Caro leitor ou leitora,
Mais uma auspiciosa estréia no AE: Sérgio Berezovsky. Muitos de vocês certamente sabem quem é, já que ele foi redator-chefe da revista Quatro Rodas de 2000 a 2006, sob a direção de Alfredo Ogawa, e diretor de redação daí a 2013. Mas não custa informar que o “Berê”, como também é carinhosamente conhecido, é fotógrafo, editor de fotografia e jornalista. Depois de atuar em nas revistas Veja, Placar, Exame e nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, ocupou os mencionados cargos na Quatro Rodas. Quando ele deixou a revista, logo o convidamos para se juntar ao nosso time, o que finalmente acontece agora, na qualidade de editor, que só poderá agregar experiência e conhecimento ao AE. E com um prazer adicional: assim como eu já havia trabalhado com o Wagner Gonzalez na Embraer e com o Josias Silveira, na revista Oficina Mecânica, o “Berê” é o terceiro membro da equipe do AE com quem tive bons momentos profissionais, em Quatro Rodas de 2003 a 2008.
Seja bem-vindo, Berezovsky!
Bob Sharp – editor-chefe
_________________________________________________________
PRAZER COMPARTILHADO
Se você é do tipo que acha que dirigir um carro sem ar-condicionado, direção assistida, navegação eletrônica e com isolamento termo-acústico precário pode ser um programaço, acho que estamos em sintonia. Penso que quando se tem nas mãos a direção de um carro antigo, daqueles que esbanjam caráter, essas ausências apenas acrescentam emoção e prazer ao ato de dirigir. É a oportunidade de se estabelecer uma ligação direta com o carro, sem intermediários nem filtros. É a chance de reconhecer a personalidade da marca, as características de construção e, o que mais me agrada, o temperamento da máquina. É o momento em que você se deixa seduzir pelas imperfeições, permitindo-se viajar através do tempo.
Admito que tenho uma parceira preferida para entrar nessa outra dimensão. É uma Vemaguet 1966, de cor café com leite, a versão perua do DKW-Vemag, este conhecido como Belcar. Adoro acelerar e ouvir o som do motor dois-tempos. O aroma do óleo misturado à gasolina acelera o processo de catarse.
Nessa hora deixo de lado o mundo tecnicista em que os vãos das partes da carroceria despertam discussões milimétricas e passo a admirar o asfalto que aparece entre a porta e a coluna, por leniência da veterana borracha de vedação. Outros comandos também podem exibir traços de liberalidade excessiva. A alavanca de câmbio — quatro marchas e ré — na coluna de direção, por exemplo. É preciso um relacionamento longo para se adaptar à sua atuação por vezes errática. E é essa imprecisão que faz parte da brincadeira. E sem falar no sistema de direção, que com o passar dos anos conquistou o direito de ficar mais preguiçoso e, por que não dizer, ficar mais folgado. Defeitos? Não, de modo algum. São sinais de asfalto rodado, de vida vivida.
A viagem no tempo começa já no manuseio das chaves já desgastadas. Os anos se incumbiram de aplainar o relevo serrilhado dos segredos, enquanto o sumiço do níquel original revela o dourado do latão. Impossível deixar de imaginar por quantas mãos essas elas já passaram, por quanto bolsos andaram, quantas festas freqüentaram…
Basta dar um quarto de volta na fechadura para fazer o pino de segurança saltar, reverberando o som na lata. Aí é pressionar o botão incorporado na maçaneta para a porta se abrir, dando acesso ao verdadeiro sofá estofado com pequenos gomos, com espaço para três lugares. Uma vez instalado, já em contato com o volante de aro fino, é a hora do momento mágico: puxar o afogador e dar o comando para que o motor de partida desperte.
Preguiçoso e indeciso em um primeiro momento, a cantoria que emana dos três cilindros revela animação crescente. O fato de motor e câmbio terem um relacionamento delicado (no fundo é apenas uma questão de administração de escassez de recursos, como se verá a seguir), faz com que a mediação feita pelo motorista de eventuais conflitos seja uma atividade valorizada. Afinal, estamos falando de apenas 1.000 cm³ de cilindrada e de um carro de uma tonelada de peso, com capacidade para levar seis passageiros mais carga — um milagre da arquitetura interna, mas este é um item que merece um capítulo à parte. Como torque dos motores dois tempos dois tempos só se apresenta em rotações mais altas, manter o giro do motor pode ser questão de vida ou morte nas subidas, daí a importância de mudar as marchas no momento e no giro certo. Se você acertar, o carro agradece e segue com o nariz erguido.
Se, no entanto, você não fizer a coisa certa, ele simplesmente refugará e o obrigará a recorrer a uma humilhante primeira marcha. Podia ser pior: até o início dos anos 60, o chamado “câmbio seco”, em que a primeira marcha não era sincronizada, exigia uma parada para que o engate não provocasse uma sonora “arranhada” caso você não conhecesse a técnica da dupla-embreagem… Antigamente, esses detalhes separavam o verdadeiro motorista do barbeiro de fim de semana. Dar tranco nas trocas de marcha era intolerável.
Parte da magia de dirigir um antigo hoje está em assumir funções há muito abandonadas pelos motoristas. Controlar a temperatura do motor é uma delas. Nos tempos em que a relação peso-potência já foi muito mais desfavorável e os motores eram severamente mais exigidos nas subidas de serra, por exemplo, observar o termômetro do painel podia ser a diferença entre chegar ao destino dirigindo ou rebocado por um guincho, depois de o motor haver superaquecido. Ou melhor, “fervido”.
No caso dos DKW, também é bom afinar o ouvido para que, mesmo com a cabine ressonando em alto e bom som as rotações elevadas, seja possível perceber os sinais do motor grilando (geralmente podem ser decifrados como um aviso de “vou travar se você não aliviar o pé…”. Ou ainda desenvolver a sensibilidade no pé direito para perceber uma atitude, digamos, “mais borrachuda” do pedal de freio. Pode ser um sinal de cansaço e sintoma de estresse, um aviso de que o sistema pode resolver entrar em greve por melhores condições de trabalho. Essa demanda de atenção refina o ato de dirigir e traz emoção a qualquer volta no quarteirão. Pode ser intenso, mas não tenso.
Quando pequeno, era comum ouvir meu pai dizendo: vamos dar uma volta de carro? Mais do que o deslocamento de um lugar a outro, andar de carro era um programa por si só. Era um tempo em que não havia a sensação de perigo a cada esquina e que o bagageiro contíguo ao banco traseiro parecia ser o lugar mais seguro do universo para crianças. Uma volta na Vemaguet (ela é o meu quarto DKW) traz um pouco dessa sensação de volta. É verdade que nem todo mundo pensa assim. Tem gente que torce o nariz quando vê um rolo de fumaça azulada, típica dos motores dois-tempos, saindo do escapamento a cada acelerada. Mas a compensação é feita através da quantidade de sorrisos que a peruinha provoca a cada esquina. Não deixa também de ser uma forma de compartilhamento.
SB