotagem mais aprimorado, respeitando-se as limitações de cada uma.
Mais interessante ainda é o desestímulo a altas velocidades em retas e a ênfase no prazer e desafio de se fazer curvas. Pensando racionalmente até um macaco treinado é capaz de enrolar um cabo de acelerador. Fácil de ser usado e abusado, e com conseqüências muitas vezes difíceis de controlar. Já as curvas são desafiadoras, cada uma tem suas características, e inúmeras variáveis. Grande parte dos acidentes são causados por entrada de curva em alta velocidade seguida de correção intempestiva. Ênfase também na proibição de cruzar a linha amarela contínua. Além de perigoso, seria um pecado desperdiçar as curvas. A proposta era boa demais para ser verdade: buscar prazer ao “volante” sem se expor a grandes riscos de velocidades elevadas, contribuição extra aos cofres públicos, e de quebra ganhando em praticidade e qualidade de vida.
O livro foi devorado em poucos dias, e o histórico do navegador foi ficando cada vez mais recheado de sites de motociclismo, e por fim aqueles com classificados de motos usadas. Em poucas semanas meu inconsciente me levou a lojas de moto e estudos, até escolher um modelo ideal para começar. Precisava de algo de cilindrada média, com reserva de potência, e comportamento dócil. Não foi difícil chegar a uma CB500 ano 2000 vermelho Candy (existe nome mais bonito para uma cor do que esse?). No dia de apanhar essa criatura não tinha nem coragem de buscar na pequena cidade vizinha de Mateus Leme, pedi que o antigo dono a colocasse em minha garagem e o levei de carro até a cidade dele. Só ao chegar em casa é que me sentei na frente “daquilo”, pensando no tamanho da lambança que eu tinha feito.
Essa pinça dianteira da Brembo, para mim, é como uma obra de arte.
Para piorar a situação nem capacete eu tinha. Para dar uma volta enquanto o capacete não chegava foi preciso arriscar: chegando cedo depois de um plantão dei uma volta no quarteirão e nem uma alma viva nas ruas. Óculos escuros e dedo na partida, duas voltinhas no quarteirão, um dedo apontado como se um ser humano andando de moto sem capacete fosse uma ameaça à integridade da raça humana, e de volta à garagem. Só esse micro-passeio já me bastaram para entender que não tinha feito um mau negócio. E foi por Deus essa voltinha, porque na semana seguinte levei um tombo de cavalo cinematográfico que me deixou sem poder levantar a perna do chão por uns dois meses. Se ainda não tivesse andado era bem capaz de eu achar que aquele tombo era um sinal para eu não mexer com moto, e desistir de tê-la. Outro problema foi a, digamos, surpresa da esposa com a novidade na garagem. Não vou entrar em detalhes das dificuldades, mas posso assegurar que hoje em dia ela consegue passar a até 2 metros da moto sem proferir palavra contrária, e dia desses sou capaz de jurar que a borda do seu vestido chegou a tocar na pedaleira. Considerei isso como o primeiro contato físico. Estamos tendo progressos.
Agora, senhores autoentusiastas, tentem conceber do que estou falando: Um veículo com cerca de 5 kg/cv, piloto incluído, com 0-100 na casa de 5 a 6 segundos, com um motor urrando e vibrando debaixo do seu traseiro, com um cabo de acelerador sem nenhum duende entre você e o asfalto que toca os pneus, para o bem ou para o mal. O único algoritmo que rege seus comandos é o que mora dentro dos seus miolos. Câmbio manual seqüencial, com um “punta-tacco” delicioso de ser feito com a ponta dos dedos. Sensação de vento no rosto para conversível nenhum botar defeito. Visto dessa forma parece interessante, não?
Claro que existem problemas. Sérios problemas relacionados à segurança passiva, que para mim é praticamente inexistente em motos. Então precisamos partir do pressuposto que o risco de se machucar seriamente, em caso de acidente é muito alto, e é preciso ser OBSESSIVO em baixar esse risco ao mais próximo de ZERO. Para isso tem de ser paranóico com segurança, e a procura de erros de pilotagem deve ser constante, se perguntando a toda hora o que se está fazendo de errado naquele instante.
No entanto, ainda no tema segurança, vale lembrar que as motos são imbatíveis em termos de segurança ativa: aceleram melhor, freiam melhor, proporcionam maior visibilidade, que por sua vez permite se antecipar aos movimentos dos outros veículos, o que ficou difícil ao andar de carro, porque se o carro à frente for usuário dos sacos de lixo nos vidros e você estiver de carro atrás pode esquecer. É como estar atrás de um caminhão-baú.
Obviamente não conseguiremos, nem como todo cuidado do mundo, reduzir o risco a zero. Mas a maioria dos fatores necessários para se causar um acidente podem ser controlados por nós, condutores, então melhor parar de se preocupar com os fatores que não podemos controlar, e concentrar naqueles que dependem de nossas escolhas. Nunca, mas nunca mesmo, coloque seu boné onde não possa apanhar. É inadmissível se colocar numa posição que lhe coloque inteiramente nas mãos dos outros motoristas. Em outras palavras, não confie em ninguém, a não ser em você mesmo, e sempre tenha um plano de fuga traçado.
Aprendendo a pilotar eu me tornei também um motorista de carros muito melhor incorporando hábitos simples, como olhar o mais distante possível que puder enxergar adiante. Isso funciona quase como uma máquina do tempo, que lhe faz prever uma frenagem ou situação de emergência preciosos segundos antes. Sutilezas como não se colocar no famoso ponto cego dos retrovisores (um alarme toca na minha cabeça toda vez que estou lado a lado com outro carro, até que as rodas da frente estejam emparelhadas, quando se deixa de ser invisível. Minimizando esse tempo crítico de acidentes se reduz em muito o risco de ser atingido por uma guinada brusca. Saia desse espaço acelerando ou freando o mais rápido possível. Veículo muito “solto” dentro da faixa, ou pior, fora dela, pode indicar alguém desatento. O cuidado inclui até mesmo passar em cruzamentos menos movimentados a uma distância parável em caso de emergência.
Carros de outra cidade ou estado também são mais propensos a mudanças bruscas de trajetória ou conversões repentinas. Motoristas perdidos são um perigo: se nem ele próprio sabe pra onde está indo, como é que você vai saber? Cada detalhe conta.
Sua relação com os freios deve ser de uma intimidade quase sexual. Conheça é compreenda a resposta do freio, da suspensão dianteira à medida que o peso é redistribuído e se concentra na frente da moto. Use o freio da frente sempre, e, para início de conversa, nunca use o traseiro, ou pelo menos use pouco, bem pouco.
Hoje depois de quase dois anos fico com a sensação de que segui o caminho certo ao dar uma chance às duas rodas.
Fica então o convite ao entusiasta que me proporciona o prazer de ter sido meu leitor: se você aprecia a sensação de estar ao volante e anda enfastiado com esses carros que dirigem por você, filtram suas ordens e o anestesiam do mundo, dê uma chance às motos: com cautela, responsabilidade e vigilância contínua. Bom passeio!
I have become
Comfortably numb
(Eu me tornei completamente anestesiado)
Roger Waters, David Gilmour
MA
ooooo