Nasci em algum dia de 1983 em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, e me levaram para Garça (SP), onde seria deixado num concessionário, que se chamava Sotebra, para ser adotado. E assim, em 23/08/1983, fui adotado por uma família de fazendeiros. Confesso que a experiência me deixava ansioso e ao mesmo tempo me assustava. E realmente foi assustador porque descobri que tinham me comprado para substituir a Azulona, outro irmão mais velho meu, uma Kombi 1977 que já estava exaurida de tanto ser abusada nas lidas rurais.
Meu dono, que todo mundo chamava de Dr. João (em respeito à sua pessoa, reta e boa), sempre andava comigo e se preocupava com minha saúde e integridade física. Fazia-me ser sempre atendido nas oficinas da Sotebra, na época referência em bons serviços aqui na minha cidade. Contudo, o trabalho agrícola era pesado e as pessoas que me dirigiam me tratavam muito mal, abusando de minha saúde que, embora forte, também tem limites!
E assim fui sendo usado diariamente. Durante a semana saía para rodar pelo café, geralmente apenas com o administrador da Fazenda. Vez ou outra, o Dr. João, meu legitimo dono, ia comigo. Quase que todos os dias ia à cidade (algumas vezes, mais de uma vez ao dia), distante uns 25 quilômetros de casa (sendo 13 km de terra) para fazer atividades da Fazenda ou transportar alguém.
Eu andava tanto que conhecia os buracos da estrada como ninguém. As pessoas me conheciam pelo bagageiro: um dia colocaram um na minha cabeça e ao longo do meu trabalho viviam colocando coisas nele, mas o comum era uma escada dessas estilo companhia telefônica, além do meu estepe, em cujo local original costumavam, inicialmente, colocar sacos de cimento, ferramentas e que depois acabou apodrecendo, ficando um buraco.
E assim passava a semana andando no café, acompanhando os serviços da Fazenda, carregando ferramentas, pessoas, levando gente doente para o hospital, grávidas para dar a luz, enfim, servia de carro, picape e, principalmente, jipe, porque andava sempre na lama e areia e raramente atolava, a despeito dos meus Pirelli Tornado Alfa 5,60-15 de andar no asfalto.
Nos fins de semana era comum eu acompanhar os jogos de futebol rural. A Fazenda tinha um time e naquele tempo, colocavam um toldo no Fordão — o Ford F-600 Perkins — e eu ia levando o “cartola”. Vez ou outra tinha que buscar algum jogador em outra fazenda, mas depois, a tarde de domingo era na beira do campo. Pena que eram raras as vezes que não tínhamos que sair correndo: sempre tinha briga.
Também fiz muitas amizades, mas amizade sincera mesmo foi com um menino na época com 7 anos, chamado Daniel, lá por 1986, que me conheceu e ficou meu amigo. Ele era neto do Dr. João e sempre que vinha à Fazenda, enquanto os primos dele freqüentavam a piscina ou andavam a cavalo, o menino ia brincar comigo.
Nessa trajetória rodei 290 mil km. Fiz muitas viagens, fui à praia, São Paulo, Bahia. Sofri quatro reformas no meu coração 1300, usei (e abusei do álcool), mas no final das contas, não fugindo ao meu DNA germânico, me sinto melhor com benzin (gasolina). Óleo e gasolina raramente me faltaram, mas carinho… Isso me fez sofrer muito, até que um dia de 1993 fui encostado. Guardaram-me no fundo de uma garagem e meu coração acabou travando. Arrancaram-me os pára-lamas, meus pneus murcharam e acabei virando um estorvo, ocupando espaço. A Dona Morte começou a me rondar, vários sucateiros querendo me comprar por quilo. Tinha um em especial que queria porque queria me carregar no seu C-60, cuja correia do ventilador era uma corda! Sentia-me um lixo. E era mesmo. Nessa época abriguei até uma galinha poedeira. Fui berço para uma ninhada de pintinhos!
Nesse tempo, meu único amigo ainda era o Daniel, aquele menino que conheci muitos anos antes, mas ele não ia sempre à Fazenda. Quando ia, se esforçava em me deixar um pouco mais feliz, tentando limpar um pouco da sujeira e tentando fazer meu coração pegar novamente, mas era difícil. Sem ferramentas, sem ajuda. As pessoas à minha volta falando abertamente do meu destino. Já tinha até gente cobiçando as minhas partes, quando um dia de 1995 me arrastaram para fora da garagem e pensei que a morte tinha chegado. Mas não! Jogaram-me em cima do Pingüim (um Mercedes L-1214 que o Dr. João comprara da cervejaria Antárctica) e me levaram para a cidade, onde lá ganhei um câmbio novo e arrumaram meu coração 1300 já meio combalido.
Neste dia fiquei sabendo que eu tinha um novo dono: o Dr João me deu para o neto, aquele menino de 1986, agora com 16 anos. Era 1995. E de lá até hoje venho sendo tratado com muito carinho. Ganhei coração novo e pulsante (um 1600 reconstruído por um antigo mecânico de Volkswagen), meu interior ficou idêntico aos dos meus irmãos de exportação da época, enfim, ganhei uma nova vida e hoje me dou ao luxo de ser até sistemático! Outro dia o Daniel me deixou no galpão de um amigo dele, mas não me contou das pombas que faziam as necessidades em todo lugar e em cima de mim. Fiquei tão nervoso que quando ele foi me buscar peguei fogo na partida. Mas nada de mais, o fato é que ele gosta muito de mim e eu dele.
E, assim, vou para o meu 32º aniversário (veja minha foto atual no início da minha história) com saúde e repleto de carinho do meu novo dono e das crianças dele, que gostam de andar comigo. O Théo, o mais novinho, com apenas 1 ano, sorri o tempo inteiro quando anda em mim e quanto ao Caê, de 10, ele fica especulando quando vai poder me levar para passear! Não tenho placa preta, mas quem precisa dela quando temos um dono que gosta da gente e nos estima?
E em homenagem ao Daniel, meu dono, mostro as fotos de duas pessoas importantes na vida dele: O Dr João, meu primeiro dono e seu avô paterno, e D. Almira, sua avó materna e que tanto gostava e falava dos Fuscas que ela teve!
DSA
Fotos: autor
ooooo