Caro leitor ou leitora,
Dando continuidade à publicação aqui no Ae do livro do Arnaldo Keller, “Um Corvette na noite e outros contos potentes”, hoje é a vez do quarto capítulo, “Um Corvette na noite paulistana”. Tenho certeza de que muitos de vocês curtirão o “lado selvagem” do Arnaldo em uma aventura amorosa misturada com velocidade — lembrando que seu livro é uma obra de ficção, mas tão magistralmente escrita que se fica em dúvida se é mesmo.
Boa leitura!
Bob Sharp
Editor-chefe
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UM CORVETTE NA NOITE E OUTROS CONTOS POTENTES
Por Arnaldo Keller
Capítulo 3 – Um Corvette na noite paulistana
Finalmente eu tivera uma boa noite de sono. Após uma longa e angustiante semana em abstinência sexual, finalmente trouxera uma mulher para a cama. Sabia que era do que precisava para me sentir em ordem, equilibrado, e em condições de dormir um sono profundo e relaxante, sem sonhar nada. Finalmente estava calmo. Olhei-a. Ela dormia de lado e com as pernas encolhidas, como um bichinho cansado. Estava calor, São Paulo teve uma de suas noites quentes.
O lençol cobria-lhe os pés.. Passei a ponta do dedo indicador pela depressão da sua coluna, que era ladeada por dois fortes lombares. A pele estava úmida de um suor fininho e leve. Pus o dedo na boca e provei o que tocara. Humm!.. Que gosto bom tem as mulheres, refleti.
Levantei, escovei os dentes, lavei o rosto. Ao passar a mão pela fronte senti o galo que formara do lado esquerdo. Doía pouco. Enrolei uma toalha na cintura, fui pra cozinha, botei água pra ferver. Enquanto a água esquentava, desci à garagem. Estava bem servida: um Corvette Sting Ray, vermelho, conversível, 1967, motor big-block 427, e um Ferrari Dino GTS, prata, 1974 — um bruto e um finesse. Abri a porta do Corvette e agachei-me para procurar no assoalho o que me acertara a cachola. Achei. Era um isqueiro Zippo. Nele havia algo gravado em baixo relevo. Tenho astigmatismo, preciso dos óculos para ler. Depois eu leria. A água já deveria estar fervendo. Voltei, coei o café, tomei, acendi com o Zippo meu primeiro cigarro do dia, o melhor, e soltei uma baforada. Peguei o jornal na porta de casa, dei uma passada de olhos pelas manchetes enquanto fumava, voltei para o quarto. Liguei o ventilador do teto em velocidade mínima. Deixei o isqueiro no criado-mudo.
Ela virara de bruços. Fiquei olhando. Minha atenção concentrava-se na sua bunda – morena, carnuda e dura, bronzeada de sol, com a marca do biquini em forma de vê. Em certas situações, nádegas fortes é um dote feminino bastante conveniente. Dei-lhe um beijinho.
Até ontem nunca nos havíamos encontrado, e agora, poucas horas após vê-la pela primeira vez, já conhecíamos bastante bem um ao outro, ao menos as intimidades. Do trivial, praticamente nada. Voltei a passar o dedo por suas costas, levemente, para não acordá-la. Voltei a prová-la… Hummm! Será preciso saber mais?
Eu a vira numa pista de dança de uma boate dos metidos a bacana. Ela dançava com um loirinho pé de valsa, maneiroso. Os dois, dançando, se davam bem. Bastava o toque de um para o outro dar o rodopio certo. Usava mini-saia. Uma mini-saia escura, vermelha e azul, florida, que parecia ser de seda, tal qual sua pele. Os movimentos da dança faziam a sainha subir e as grossas coxas apareciam ainda mais. A fina seda esticava com a contração dos músculos da bunda. Notei a bunda forte, bela e arrendondada. Bunda vigorosa, viva, das que em pé seguram um lápis com a justeza das nádegas.
Do meio da escada que descia à pista, apoiado ao corrimão de madeira e tomando meu uísque-sauer, fiquei observando-a, perturbado, com o olhar fixo. Minha cabeça ia num redemoinho. Concentrado, traçava planos. Uma, duas, três músicas. Eles não paravam de dançar. Era importante analisar seus gestos, pois eles mostrariam se o que os unia era somente a dança ou se havia alguma atração amorosa, sexual. Analisei melhor. Não, não era amorosa nem sexual. O loirinho não arrepiava o cangote, ou seja, não abaixava o queixo curvando o pescoço, olhando-a de cabeça baixada, avançando sua direção com certo ar taurino. Ele aproximava-se de queixo alto, olhando o teto, enlevado, encantado consigo mesmo. Era uma bicha. Ele podia não saber, mas era uma bicha. Ter uma linda mulher nos braços e pensar em si próprio é coisa de bichana. A mulher saca logo. Ela quer a atenção do homem. Ela quer o homem atraído, hipnotizado, focado nela. O caminho, portanto, parecia livre.
