Vivemos no Brasil um paradoxo daqueles que bem poderiam estar nas páginas de um livro de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges ou de algum outro autor do realismo fantástico. Ou até mesmo no teatro do absurdo de Eugene Ionesco. Cada vez nos movemos menos. E não me refiro aquí às campanhas de Michelle Obama para que os norte-americanos obesos chacoalhem o esqueleto, não. Refiro-me a sair de casa, do escritório, de qualquer lugar. Estamos presos e não somente pela falta de segurança, mas pela falta de mobilidade.
Lembrei do conto “Casa Tomada”, de Cortázar, no qual uma casa vai sendo tomada aos poucos e seus moradores vão deixando de frequentar diversos cômodos. Ficam cada vez confinados a menos espaços. Bom, a história é muito melhor do que a minha simplificação faz parecer, mas a ideia que me acomete quando vejo as ruas do Brasil é bem essa. Cada vez estamos mais limitados em nossas movimentações. A foto de abertura mostra bem isso, cada vez nos mexemos menos.
As autoridades despejam números sobre o gigantismo da frota de veículos no País. É parcialmente verdade. Claro que uma nação com mais de 200 milhões de habitantes, 8 mil quilômetros de costa, 8,5 milhões de quilômetros quadrados e por aí vão outros números gigantescos não poderia ter uma frota de 84 veículos. Nem 84 mil. Mas até os parafusos dos carros abandonados nos leitos dos rios sabem que não podem ser aqueles que se divulgam.
De acordo com o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) teríamos um total de 90.947.985 veículos no Brasil em janeiro deste ano. Por veículos entendam-se aqueles que devem ser emplacados no Departamento, ou seja, barcos estão fora, por exemplo. Desse total, 49.938.038 seriam de automóveis, 2.649.209 caminhões, 20.278.869 motocicletas, 591.659 ônibus. Não vou despejar todos os números aqui mas entre as curiosidades encontrei que há 45 bondes. Sim, bondes. Tem ainda reboques, triciclos, side-cars e uma infinidade de outros veículos. Mas vamos ficar apenas nos mais comuns.
Se o número do Denatran estivesse correto um em cada dois brasileiros (grosso modo e incluindo bebês de colo, deficientes visuais e pessoas imobilizadas que não poderiam dirigir, entre outras) teria algum tipo de veículo motorizado – sim, porque pedalinho, triciclo infantil, entre outros, não precisam de emplacamento e justamente por isso não entram nesses índices. Todos nós conhecemos alguém que tem, por exemplo, carro e moto, mas é fácil imaginar que metade da população ter algum tipo de veículo é pouco provável – especialmente levando-se em consideração a pouca quantidade de veículos que há no Norte e Nordeste, ainda que por lá haja muitas motos. Se ficássemos apenas nos automóveis, 1 em cada 4 moradores teria um. Fora em alguma capital como São Paulo, dificílimo acreditar que estejamos sequer perto disso, pois isso inclui os pouco mais de 10.000 habitantes de Porto Walter, no Acre, a única cidade onde não há registrado nenhum veículo. Faltou explicar que a ela só se tem acesso por barco e não tem nenhuma rua asfaltada.
E ainda assim, os cidadãos que já teriam ¼ de automóvel teriam de ter outro tipo de veículo também para que chegássemos nos quase 100.000.000 que o Denatran diz que há. Se for assim, alguém tem minha cota de motos, ônibus caminhão e uma parcela ínfima daqueles 45 bondes que me correspondem por ser uma das 200.000.000 de pessoas deste país.
Sim, porque é esse o cálculo que temos que fazer. Como dizia o Zézo, um amigo meu, quando dava aulas no cursinho: se num vestibular numa determinada faculdade há 50 vagas e 5.000 candidatos (ou seja, 100 candidatos por vaga) não é que você tem que ser melhor que 99 outros para conseguir entrar. Você tem que ser melhor do que 4.950 para entrar em último lugar.
Mas voltemos aos carros. Por mais conta que faça não tem como esse número estar correto. Além de consultar meu travesseiro e o dr. Bom Senso, pesquisei bastante e muitos estudiosos do assunto dizem que o problema é que como o sistema não dá baixa nos veículos que não rodam mais, os números são inflacionados. E a cada vez que vemos as imagens dos rios e das represas secos fica evidente que as carcaças de veículos que vemos lá ainda continuam nos índices do Denatran. Ou vocês acham que se alguém é capaz de largar um carro numa represa vai se preocupar em dar baixa na documentação dele?
E então, por quê os números estariam tão inflados? Na minha modesta opinião, especialmente dois fatores: falta de estatísticas confiáveis porque não se confere se realmente os veículos emplacados circulam ou sequer se eles existem. Se eles não foram multados, não pagaram pedágio, ou se não pagaram o DPVAT e IPVA atualizado… bem, já são vários indícios de que os veículos não existem. Também interessa aos organismos de trânsito e as prefeituras que esses números sejam elevados. Assim eles podem pedir orçamentos maiores para radares, semáforos, pessoal. E até requisitar mais verbas para viadutos e pontes – se utilizam ou não esses recursos para esses fins, aí é outra história… Porque é fato que temos problemas de congestionamento em muitas cidades, mas daí a atribuir isso apenas à quantidade de veículos vai uma grande distância. O problema está muito mais vinculado à falta de planejamento e de uso correto dos recursos para trânsito.
Bom, isto posto, é claro que não temos a quantidade de veículos que dizem que temos. Mas é óbvio que temos menos transporte coletivo do que deveríamos. Partindo do mesmo pressuposto de que nem todos os veículos que estão nos índices estão de fato circulando, a história fica ainda mais tenebrosa. Como não faço a menor ideia de quantos ônibus não tiveram baixa registrada, fiz uma conta simples e extremamente otimista. Peguei o total emplacado no Denatran e dividi pelo número de habitantes (arredondei para baixo, para 200 milhões). Dá somente 0,002958 ônibus por habitante. Vamos estimar veículos padrão, que transportem 70 passageiros e ainda assim os números são baixíssimos. Se algum governante quisesse nos impor o Dia Sem Nenhum Outro Tipo de Transporte Exceto o Ônibus e nos obrigasse a nos locomover naquele dia ficaríamos um tempão na fila. Fazendo continhas novamente: 200.000.000 de pessoas dividido 70 pessoas por ônibus, resultado 591.659 ônibus, ainda que cada veículo saísse lotado seriam necessárias 5 viagens somente num sentido para mover toda a população do país uma única vez e num único sentido. Haja fila! Mas melhor pararmos por aqui. Como diz o Juvenal Jorge, melhor não dar ideias! Vai que algum alcaide inventa esse dia. Vixe! Vade retro!
Mudando de assunto: Como meus leitores já sabem boa parte dos fundamentos de direção eu aprendi com meu tio César — aquele que teve vários Torinos. Um verdadeiro ás do volante. O sujeito dirige muito, mas muito bem e é gênio em baliza (aprendeu dirigindo caminhão), além de entender e gostar muito de carros. Mas eu comecei a ter aulas com ele já lá pelos meus 10 anos. A Emilia, filha da minha prima e netinha dele, teve mais sorte. Está começando desde bem pequena e já pede “para dirigir”. Se depender do meu tio, haverá mais uma ótima motorista nas ruas de Buenos Aires.
NG