Muitos pensam que a embreagem serve para mudar as marchas, mas não é bem isso. A embreagem é um componente tão importante que sem ela o automóvel com motor de combustão interna não teria existido.
A finalidade principal da embreagem é possibilitar unir algo funcionando com algo parado e isso tem necessariamente de ser feito de maneira progressiva. O “algo funcionando” é obviamente o motor e o “algo parado” é a transmissão às rodas.
Como função secundária, a embreagem é usada nas trocas de marcha, de modo a aliviar a carga sobre as engrenagens e luvas de engate. Nos carros de câmbio sincronizado — todos hoje — é no momento em que o motor está desconectado do câmbio que os sincronizadores podem exercer seu papel
Embreagens são usadas também em câmbios automáticos, como no Hondamatic, mas com função de conexão engrenagem-árvore apenas, tipo tudo ou nada. Não são para ligação progressiva, suave.
Os carros elétricos não têm embreagem, pois não precisam. Num elétrico inexiste a condição “algo funcionando com algo parado”. Quando o carro para, o motor elétrico para também
É justamente a transição de carro parado para carro em movimento que constitui talvez o maior temor de quem vai aprender ou está aprendendo a dirigir. Repare — ou lembre-se dos seus primeiros quilômetros ao volante — como as pessoas de, um modo geral, demoram a dominar a embreagem. Há até quem seja habilitado e não saiba operar a embreagem corretamente.
Arrancar em subidas, então, para o aprendiz é simplesmente apavorante. Essa, inclusive, era a grande dificuldade de muitos nos carros em que a primeira marcha não era sincronizada, pois não sabiam engrená-la com o carro andando e se houvesse uma subida à frente que exigisse primeira, teriamde parar, e aí a coisa realmente complicava.
Uma das figuras que mais gosto de usar para explicar como usar a embreagem é uma figura da minha infância: pegar o bonde andando. Se a pessoa quiser fazer isso, não pode simplesmente ficar no ponto e quando o bonde passar, subir nele. O tranco será grande e as consequências poderão não ser as melhores.
Para pegar o bonde andando é preciso correr o mais possível à velocidade do veículo para depois subir nele, pelo estribo. Essa fase da corrida corresponde à patinagem de embreagem, o início do movimento do veículo.
Patinar embreagem significa a transição entre pedal completamente apertado e pedal completamente solto. O carro anda nessa fase, mas a rotação do motor não corresponde à rotação das rodas motrizes, é maior. Chegará então um momento em que a rotação da roda é tal que corresponderá à rotação do motor, o momento em que o pedal poderá ser completamente liberado.
Esse processo é rápido, leva de 1 a 2 segundos. Levar mais ou menos tempo depende em grande parte da redução total de primeira marcha e, em pequena parte, das características do motor, embora os dois fatores sejam intimamente relacionados.
Isso pode ser facilmente demonstrado arrancando em primeira e depois em segunda. Note que o processo no segundo caso leva bem mais tempo do que no primeiro. Isso porque o carro precisa ganhar mais velocidade até que a rotação do motor coincida. E nesse ganhar velocidade a embreagem fica em patinagem.
Outra maneira de sentir bem a diferença é arrancar com um veículo de tração 4×4 que tenha reduzida. Arranca-se em Normal (High) e depois em Reduzida (Low). Neste segundo caso o tempo do processo chega a levar bem menos que um segundo, talvez menos de meio segundo. Por quê? Porque as rodas motrizes logo atingem a rotação que corresponde à do motor, isso devido à grande redução da transmissão.
A embreagem
Conceitualmente falando a embreagem é um mecanismo bastante simples. Ela utiliza um componente do motor que não foi bolado para fazer parte de embreagem mas faz: o volante. Essa peça, que é rotativa e fixada ao virabrequim, tem a missão de acumular energia cinética proveniente do trabalho do motor e devolvê-la quando é preciso, que é a parte passiva do seu ciclo de funcionamento.
Para se ter ideia disso, o motor dos nossos carros é de ciclo Otto, de quatro tempos, em que só um, o da combustão e expansão dos gases queimados, é ativo, que produz trabalho. Os outros — admissão, compressão e escapamento — dependem do movimento do volante.