Encarei-a na cara-dura, fixando seus olhos, que não me viam, enquanto giravam em dança. Sabia que esse olhar fixo, de algum modo, fariam seus olhos parar em mim, curiosos, querendo descobrir quem tanto a tinha na mira. Era só uma questão de tempo. Ela me viu. Rodopiou nas mãos da bicha que não sabia ser bicha. Voltou a me olhar, sorri-lhe. Fiz-lhe sinal – enrugando a testa, levantando o lábio inferior e balançando o queixo para cima, dando uma olhada rápida ao loirinho e voltando a ela – perguntando quem era o cara, qual era a dele. Ela me piscou.
Afinal, num intervalo entre as músicas, cansaram e pararam, deixando cair os braços. Ela afagou-lhe o peito e falou-lhe ao ouvido. Ele foi ao bar, na certa pegar o que ela lhe pedira. Ela foi para a mesa, onde, sentada, passou a conversar com uma amiga. Olhou pra mim e deu a dica. Fui.
Eu merecia um tapa. Até fui preparado para tomá-lo, porém, não tomei. Sentei-me à sua frente, olhei em seus olhos e, enquanto dizia que a achara linda enfiava a mão entre suas pernas quentes. Ela estremeceu, mas após um breve momento de descompostura, aprumou-se, e com as coxas quentes apertou minha mão. Afagou meus cabelos e sorrindo disse que também gostara de mim. Que bom!, respondi. Vamos embora?, perguntei.
Ela cochichou com sua amiga, deu-lhe um beijo, pôs a bolsa a tiracolo, ajeitou os cabelos, pegou na minha mão e saímos. Nem olhamos pra trás. Essa foi fácil, mas é preciso técnica. O negócio é ter fé e agir de acordo com ela, sem titubeios e sem salamaleques.
Meu Corvette estava parado ao lado da porta de entrada. Quando havia chegado com o carro, os manobristas, rindo e acotovelando-se, pareciam disputar quem o guiaria. Disse-lhes que só eu o dirigia e procurei lhes minimizar o desapontamento com uma boa gorjeta. Pedi para estacionar junto a eles, já que estava sem a capota, que estava na oficina trocando a lona. Fui atendido. Manobrei, encaixei, e enquanto descia do carro e enfiava as chaves no bolso achegou-se o dono da boate, um inglês sordidamente bêbado. Uma japonesinha gostosa e super-maquiada o sustentava sob seu braço sem que ele se desse conta. Logo o inglês veio falando alto, com a boca úmida: “—Teu carro até que é bacana, mas tenho um Jaguar E-type muito mais bonito que esse seu Corvette aí! É mais chic! A frente é muito mais longa e afilada e….”.
“—Então enfie esse seu Jaguar no olho do seu cu!”, respondi-lhe. Virei e entrei na boate. Tinha mais o que fazer…
Então, Matilda e eu saímos da boate e ela achou bonito o Sting Ray e perguntou se corria muito. Falei que não muito, só o que eu precisava. Liguei e saímos. Uma das boas qualidades do Corvette é a elasticidade do motor V-8. O torque é tão alto e sua faixa tão ampla que é possível deixá-lo somente em terceira marcha que ele dobra esquinas e acelera rápido nessas madrugadas vazias sem que precisemos tirar a mão direita de entre duas coxas lisas e convidativas que vão ao lado. Nossa atenção se divide: pé direito no pesado acelerador, mão esquerda no delgado e leve volante, mão direita em novos campos a serem explorados. Ia razoavelmente devagar, mas não tão devagar que inspirasse uma falta de pressa, uma falta de prazerosa ansiedade pelo nosso destino. O Corvette conversível, mais uma vez, mostrava-se o carro ideal para esses trajetos. O Dino era pra outras coisas.
Com o fundo sonoro do grave ronronar do 427, escuto a voz feminina da Matilda. Falava portunhol e tinha cecéia – fato comum essa cecéia nas mulheres de língua espanhola. Era mexicana, das boas. Estava no Brasil há poucos dias e por aqui ficaria mais outros poucos. Viera a trabalho. Algo a ver com a importação e exportação desses carrinhos mixurucas que são produzidos aos milhões, com pequenos e acanhados motores e que as pessoas usam para se locomover modorrenta e diariamente. Carros que são consumidos e jogados fora como uma geladeira velha. Não tenho desses. No dia a dia uso táxi.
Íamos na boa, até que o desgraçado do inglês me apareceu com o Jaguar pelo lado direito. Realmente, o E-type era lindo. Preto reluzente, também conversível. O ilhéu parecia sério, aferrado ao volante. Descíamos a Rua Augusta, deserta, e nos dirigíamos aos bairros residenciais, onde moro e pretendia comer a gringa. Passamos a igreja em que as senhoras ricas e irremediavelmente provincianas sonham casar suas filhas e logo passaríamos o posto que tem gasolina boa. Em segunda marcha, o inglês mantinha o giro alto, acelerando e tirando o pé rapidamente, fazendo um vai-e-vem ao meu lado. Eu seguia calmo e constante, no giro baixo da mesma terceira marcha que havia engatado há vários quarteirões. Ele tirou a mão esquerda para fora e com o dedo médio apontou para o céu. Julguei que ele ficara chateado com a nossa conversa na porta da boate e não a dera por encerrada. Tentei fazer cara de medo. Não consegui. A japonesinha ia ao seu lado e gritava num matraquear esquisito, também parecendo brava comigo.
