Creio que a maior dificuldade enfrentada pelo engenheiro é estabelecer um projeto robusto que satisfaça as exigências de funcionalidade e custos, de uma maneira balanceada técnica-comercial.
Guardo com carinho uma frase de um velho amigo e gerente da Ford, Francisco Salles Marques, que dizia: “Gastar com sabedoria é investir mais onde a probabilidade de descontentamento do consumidor for maior e vice-versa”. Creio que todo o engenheiro deveria se lembrar deste pensamento no desenvolvimento de um projeto.
Sem dúvida alguma, a maioria dos engenheiros, me incluindo, gostaria de projetar sem a preocupação com os custos envolvidos, adotando materiais nobres, manufatura de precisão e de qualidade absoluta. Falando de veículos, o projetista pode gastar mais em um Ferrari do que em um Ka, observando as exigências de mercado de carros de luxo e básicos de entrada, porém a relação de custo-benefício estará sempre presente, independentemente dos valores envolvidos. O importante em qualquer projeto é identificar claramente o ponto de equilíbrio, gastando o suficiente para a funcionalidade desejada e satisfação do consumidor.
É muito comum balizar um projeto recorrendo a avaliações comparativas com os competidores em um determinado mercado. A pergunta que fica é por que gastar mais dinheiro sendo igual ou melhor que os nossos concorrentes? Com muita frequência, a engenharia da fábrica promove testes com seus modelos em relação aos seus competidores diretos para estabelecer uma base racional de custo-beneficio. E a Ford não foge à regra, tomando decisões com bases comparativas e as vezes, impostas de cima para baixo, conforme a conveniência do alto escalão da empresa.
Escort
Lembro-me do inicio do programa ZETA, o Escort brasileiro, durante o desenvolvimento do filtro e tomada de ar fresco para o motor. A preocupação de passar por alagados sem ingestão de água era fundamental para a segurança do projeto. E fizemos um teste comparativo com o veículo passando por vários níveis de água e em varias velocidades. O melhor veículo foi o Corcel, passando em todas as situações com integridade total e o pior foi o Escort europeu com o motor CVH, onde a tomada de ar fresco não evitava a ingestão de água pelo filtro. O nosso Zeta brasileiro estava no limite de aceitabilidade.
E fizemos várias propostas sem sucesso até que foi necessário sacrificar a tomada de ar fresco, instalando-a no compartimento do motor. O desempenho do motor ficou um pouco prejudicado pela maior temperatura de admissão de ar, porém foi o que conseguimos na época. Na verdade, gastando-se mais dinheiro, conseguiríamos através de defletores e com a tomada de ar fresco em baixo do para lama, por exemplo, tornar o projeto melhor.
A escolha, com tomada de ar fresco dentro do compartimento do motor, tornou o Zeta razoável para bom em passagem por alagados, praticamente com o mesmo comportamento do Fiat 147 Fiorino. Para ficar excelente como o Corcel, mais investimentos seriam necessários e a decisão foi de não investir. Como referência, o Zeta foi capaz de passar em alagados com 25 cm de profundidade e a 20 km/h, e o Corcel, o melhor, em 35 cm de água e a 30 km/h. E tudo acabou bem, sem traumas com aceitável custo-benefício.
EcoSport
Outro exemplo de escolha, esta não bem-sucedida, foi relativa à tampa traseira do EcoSport MK1, geradora de muitos ruídos e insatisfação por parte do consumidor. Falando um pouco do projeto, a tampa traseira era muito pesada, agravada pelo peso do estepe instalado no centro do conjunto. A fechadura e seu apoio não davam conta e os ruídos de rangidos e batidas se tornaram um verdadeiro problema. Várias propostas foram idealizadas pela engenharia, porém nunca aprovadas pelo alto escalão da empresa por causa dos altos custos envolvidos nas modificações.
Para resolver o problema seria necessário incluir reforço interno tipo treliça no apoio das dobradiças e também adotar um sistema de cunha com mola, que apoiasse melhor a tampa e fosse autoajustável. E o tempo passou e todos sabem que o MK1 ficou dez anos no mercado com o problema incomodando o ouvido do consumidor. E veio a nova geração do EcoSport e o problema foi praticamente resolvido com a adoção de grande parte das sugestões da engenharia, sabiamente.
