Escrevi este texto há alguns anos, quando tive o que espero ter sido o último dos meus infartos. Publiquei, então na brava revista Oficina Mecânica, do nosso colega Josias Silveira. Na época, a boa circulação da revista levou a história a Uberaba, MG, onde um bombeiro a utilizou como base para um trabalho de conclusão de curso (TCC), sobre o mesmo tema — a inadequação das ambulâncias nacionais ao trabalho. Encontrei o Josias nestes dias e ele me recomendou republicar a história, como o faço agora. (R. Nasser*)
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DE AMBULÂNCIAS QUE AMEAÇAM OS PACIENTES
Outro dia andei em ambulância. Sem a usual estamina pós-adolescente mesmo passada a quinta década, toda vez que dirijo algo novo. O cinto de segurança não era de três pontos – ou de quatro, como nos verdadeiros esportivos. Ia atado por quatro faixas transversais sobre estreita maca, e à vida por um vaso de soro, um Isordil sublingual, tubo de oxigênio, monitor cardíaco. Médica e enfermeiro com olhares entre o susto e a dissimulação, impacientes para a rápida passagem pelos caminhos brasilienses, livres na ensolarada e iniciante manhã de fim de inverno, facilitassem a rápida chegada à UTI pré-avisada sobre infarto em andamento em paciente que, tão interessado em transportes, porta quatro pontes.
Negócio
Allah, clemente e misericordioso, e eu temos um pacto. Sutilezas orientais, negociações fenícias. Da minha parte mantenho bom caráter, boas ações, a ética, a ecologia, e a incapacidade de pactuar com mal-feito e gente sem qualidade. E obedeço — mais ou menos — ao Dr. Carlão Freitas, cardiologista, e o professor Nuno Cobra, condicionador físico, responsáveis por minha cansativa disposição. Allah, superior, quando extrapolo, provoca a genética deficiente e desastres químicos. Mira no coração. Pela terceira vez.
É educador amável, manifestando-se apenas quando a agitação já cansou todos em volta, incluindo o cachorro. O acordo continua válido: só quero a vida enquanto puder desfrutá-la, pensar, provocar, aprender. Depois, não sei para o que servirá e aí, ele lerá a cláusula final do nosso contrato, com data aproximada e método: 2031, com um Jaguar novo, mais recente aquisição, fazendo curva mais rápida que o carro, sozinho na estrada, exceto uma sumaúma, a mais portentosa das árvores brasileiras, chamada a colocar o ponto final. Mais recentemente temo-nos perguntado se a marca durará tanto quanto eu…
Então
Deixando de lado as digressões sobre a vida, nos poucos quilômetros como passageiro, acompanhei de corpo inteiro a incompatibilidade entre o veículo e o serviço no qual é aplicado. Não foi a experiência mais recente. Tão logo dito recuperado, agora portando uma molinha tensionando para fora a artéria bi-entupida, como se fora aquela malha metálica antecedendo aos catalisadores automobilísticos.
Da receita de sobrevivência constava o vinho tinto. E aí, cometi a irresponsabilidade de comemorar algumas coisas que não mais me lembro, com outro de nosso colega deste balcão de AUTOentusiastas, o Boris Feldman. Três noites seguidas de grandes libações levaram a um pique de pressão num interior paulista, devidamente atendido por outra ambulância. A distância entre a capital federal e a pequena cidade do interior manifestou-se exatamente onde não deveria ter-se evidenciado: a maca se desmontou, e o médico era boliviano…
Nada disto
Das experiências restaram dúvida distante e certeza quase certa: na fórmula construtiva da ambulância brasileira, o projetista fez sem provar. Como se fosse possível, num exemplo comum, um chef-de-cuisine criasse a receita e a servisse sem testá-la. Sem conferir se os ingredientes se entre combinam, se o produto final satisfaz aos olhos, o aroma ao nariz, o gosto às papilas, e a mistura, ao aparelho digestivo e ao funcionamento orgânico. Mantido o critério do projetista da ambulância, se o prato tiver a aparência de um urubu atropelado, se tiver cheiro de fim, e não de início, se fizer mal ao cliente, ele pouco se importa.
A ambulância brasileira (foto de abertura) parece criada por burocrata em fórmula simples: tome-se um caminhãozinho ou um picape, colocam-se-lhe uma cobertura e, no vácuo criado, aplicam maca, cabides e prateleiras. Parece ter sido cometida para ser atrativa por preço, para vencer concorrências de governos, prefeituras e empresas e, apenas adicionalmente, levar carga que mal respira, não se mexe, nem reclama.
