Muitas raridades acabam sendo encontradas por acaso. Esta foi também a história deste “Santo Passat”, descoberto pelo Roberto Hypólito Braga Caldeira*, leitor e amigo que compartilhou este achado comigo. Um achado que acabou revelando um raro veículo de exportação que acabou ficando por aqui mesmo — um “Made in Brazil” originalmente destinado à Nigéria, um país africano.
Tudo começou quando Mário Sérgio Chizini da Fonseca** confiou ao Roberto Hypólito uma difícil tarefa, a de ajudar a achar um veículo diferente para integrar a sua atual coleção composta de uma Variant 1970 azul Diamante e de uma Lambretta Li 1965.
A jornada começou em Guarapuava (PR), quando o paulistano Roberto Hypólito, que lá vive há algum tempo, viu em um garageiro (como são chamadas as revendas de carros por lá) um Fiat 147, ano 1983. O Mário foi avisado e lá foram os dois ver o carro. O carro era um branco Corfú, bem íntegro, a álcool, e os detalhes importantes foram fotografados. O vendedor de pronto ligou o carro e sem mesmo injetar combustível ou forçar a partida, funcionou de primeira, para espanto do Roberto Hypólito.
O painel estava em ordem, estofamento por fazer, rodas originais, tudo indo bem até o momento em que ao checar os documentos foi verificado que o carro estava registrado como Fiat Top, um modelo especial produzido até 1982. Infelizmente, o modelo em questão era na verdade um Fiat 147 C 1,3, ano 1983. Esta opção teve que ser descartada, pois a intenção era colocar placa preta nele, o que seria impossível, pois foi registrado errado ou algo aconteceu… Nunca saberemos a verdade. Alguns detalhes deste Fiat:
O que acabou condenando este carro foi o seu registro como Fiat 147/Top, coisa que ele na verdade não é. Alguns detalhes desta constatação:
A busca voltou à estaca zero e o foco mudou para São Paulo. Ele encontrou, através da internet, uma Belina I ano 1977. Como a distância para ver o carro era grande, 670 quilômetros, o cunhado do Roberto Hypólito, que tem uma oficina de funilaria no bairro de Santo Amaro, foi convocado para ver o carro. Novamente um bom candidato, documentos batendo, chassis, motor, tudo perfeito a não ser por alguns detalhes na caixa de ar e portas, além de não aguentar a viagem para Guarapuava (a ideia era levá-lo rodando). A opção foi desistir deste carro, apesar de no geral estar bem original, mas os custos, tanto de transporte e recuperação dos múltiplos detalhes de funilaria e mecânica a serem feitos, seriam muito altos.
No visual esta Belina I aparentava ser uma boa candidata (fotos site Maxicar):
Eis então que em busca em site de negócios regional, um Passat foi encontrado na cidade paranaense de Prudentópolis, vizinha a Guarapuava (60 quilômetros). Ano 1986, modelo 1987, dando a impressão inicial de que era um iraquiano pela cor, até que a lateral dele fosse vista através de fotos: duas portas! (o iraquiano era quatro-portas). Sabia-se que era ano 1986 modelo 1987 (por ser ano e modelo diferente, era produção pós-outubro/1986).
A esta altura o Roberto Hypólito falou com o Mário: “Vou ver este carro. Pelo valor (R$ 8.000,00) vale a pena pegar, se não acharmos o que é, dá para fazer uma geral nele e ganhar um dinheiro em cima revendendo-o, pois parece ser bom”.
Mário deu o OK e o Roberto Hypólito foi até Prudentópolis ver o misterioso Passat. Chegando lá ele viu que realmente não era iraquiano, pois não tinha o console maior central parecido com o do Village ou Pointer, tinha quatro furos em baixo do painel indicando que havia algum tipo de suporte de rádio. Motor, a numeração era mesmo de um MD-270 e o velocímetro ainda estava lacrado, registrando incríveis 74.000 km. O motor funcionou de modo supermacio, o carro estava íntegro, poucos detalhes a serem feitos. Havia sido repintado dos vidros para baixo.
Para comparar algumas fotos da versão iraquiana do Passat , 4 portas, motor MD-270, ar-condicionado, console central completo e encosto de cabeça traseiro:
Novamente veio a decepção, mas a resolução foi a de verificar que carro era aquele, tentando cruzar dados. O vendedor passou a numeração do motor e chassis, o cruzamento dos dados mostrou que se tratava de um motor MD-270 com câmbio de quatro marchas. Plaqueta de cor 094, vermelho Fênix. Isto acabou aguçando a curiosidade do Roberto Hypólito.
Para verificar a cor foi usada uma tabela de cores da Lazzuril, como mostrado abaixo, e a cor vermelho Fênix foi confirmada:
Outro aspecto de originalidade foram as rodas compatíveis com a documentação do carro:
Seguindo as descobertas em relação a este carro, foi verificado o número do chassi que indica o Passat “32Z*HP”:
Que modelo seria? Um Pointer disfarçado? Um Village? Não poderia ser, pois, estes modelos pelo que se sabia já eram equipados com motores AP-600 e câmbio de cinco marchas. Já a análise do interior revelou uma semelhança com o Passat iraquiano, mas nem tanto. Veja outras fotos do Passat desconhecido no dia em que foi adquirido. Detalhe para o console central pequeno. Interior “Chateau” vermelho, incluindo colunas e sem encosto de cabeça traseiro. Câmbio de quatro marchas. O compressor do ar condicionado tinha sido retirado, pois tinha quebrado.