Pus quarta marcha para baixar ainda mais meu giro e poder escutar melhor o seis-cilindros, duplo-comando do Jaguar. Escutei-o desregulado, com mistura gorda, sinal do pouco gabarito que tinha o cara para ser dono desse belo carro. Eu sabia que ele não tinha chances, pois meu V-8 era um sete litros de 435 cavalos, e já o dele, 4,2 litros e 265 cavalos. O meu carro é só uns cem quilos mais pesado – sem chances para ele. Mesmo assim era um visual bonito ter os dois emparelhados; pena que não seria por muito tempo.
Expliquei à Matilda o motivo da treta e pedi-lhe permissão para darmos uma brincadinha com os chatos, só pelo prazer do esporte. Ela gostou da idéia. A moça era mesmo aventureira. Chegando perto do farol da banca de jornal, fui me colocando à esquerda, pois não queria ficar espremido entre um inglês enfurecido e a calçada. Parado no farol, deixei o motor em marcha-lenta. O inglês, nervoso, bombeava forte o acelerador, fazendo um belo ronco, porém, desnecessário; e eu, quieto. O farol amarelou. Dei duas aceleradas fortes, ensurdecedoras, para limpar as goelas do bicho – vrrúúmm, vrrúúmm! O torque do motor fez o Sting Ray oscilar lateralmente, intimidante. Voltei a deixá-lo em marcha-lenta. Dei uma olhada para ver se não vinha ninguém pela Groelândia, à direita — sabe como é, a essas horas da noite alguém pode se arriscar aproveitando a luz amarela… Estava limpo. Veio a luz verde. Larguei antes dele. Rruááárrr!!!! O diferencial blocante grudou as rodas traseiras no chão, a frente levantou, a Matilda agarrou-se à alça da porta e deu lá seus gritos de olé ou coisa parecida. O Jaguar, de cara, ficou pra trás, parecendo ter dado ré. Firmei a mão esquerda ao volante, alinhando a frente que parecia decolar, e estiquei a direita buscando a alavanca de marchas. Embreei rápido o duro pedal e puxei segunda na alavanca curta e que faz um cláck gostoso de borracha e metal. Mais uma grudada das costas no assento, os dois escapes bramindo de arrebentar, o ar rufando já formava uma carapaça aberta à força pelo pára-brisa. Olhei pelo retrovisor: os faróis do E-type iam longe. Deixei em segunda, pois o próximo farol fechava e eu já estava a mais de noventa milhas, 145 km/h, e passei a frear. Dessa vez, dei a esquerda ao babaca. Ele parou com um sguíínnch, freando forte ao meu lado. Ele estava puto, porém, calado e duro.
— E aí, corno? — perguntei — Tá bom ou quer mais?
A japonesinha levantou-se, agarrando-se no quadro do pára-brisa. Gritava. Jogou algo que acertou minha cabeça e caiu no assoalho. Doeu um pouco, mas nada de mais. Mira filhadaputa tinha a japa. O farol abriu, largamos. O Jaguar arrancou, a japonesa, meio desconjuntada, caiu sentada no banco. Dei só meia-força e deixei-o ir um pouco na frente, para animá-lo. Tomei a travessa enviesada à direita e sumi nos Jardins. Ele seguiu reto sem perceber que eu caíra fora. Pus em ponto-morto, diminuindo a velocidade e olhei para a Matilda. Ela estava contente, falando “caramba, caracoles, cucaracha,…”, sei lá. Meti a mão entre suas coxas e senti minha boca salivar. Mostrei-lhe as ramagens das árvores sobre nós. As folhas escuras iam passando, se interpondo e contrastando com as luzes duras da iluminação da rua.
— Infelizmente, essas são as luas dos paulistanos — disse-lhe —Mas, nem por isso somos menos românticos” (puta papo-bravo).
— Uhffi! Agora, depois dessa corrida, fiquei ainda mais excitada” — ela suspirou, com vozinha fina e a tal cecéia.
E assim foi.
Sentado na borda da cama, peguei o isqueiro e pus os óculos. Estava escrito um nome e telefone: Tania 3082.9… Caramba! Nunca comi uma japa, pensei, e vai ser essa mesma.
Acordei a mexicana com uma bela de uma dentada na bunda, pra ela nunca mais se esquecer de mim.
Sou um filhadaputa de um cabotino, mesmo.
Mas tenho me dado bem. Ou não?
ooooo
(Continua outro dia)