A concepção não é a de veículo para levar um passageiro especial, com saúde em risco, ou com ferimentos e sofrimentos, em transporte integrado ao esforço hospitais, médicos e enfermeiros para amenizar sofrimentos alheios, restaurar saúde, salvar vidas. Mas é apenas um carregador de passageiro solitário viajando deitado. É uma deficiência no sistema de salvação, porque não garante entregar o paciente em bom estado, em higidez.
Com tal filosofia criativa, a configuração mecânica não tem compromisso com a utilização. Por economia operacional emprega-se motor diesel, pequeno. Mas para cumprir sua missão, o pequeno engenho vibra ao fazer força para deslocar a massa de metal, plástico e vidros moldando a ambulância. O câmbio, manual, não permite maciez na troca das marchas, e por isto, trancos são transmitidos ao corpo do transportado. Absolutamente inadequada é a suspensão traseira, por feixes de molas semi-elípticas. Foi projetada para carga seca, refrigerantes, bujões de gás, material de construção, eventualmente passageiros sentados. Enfim, na maioria das vezes coisas rígidas e pesadas, ou no caso de passageiros, devidamente sentados e com mobilidade. Como ambulância, mantém-se o dimensionamento para o serviço jogo duro, e pouca carga transforma o corpo do transportado em amortecedor auxiliar, forçando-o a participar e sentir na pele, na carne, nos músculos, nos terminais nervosos, a rugosidade e buracos das ruas.
Há exemplos antológicos. Há anos utilizaram-se em Brasília ambulâncias baseadas em camionhõeszinhos Ford F-350. Feitos para carga, mas transformados em ambulância, com rodado duplo com pneus diagonais na traseira, saltavam e faziam pular seus transportados. Em outro oposto, talvez com a mesma distância temporal, a Fiat criou ambulância para a polícia rodoviária das Minas Gerais. Era uma adequação sobre a pequena station wagon Panorama, um Fiat 147 esticado. Moral da história, sua altura não permitia a administração de soro! E seu comprimento limitava o transporte em maca apenas a passageiros muito pequenos, inconscientes, com as pernas quebradas, ou mortos … A Simca, fábrica de carros luxuosos, em 1963 apresentou um protótipo, como a única ambulância não derivada de picape. Seria ótima e confortável, mas a literatura informa ter ficado em única unidade – sem registro de sobrevivência.
Em raciocínio amplo, nossos veículos são inadequados porque seus projetos não nascem com fim específico, mas ao contrário, vão do que já existe para aproximar-se de uma nova utilização. Isto ocorre pela ausência de regulamentação de especificações de uso.
Como fazer
As coisas poderiam ser melhores, dependendo apenas do interesse e da caneta oficial. Absolutamente simples: baixem-se especificações dos veículos em função do serviço a ser prestado. De ambulância a táxis e carros de polícia a inadequação é comum e a solução a mesma.
Basta apenas aos órgãos de trânsito interromperem seu estafante trabalho de arrecadar com multas em barreiras eletrônicas, e se dediquem à sua missão oficial.
No caso das ambulâncias é simples especificar altura livre para movimentação interna, capacidade elétrica para alimentar equipamentos, padronizar e harmonizar sua maca com a dos hospitais; altura para administração de soro ou sangue. Quanto à mecânica, o conceito construtivo deve ter como determinante a prestação do serviço. Assim, ambulância é como carro de bombeiros — consumo é dado irrelevante, e o mandatório é a aceleração e o poder chegar rápido. Assim, nada de motorzinho, mas liderando a estrutura, motor forte acoplado a câmbio automático, capazes de acelerar e chegar rápido ao destino, sem trancos.
Outro ponto fundamental é a suspensão, a ser projetada para dar conforto e estabilidade. O sistema com bolsões de ar é de ridícula facilidade para ser colocada, resistente e confortável.
Se o governo federal quiser fazer, é fácil. Basta regulamentar especificações a ser cumpridas pelos veículos. Um mínimo padrão – capacidade de frenagem, de iluminação, de filtragem de barulho, temperatura, vibrações, estabilidade, força a ser aplicada ao volante. E especificamente, regular exigências para o uso destinado: ambulância, carro de polícia, de bombeiros, do serviço público, táxis e carros destinados unicamente a rodar nos centros das cidades. Nada disto é exigível no Brasil onde o automóvel é considerado produto divino. E nesta relação a parte relativa ao governo é proteger o consumidor, estabelecer um mínimo de adequação e de respeito.
Fazer é fácil. Basta mandar. Se os fabricantes fugirem da empreita, basta abrir a importação sem gravames, e a sociedade concordará com a renúncia fiscal em troca de melhores resultados, mais conforto, segurança, menos poluição.
RN