Origem do apelido “Santo”
A única informação que se tinha, era a de que este carro tinha pertencido a um centenário convento/escola de freiras (Colégio Maria Imaculada Virgem Maria) em Prudentópolis desde 0-km, como foi possível ver pelo certificado de registro e licenciamento do veículo, ainda dos tempos de placas amarelas, onde se lia que o proprietário era a Associação da Imaculada Virgem Maria.
Em pesquisa posterior se descobriu que o tal convento/escola fazia parte de uma sociedade de educação conduzida por freiras que têm escolas em várias cidades paranaenses. A matriz desta associação fica no bairro das Mercês em Curitiba e esta associação se dedica à educação infantil, pré-escola, ensino fundamental, educação profissional de nível técnico etc.
A filial de Prudentópolis, onde o Passat desta história ficou até o início do ano de 2016, tem sua sede num prédio majestoso e possui instalações amplas com lindos jardins.
Para as crianças há recantos que mais parecem um miniparque temático e as demais instalações são exemplares (fotos do site da escola):
Mas um dia chegou a hora da despedida e as freiras organizaram um bingo em janeiro de 2016 para arrecadar fundos, cujo prêmio maior foi o carro. A ganhadora, d. Cristiane, como não tinha interesse pelo carro decidiu vendê-lo e o colocou no garageiro onde o Roberto Hypólito o encontrou em março. Dado o envolvimento com as freiras é que o carro ganhou o apelido de “Santo Passat”.
Lá de Prudentópolis o Roberto Hypólito ligou para o Mário e disse que, mesmo se não descobrissem o que era, dava para revender e ganhar um dinheiro em cima, não se ficaria no prejuízo. O Mário topou, o carro foi comprado e o Roberto Hypólito iniciou a viagem para Guarapuava. Ele relatou: “Cravei 150 km/h nas retas de volta para Guarapuava, uma loucura, mas estava testando o carro. Perfeito, macio, redondo! Carro firme, alinhado. As freiras cuidaram bem dele!”
Antes do Roberto Hypólito sair da loja, o lojista disse que este carro era para ser um modelo de exportação para a Índia. Ao que ele retrucou: “Não seria para o Iraque? ” Ao que o lojista disse que não. Isto deixou o Roberto Hypólito mais intrigado ainda.
À noite, chegando em casa o Roberto ligou para o Mário, para que ele viesse buscar seu carro. Então ele começou a pesquisar na internet buscando por Passat indiano, Passat Índia, coisas do gênero. Ele achou um blog, que depois não conseguiu reencontrar, que falava de um tal de Passat nigeriano e uma foto em resolução bem baixa de um carro parecido com o modelo que ele havia trazido.
Aí ele mudou o foco da pesquisa e a busca passou a ser por modelos antigos de exportação. Até que no site Home Page do Passat foi encontrada a matéria: “Passat Nigeriano hibernando”
Quando o Roberto Hypólito viu a foto, ele quase caiu de costas: era um carro idêntico!
Analisando a matéria, ele descobriu então que tinha encontrado um tesouro despercebido por muitos. Resumindo: era um Passat nigeriano vermelho Fênix, produção outubro de 1986. Rodas datadas de agosto de 1986, era único dono, as freiras não tinham porque descaracterizar o carro de alguma forma. Equipado com ar-condicionado e o xeque mate: motorização MD-270 (em plena produção de AP600) com câmbio quatro-marchas.
Os quatro furos encontrados embaixo do painel eram para fixar um simples suporte de rádio por meio de parafusos. Após intensa busca na internet, foram encontrados somente um suporte preto quebrado, e outro marrom.
Eles conseguiram fazer a réplica deste suporte em compósito de fibra de vidro e também conseguiram encontrar o rádio que equipava o modelo na época, um Bosch Los Angeles, em perfeito funcionamento.
Depois de um tempo o ar quente estava funcionando e o ar-condicionado foi consertado; e o som que equipava este tipo de carro na época, um Bosch Los Angeles, foi instalado e passou a funcionar de novo, inclusive o toca fitas! Pura nostalgia!
Depois disto, eles descobriram também que os 8 mil reais investidos inicialmente pelo Mário era um valor irrisório perto da história deste veículo. Aliás, a história do Passat nigeriano será detalhada numa próxima matéria.
Agora, oito meses depois da compra, o Santo Passat está inteiramente restaurado, vistoriado e aguardando a documentação retornar do Detran para substituição das placas cinzas pela mais do que merecida placa preta!
Fotos pós-restauração
O carro foi cuidadosamente restaurado com sucesso, e está numa condição impecável. Certamente os cuidados das freiras com o carro foram importantes para que o carro esteja nestas condições.
AG
(*) Esta história foi enviada por Roberto Hypólito Braga Caldeira, aficionado por automobilismo desde criança, que hoje é presidente do Clube de Autos Antigos Volks do Lobo, localizado na cidade de Guarapuava – PR (caavl@outlook.com). A oportunidade de fazer este trabalho surgiu em decorrência de um comentário que o Roberto Hypólito fez à matéria do Passat 4M.
(**) Mário Sérgio Chizini da Fonseca é sócio-fundador do
Clube de Autos Antigos Volks do Lobo e proprietário
dos exemplares descritos nesta matéria, em especial do Santo Passat.
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