Quando se fala em carro esportivo, veloz… um europeu com mais de 400 cv, algum brincalhão lembra do “Uno com Escada”: “Esse sim, é mais rápido ainda”. Quase uma lenda urbana (ou rodoviária) brasileira, será que o Uno com Escada (e no teto, para atrapalhar mais ainda) está na mesma categoria das sereias que habitam o mar ou os gnomos que se escondem no jardim? Sereia (não no sentido figurado de mulher curvilínea) e gnomo eu nunca vi, assim ao vivo. Pelo menos sóbrio.
Em compensação, Uno com Escada já vi em ação, não no mar, nem no jardim, mas em boas estradas. Você aproveita um descidão de asfalto liso, estrada segura, duas pistas, guardrail, certeza de que não tem radar e “enche o pé”. O velocímetro começa a passar dos 150 km/h… e “vai que, pah!”. Lá vem um Mille com Escada e te ultrapassa rodando a 160 km/h. E te passa pela direita, para a vergonha ser total, para dar vontade de pôr fogo no carro “veloz” novinho.
Não é mito: já aconteceu com este Tio escrevinhador algumas vezes. Nem sempre tinha escada no teto, mas era parte do mito, pois se tratava de um “carro de firma”, irmão gêmeo do Uno com Escada, inclusive na sua impressionante “performance de pista”. Tanto é verdadeiro que já virou “meme” de redes sociais e existe até miniatura em sites especializados.
Mas, vamos examinar as razões que fazem do Uno com Escada uma lenda brasileira.
Primeiro, é bom lembrar que o Uno brasileiro foi fabricado por quase três décadas, exatos 29 anos, de 1984 até 2013. Durante todo este tempo, o Uninho foi aperfeiçoado, se tornou um carro mais resistente, durável e econômico. Daí sua preferência pelas empresas como ferramenta de trabalho. E, ao mesmo tempo, durante este longo período de produção, ele também perdeu peso. A última versão ( de 2010 a 2013) pesava apenas 840 kg e em ordem de marcha. Ou seja, com todos os líquidos (água, óleo, combustível…) e aí está um dos segredos de sua “esportividade”: leveza ajuda performance. Seu “sucessor”, o novo Uno, pesa pelo menos 1.060 kg, mais de 200 kg de sobrepeso.
Além disso, os “carros de firma” são sempre as versões mais básicas, sem acessórios, claro que são os mais leves.
Além disso, seu motorzinho quatro-cilindros 1,0 (Fire, 999 cm³) rende bons 66 cv (com álcool), o que o leva até os 153 km/h. Opa!!! Eu disse que já vi Uno a 160 km/h. Sim, a velocidade máxima é medida em pista plana, mas na descida a força da gravidade significa uns “cavalinhos” extras. O motor sai um pouquinho da rotação de potência máxima, na descida todo santo ajuda e, voilá, temos um Uno com Escada a 160 km/h. A escada na verdade só atrapalha: apesar de leve (geralmente de alumínio) estraga ainda mais a aerodinâmica já ruim do Uninho.
Mesmo assim, o Uno com Escada virou mais que uma lenda, com direito a miniatura e até a se tornar personagem de games automobilísticos de velocidade.
Outros fatores ajudam a criar o mito. Um deles é que quase todos os Uno de empresas são bem cuidados mecanicamente. Para gastar menos em manutenção e combustível, são revisados com frequência, tem lubrificantes trocados no prazo certo, o que mantém seu rendimento sempre maximizado — a velha fórmula de que manutenção preventiva sempre é mais barata que a corretiva.
Além disso, o “Uno de firma” é mantido original, sem rodões, por exemplo. Ou seja, seus pneus de aro 13, estreitos, quase “linguiça” (165/70R13), colaboram com menor atrito com a pista. E se tiverem umas 2 ou 3 “libras” a mais então, rolam bem e oferecem menos resistência aerodinâmica em alta velocidade do que pneus largos.
E agora vem uma das principais razões para o surgimento do mito do Uno com Escada. São “carros de estrada”, rodam quase sempre na melhor das condições: última marcha, eficiência total do radiador devido à velocidade, pouca variação de velocidade, alta rotação… por aí vai.
Bom lembrar que os 66 cv de potência não são exatamente assim: variam de motor para motor e também se alteram — para mais — durante a sua vida útil.
E pode colocar o motor de um Uno estradeiro no dinamômetro: certamente vai dar mais que os 66 cv originais. Alta rotação, temperatura… a vida na estrada deixa os cilindros do motor mais espelhados, diminuindo o atrito com anéis e aumentando o rendimento. Qualquer bom mecânico conhece um “carro de estrada” pelos cilindros (onde correm os pistões), que são mais brilhantes e com riscos apenas microscópicos.
Ao contrário, carros cujos motores não giram muito, ficam “amarrados”. Conto um caso real. Em um condomínio, os Gol 1,0 que fazem a ronda rodam mais de 100 mil km praticamente em segunda e com o motor em marcha-lenta. Outro dia, um funcionário que ia ao banco (uns 7 km de estrada no caminho) se ofereceu para pagar umas contas minhas: “Só vou pegar meu carro (outro Gol 1,0) e estou indo”.
“Ué, por que você não vai com o carro do condomínio?” — perguntei.
“Não vale a pena. Na estrada, é um sacrifício passar de 70/80 km/h, estes carros estão viciados em andar devagar. Prefiro meu carro que é muito mais rápido”.
Quem não acredita é só abrir um motor destes carros “de ronda”: camisas rugosas, carbonização em válvulas e cabeçotes…
Ainda que alguns especialistas teóricos não acreditem, pois é difícil apontar razões técnicas para isso, carros que rodam em estradas com motor em alta rotação rendem melhor, carbonizam menos, tem os atritos internos atenuados… ficam “viciados” em alta rotação.
Além disso, existe o fator humano. O motorista de um “Uno de firma”, além de experiente, quase sempre faz os mesmos trajetos, conhece bem a estrada, tanto curvas como buracos e radares.
E o acelerador de um Uno destes tem duas posições: ligado (pé no fundo) e desligado (tira o pé).
Por tudo isto, apesar de não acreditar em sereias e gnomos, eu creio em Uno de firma, em Uno com Escada. Só não fotografei um porque passou muito, muito rápido.
JS