Muitos anos atrás meu tio Horacio (aquele que teve vários Citroën 3 CV) foi vítima de furto. Chegando no seu carro, cadê o toca-fitas? Nada dele, apenas o painel e o carro arrombados. Até aí, infelizmente, nada de muito original. Acontecia com alguma frequência em Buenos Aires naquela época. E uso o pretérito imperfeito apenas porque hoje praticamente não se veem mais toca-fitas, não porque não se vejam mais furtos, infelizmente.
Eu era pequena, mas me lembro que no domingo no tradicional almoço na casa da minha avó, com toda a família reunida, ele comentou o fato. Mas mais indignado do que com a perda ele estava com o que havia ouvido durante a semana no trabalho. Alguém havia sugerido que ele fosse num desmanche (clandestino, como quase todos naquela época) e comprasse um toca-fitas. O sujeito ainda comentou que era muitíssimo mais barato do que os originais, vendidos no comércio especializado e, especialmente, nas “caríssimas” concessionárias.
Quem conhece meu tio Horacio sabe como ele pode ser firme em suas convicções. E justiça seja feita, é coerente, com aquela lógica de quem estudou e adora Ciências Exatas. Não teve dúvidas, passou um sermão no colega. O principal argumento dele é que ao fazer isso estaria fomentando o comércio que alavanca os furtos e roubos. No raciocínio cristalino de químico dele, se não houver demanda não haverá mercado para isso e os furtos diminuiriam e, teoricamente, poderiam até acabar. Comprar uma peça num desmanche, que certamente era proveniente de furto a outro, ou quiçá ao próprio veículo, não era levar vantagem. Ao contrário, era pagar menos por algo que poderia voltar a ser roubado justamente para alimentar a demanda que existia porque havia outras pessoas que compravam esses acessórios para pagar menos.
Era na Argentina, mas me lembra da ótima campanha publicitária aqui no Brasil do biscoito Tostines. Vende mais porque está sempre fresquinho ou está sempre fresquinho porque vende mais? Ao tentarmos economizar comprando uma peça roubada — sim, porque naquela época não havia a menor dúvida quanto à origem delas — fomentamos o mercado do crime. Isso sem falar que dessa forma ainda pagaremos mais depois no seguro, na franquia, e por aí vai.
Adoro meu tio Horacio por vários motivos, mas esse é mais um. E, como várias outras coisas ao longo da minha vida, essas pequenas coisas ajudaram a formar meu caráter. Sempre me recusei a fazer esse tipo de coisa. Jamais comprei peça em desmanche e posso listar diversos motivos para isso. Procedência incerta, para dizer o mínimo, mas acaba sendo uma pseudoeconomia porca, de curto prazo, que se volta contra todos nós. E jamais faria algo mesmo que eu pessoalmente levasse algum tipo de vantagem se isso fosse prejudicar outros.
O problema dos desmanches é antigo e já há vários formas de combatê-los além de atitudes individuais como a do meu tio Horacio. Mas, como diz o Bob Sharp, dá um trabalho!
Em outubro de 2015 o governo do Estado de São Paulo lançou um programa que dá acesso ao interessado à procedência da peça a partir de etiquetas fixadas em cada uma delas com número de série vinculado a um código QR (veja foto de abertura). Assim, o interessado tem a garantia de comprar apenas peças legais — bem, logo eu que sou meio paranoica com essas coisas e gostaria de ter certeza de que ninguém colou uma etiqueta verdadeira a uma peça roubada, pensei em mil coisas… mas o programa tem ainda um perfil para as fornecedoras de etiquetas. Assim, elas podem informar a numeração de série das cartelas vendidas a cada empresa registrada. Talvez não seja totalmente à prova de fraudes, mas é um empecilho significativo.
Outra vantagem do sistema é que ele permite que sejam feitas denúncias de suspeitas de irregularidades pelo mesmo sistema e, claro, regulamenta e regulariza a atuação dos estabelecimentos que trabalham corretamente.
A Lei do Desmanche foi sancionada em São Paulo em 2 de janeiro de 2014 e entrou em vigor em 1º de julho do mesmo ano e acabou servindo de referência para a Lei Federal 12.977/2015 que entrou em vigor em 20 de maio de 2015. No primeiro ano de vigência foram fechados 700 estabelecimentos ilegais. O governo não tem números de em quanto foram diminuídos os números de furtos apenas graças a este programa, mas é lícito supor que se há mais dificuldade em comprar peças roubadas deve ter diminuído o mercado para elas. Até o fim de setembro de 2015, 1.546 empresas do setor de desmanche haviam solicitado o credenciamento no Departamento de Trânsito e 1.092 estavam autorizadas a funcionar. O site do Detran SP tem a lista dos estabelecimentos cadastrados em tempo real. Certamente não é a solução, mas acredito que algo assim aliado principalmente à atitude individual de não fomentar o mercado clandestino é que farão a diferença.
Mudando de assunto: recentemente estive em Iperó, interior de São Paulo, fazendo trilha no Morro Ipanema. É uma reserva da qual gosto muito e onde já estive outras vezes. Faz-se uma parte de carro e depois há várias opções a pé, de diversas durações. Mas fui surpreendida com umas estranhas lombadas na parte, digamos, automobilística. O fato é que como é um caminho sinuoso de cascalho e estamos num país tropical onde chove bastante, a água erode (adoro essas conjugações irregulares) a lombada por um dos lados. Por “culpa”da gravidade, é claro, apenas o mais baixo. Resultado: você vem dirigindo e só vê a lombada, mas do outro lado ela esta corroída, troncha. Um dos carros à minha frente entalou e ficou num ângulo engraçado, vertical. Um furdúncio para tirá-lo de lá. E não são poucas, apesar de utilidade questionável. É impossível alguém desenvolver velocidade nessa trilha — ou seja, as lombadas, como na maioria dos casos, são totalmente desnecessárias.
NG