Corcel II
Outra decisão errônea, baseada na aparência e não no desempenho, foi a adoção do pneu radial Goodyear G800 no Corcel II. Pneu bonito com vistoso desenho da banda de rodagem, no piso seco era imbatível, porém tinha medo de qualquer chuvinha. No molhado o escoamento de água não era efetivo e o veículo estava sempre perto de aquaplanar. A engenharia esperneava e nada conseguiu convencer o alto escalão que o G800 na medida 185/70R13 não era adequado para o veículo. A aparência venceu, infelizmente. Na realidade a aquaplanagem depende de vários fatores, como área de contacto com o solo, carga vertical e o próprio desenho. Pneu muito largo com pouca força normal (vertical) é um complicador no problema. Se ao invés do G800 185/70R13 fosse adotada a medida 175/80R13, por exemplo, o problema ficaria minimizado provavelmente.
Motor AP
Lembro-me e outro fato que incomodou bastante a Ford na época da Autolatina, que era o consumo excessivo de óleo lubrificante do motor Volkswagen AP. A maior parte do problema era gerada pelo desgaste prematuro dos retentores das válvulas deixando passar óleo para as câmaras de combustão. Além de consumir lubrificante soltava uma fumaça azul pelo escapamento que agravava a situação. A VW na Europa conhecia o problema e já havia melhorado o desenho e o material dos retentores, mas no Brasil, inexplicavelmente, mantinham o desenho antigo. Na realidade o custo do retentor modificado era muito maior, falando mais alto que a função. Com a ajuda da Ford, finalmente os retentores foram substituídos pelos novos, resolvendo definitivamente o problema.
Câmbio PowerShift
E outro problema recente, relativo ao câmbio robotizado de dupla embreagem Ford PowerShift que aconteceu não pelo projeto em si, que era excelente, mas pela aplicação.
Veículos mundiais normalmente adotam um mesmo projeto que atenda as características de utilização do veículo nos vários mercados, por exemplo, tráfego anda e para, ladeiras, tipo de terreno, modo de dirigir, entre outras.
O PowerShift tinha duas versões, uma com dupla embreagem seca e outra em banho de óleo, para cobrir a maioria das situações de uso no mercado mundial. A embreagem seca seria para condições menos severas, em rodovias, terrenos planos, poucas ladeiras e tráfego pouco congestionado, e a embreagem em banho de óleo para situações mais severas, tráfego anda e para, muitas ladeiras, motorizações maiores e uso agressivo, entre outras.
Para o Brasil, com todas as peculiaridades severas de meio ambiente, certamente a versão de embreagem molhada seria a mais adequada. Mais cara sim, porém muito mais confiável e mais uma vez o custo prevaleceu à função, criando um baita problema para a Ford.
Concluindo, e muitos outros casos poderiam ser abordados referentes à engenharia com sabedoria. Fica muito claro para mim que a grande parte dos problemas poderia nem ter existido e/ou facilmente solucionada, se o balanço de custo-benefício fosse sempre bem executado. Infelizmente, dentro de qualquer organização, existem os “carreiristas” de plantão que estão pensando muito mais em seu progresso profissional do que no produto. Para eles o que importa é o curto prazo, favorecendo suas promoções custe o que custar.
Lembro-me como ficava evidente nas avaliações veiculares comparativas, o tendencioso (bias em inglês), que defendia o indefensável pensando em ficar de bem com o chefe, em detrimento do produto. Era sempre o arauto das boas notícias, esquecendo totalmente as más. Ainda bem que os carreiristas são uma minoria, prevalecendo aqueles com discernimento e boas intenções.
Falando em boas intenções, hoje homenageio um particular amigo e excelente executivo da Ford que tem feito a diferença ao longo do tempo, tanto em capacidade técnica como em relacionamento interpessoal.
É o Klaus Palo de Mello, que com certeza vai ocupar postos cada vez mais altos na Ford , com integral merecimento, praticando engenharia com sabedoria e educação.
CM