Claro que não é tão simples, pois há fatores que determinam a massa do volante, como rotação do motor (quanto maior, menor a necessidade de massa) e número de cilindros (quanto mais, menor a massa também). Mas para entendermos a embreagem é suficiente o que foi dito.
O coração da embreagem é uma peça chamada platô, que vai aparafusada no volante. Entre o platô e o volante está o disco, que possui material de atrito nas duas faces. O platô consiste basicamente de uma placa de pressão (que pressiona o disco) e uma mola tipo diafragma, muito conhecida por “chapéu chinês” por se parecer realmente com um.
Esse tipo de mola começou a ser usada nos platôs no final dos anos 1950 e substituiu com enorme vantagem as várias molas helicoidais (seis ou nove) dispostas em torno da placa de pressão, que exigiam alavancas para serem comprimidas e assim afastar a placa de pressão do disco. Além da pressão uniforme proporcionada, a mola tipo diafragma, ou mola diafragmática, tem resistência não linear, em que a partir de determinado ponto a resistência e, consequentemente, a força no pedal diminuem.
Havia, inclusive, operação de regulagem das alavancas das molas, algo trabalhosa e que exigia dispositivo de montagem do platô e micrômetro comparador. Com a mola diafragmática essa operação acabou.
O disco de embreagem gira solidariamente com a árvore-piloto do câmbio, mas pode deslizar nela no sentido axial porque seu cubo e a árvore-piloto são estriados.
Veja no esquema abaixo. Quando o pedal está todo apertado, a própria mola afasta a placa de pressão (em amarelo) do disco (em marrom) e o deixa solto, de modo que o motor fica separado do câmbio. A embreagem está aberta, ou desacoplada. Quando o pedal de embreagem não está apertado, a mola diafragmática pressiona a placa de pressão e esta, por sua vez, pressiona o disco contra o volante (em azul) numa parte deste prevista para esse fim. Tecnicamente se diz que a embreagem está fechada, ou acoplada.
Esse movimento de vai e vem da placa de pressão é mínimo, coisa de 1 a 2 milímetros, apenas o suficiente para pressionar ou não o disco. Claro que a julgar pelo quanto o pedal se movimenta em seu curso parece bem mais. Isso é porque a relação de movimento entre pedal e placa de pressão é calculada de tal forma que dois objetivos sejam atingidos. Um, a menor força possível para se acionar o pedal. Outro, dar progressividade adequada e confortável no momento de acoplar a embreagem, como ao arrancar da imobilidade.
Há uma peça que aciona diretamente a mola diafragmática, que é o rolamento de acionamento (vermelho, no desenho acima, thow-out bearing). É basicamente um rolamento como outro qualquer, só que com uma face desenhada para encostar na mola diafragmática. O rolamento é movimentado por uma peça chamada garfo de embreagem, por sua vez movimentado por cabo ou sistema hidráulico a partir do pedal.
O disco de embreagem ainda possui um sistema de molas no cubo destinado a absorver grandes esforços torcionais (veja na foto do disco de embreagem mais acima as seis molas em vermelho)
Manutenção
De uma maneira geral, o que se desgasta na embreagem é o material de atrito do disco. Até os anos 1970 trocava-se o material, que era rebitado (ver Fig. 9, esquerda), que era vendido normalmente nas concessionárias e lojas de peças. Hoje é mais prático trocar o disco, que não é tão caro, mas ainda deve existir revestimento para reposição.
Até coisa de 25 ou 30 anos era preciso ajustar a folga do pedal, pois com o desgaste natural do disco a folga vai diminuindo, e se não for ajustada, a embreagem “enforca”, se autoaciona, e daí para sua destruição total e impedir que o carro ande, é um passo. Hoje o ajuste é automático ou o pedal funciona com folga zero, sem batente de repouso, impedindo o enforcamento. Apenas o pedal vai subindo cada vez mais em relação ao do freio, pela falta desse batente. Essas solução foi vista pela primeira vez no Fiat Spazio, em 1983.
Hoje é muito comum a troca do conjunto de embreagem – platô, disco e rolamento – muitas vezes desnecessária, em que bastaria substituir o disco. Ou trocar um platô só porque a embreagem endureceu, quando a causa é apenas acúmulo excessivo de pó do revestimento do disco por má qualidade deste. Basta lavar o platô e reinstalar.
O rolamento de embreagem, a menos que esteja ruidoso, notado ao apertar o pedal, não precisa ser trocado.
Defeitos na embreagem
É raro hoje, especialmente em razão da precisão do platô com mola “chapéu chinês”, mas discos de embreagem podem empenar, causando trepidação ao arrancar, claramente sentida no carro. Nesse caso é inevitável trocar o disco. A maior causa de empeno é aquecimento excessivo por submeter a embreagem a esforço para o qual ele não foi projetada, como “segurar” o carro numa subida com o motor por meio de patinagem da embreagem.
Se numa reduzida malfeita, aquela para uma marcha que resultaria em rotação excessiva do motor, mesmo que não se tire o pé do pedal de embreagem o disco subirá demais de rotação por girar solidário com o câmbio, com o que o material de atrito do disco pode se desprender ou quebrar por centrifugação.
Poderá haver falta de curso da mola diafragmática e de placa de pressão do platô por problema de acionamento, como cabo de embreagem desfiando ou falha do comando hidráulico, resultando em falta de desacoplamento parcial ou total da embreagem. Nesse caso será difícil ou impossível engrenar uma marcha estando o veículo parado. Em geral o problema começa com a primeira ficando dura de engatar e a ré, geralmente não sincronizada, começa a arranhar ao tentar ser engatada.
Se o disco estiver muito gasto ou se a mola diafragmática ficar fraca por ter-se aquecido além do normal e destemperado, a embreagem não conseguirá transmitir torque para o câmbio e patinará, com se diz. O processo se acentua rapidamente e chegará um ponto em que o carro não andará mais.
Para a embreagem durar mais
Embreagens não têm vida útil definida. Podem durar mais de 200.000 km ou acabar em 5.000 km. Depende apenas de como é usada. O grande inimigo da embreagem é o calor. Como calor só é produzido quando a embreagem está patinando, quanto menos ela for feita patinar, melhor. Tenha isso sempre em mente. São inúmeras as situações em que a embreagem patina desnecessariamente:
– na aprendizagem de dirigir ou falta de habilidade para utilizá-la corretamente
– segurar o carro na subida por meio do motor
– arrancar em segunda marcha
– com carro quase parando, patinar a embreagem só para não passar a primeira
– andar com motor falhando e compensar falta de potência patinando embreagem ao arrancar
– arrancar quando rebocando trêiler ou carreta e o motor não tem potência adequada
– trafegar com excesso de peso
– reduzir e não dar aceleração interina, deixando a embreagem patinar até o total acoplamento
– impor aceleração forte sem aliviar acelerador ao trocar marcha
– arrancar constantemente em rampas fortes, como as de garagem, de frente ou de ré
Calor na embreagem é tão crítico que em alguns câmbios robotizados, cuja embreagem é automática e o motorista pode facilmente induzido a usar o motor para segurar o carro numa subida pensando estar dirigindo um carro de câmbio automático convencional, aparece no painel mensagem informando superaquecimento de embreagem.
Ao contrário do que se pensa, não é prejudicial para a embreagem aguardar o sinal verde com primeira engatada. O rolamento de acionamento foi projetado para essa condição também. Esse cuidado só devia ser observado quando, em vez de por rolamento, o acionamento da embreagem era feito por um carvão, o chamado colar de embreagem, que se desgastava rapidamente se embreagem fosse usada dessa maneira.
Aliás, é bom saber que quando em marcha-lenta, câmbio em ponto-morto e embreagem acoplada, nos câmbios que fazem conjunto com diferencial, os chamados transeixos da maioria dos carros de tração dianteira hoje, os rolamentos da árvore primária só recebem óleo quando as engrenagens da árvore secundária, que ficam parcialmente no óleo, giram, ou seja, quando o carro anda.
Portanto, quanto menos o carro ficar parado com motor ligado e embreagem acoplada, melhor. Isso vale também para o aquecer motor antes de sair, que deve ser evitado. Com primeira engrenada e embreagem aberta a árvore primária fica parada.
Parodiando antigo ditado relativo ao estômago, cuide bem da sua embreagem e sua embreagem cuidará bem do seu bolso.
BS