Como o leitor sabe, trabalhei na engenharia da Ford durante 40 anos e neste tempo posso dizer que já vi de tudo, ou quase tudo, em termos de projetos e desenvolvimento de veículos.
Aprendi principalmente a valorizar o automóvel em todos os seus atributos funcionais simultaneamente, analisando a coerência de seu conjunto. Sempre dou um exemplo brincalhão mas que sintetiza a importância da interação dos atributos, trabalho este feito pela engenharia experimental e de desenvolvimento do produto. Imagine compor um rosto de mulher escolhendo os melhores atributos de várias mulheres, por exemplo, os olhos da Xuxa, a boca de Angelina Jolie, o nariz da Julia Roberts e assim por diante. Junte as partes e o conjunto pode virar um monstrengo.
A mesma coisa acontece com o automóvel. Conjuntos excelentes nem sempre têm excelência em todos os seus atributos individualmente, mas a dose certa para que o consumidor o valorize, identificando o tripé de ser bom, bonito e barato que eu freqüentemente cito nas minhas matérias. Este é o principal problema que eu vejo nos projetos virtuais. Os engenheiros projetam as partes individualmente com regras e procedimentos-padrão esquecendo a interação do conjunto.
Confesso ao leitor que algumas vezes cometi a heresia de querer colocar o oval Ford em alguns veículos da concorrência que eu particularmente gostava em razão de seus conjuntos coerentes. Um desses veículos foi o Volkswagen Golf.
Com estilo marcante definido pelo mestre Giorgetto Giugiaro, o VW Golf, fruto do projeto EA337, começou a sua história de sucesso em maio de 1974 quando foi lançado na Alemanha. Leve, com peso em ordem de marcha de 790 kg, mostrava linhas simples e funcionais com a coluna traseira larga dando aparência robusta ao veículo e que foi a sua marca registrada ao longo dos anos.
O VW Golf seguia os princípios mecânicos do VW Passat 1973 com a adição da montagem transversal do motor e transmissão que permitia uma frente mais curtinha que o seu irmão. Suspensão dianteira McPherson com raio negativo de rolagem e suspensão traseira com eixo de torção. Uma das opções de motor era o 1,5 litro de 70 cv e 11,5 m·kgf de torque.
Cabe um parêntese a respeito do raio negativo de rolagem.
O raio negativo de rolagem contribui para a estabilidade direcional e para a segurança em caso de eventos singulares, como, por exemplo, perda de ar súbita dos pneus, perda de um dos circuitos diagonais do freio, impacto contra obstáculo, frenagem em piso com diferentes coeficientes de atrito por roda etc.
O segredo do raio negativo de rolagem é anular automaticamente o efeito da perturbação, compensando as forças assimétricas do evento e contribuindo para que o veículo se mantenha na trajetória.
Continuando, foi na época da Autolatina que tive o prazer de dirigir um Golf GTI MK1 que estava preservado na VW. Com motor 1,6 de 110 cv, herança do Audi 80 GT e injeção mecânica de combustível Bosch K-Jetronic, acelerava de 0 a 100 km/h em 9 segundos e tinha a velocidade máxima de 180 km/h.
Fiz uma rápida avaliação entre a fábrica VW e o Caminho do Mar, a estrada velha de Santos, e fiquei impressionado com o seu desempenho e estabilidade. Parecia um kart com a direção de respostas rápidas e precisas. O seu conforto de suspensões deixava um pouco a desejar, porém o seu comportamento fun to drive compensava toda a dureza do conjunto. A cereja do bolo era o pomo da alavanca de câmbio em formato e desenho de bola de golfe… Não existe nada mais ergométrico para esta aplicação que uma esfera. Os engates das marchas eram leves e precisos. A embreagem, que me parecia super-dimensionada, mantinha boa modulação sem apresentar deslizamentos prematuros durante as trocas de marcha. A posição de dirigir, ajudada pelos bancos anatômicos e com bom apoio lateral, complementava este excelente conjunto.
Durante o período Autolatina a Ford ficou sem um carro médio que realmente pudesse competir com o Golf de igual para igual. O que chegou mais perto em termos de conjunto foi o Ford Escort com motor Zetec 1,8 16V em 1997. Com câmbio bem longo e o motor elástico ele andava muito. Fazia de 0 a 100 km/h em 9,8 segundos e tinha velocidade máxima de quase 200 km/h. Me lembro que nem os Kadett GSi da GM eram páreo para o Escort. Enquanto o Kadett estava no limite em 5ª marcha, o Escort em quarta marcha levava bonito e ainda com reserva para as descidas, o “morro abaixo”.
O compromisso estabilidade e conforto não era realmente o forte do Escort. Sua suspensão traseira com eixo de torção tinha buchas pequenas com pouca isolação que transmitiam toda as irregularidades da pista. A suspensão dianteira muito firme também apresentava desconforto induzindo movimentos laterais aos ocupantes do veiculo (head toss). Mesmo assim, o Escort tinha boa estabilidade com comportamento um pouco subesterçante (understeer), mantendo a segurança em manobras transientes e também em velocidades estabilizadas.
Não era feio nem bonito com sua grade oval e a mistura de linhas retas e curvas pouco coerentes. O interior era confortável com bom espaço para os ocupantes mas nada que realmente fosse um diferenciador marcante.
Em 1995 a Ford na Europa pensava em um substituto para o Escort que ainda tinha um nome respeitável, porém já cansado em sua configuração.
E foi em 1998 que a Ford deu uma virada radical no segmento dos carros médios, com o lançamento do Ford Focus na Europa.
Apresentado no Salão de Genebra em março de 1998 em duas versões hatch 3 e 5 portas, surpreendeu pelas suas linhas arrojadas, o New Edge Design, com destaque as lanternas traseiras altas junto ao vidro. Seu interior era impecável com o painel dos instrumentos acompanhando as linhas modernas do veículo, com todos os controles à mão e uma iluminação noturna digna de elogios.
Com posição de dirigir perfeita, o Focus se destacava pelo seu compromisso de estabilidade e conforto de rodagem graças ao trabalho liderado por Richard Perry-Jones, vice-presidente mundial de desenvolvimento do produto da Ford em consultoria com Jackie Stewart, tricampeão de Formula 1.
Direção precisa e comportamento levemente understeer, tinha a suspensão traseira multibraço que fazia toda a diferença. A variação dos valores dos ângulos de trabalho com o curso de suspensão era mínimo, garantindo um controle incrível do automóvel com as quatro rodas trabalhando independentemente e com precisão. A pouca rolagem da carroceria em torno de 3 graus por G aumentava ainda mais a sensação de segurança do Focus e o prazer ao dirigi-lo. Tinha duas motorizações principais, o Zetec E 1,8, 115 cv e Zetec E 2,0, 130 cv, que lhe garantiam um bom desempenho.
O Ford Focus estreava no Brasil no segundo semestre de 2000 com duas diferenças em relação ao modelo europeu:
– Adição de batente hidráulico nos amortecedores dianteiros para evitar a famosa “queda de roda” ao passar pelo que o Bob chama — e concordo — de dejetos viários, as lombadas.
– Aumento da altura do veículo em 10 mm para ajustá-lo ás condições de rodagem sul-americanas.
O Focus foi apresentado ao público no Uruguai, precisamente em Punta Del Leste. em um evento marcante. O test drive teve a ajuda do meu querido amigo Roberto Manzini que, com a sua experiência, liderou o trabalho com maestria em termos de rota escolhida e apoio logístico.
Toda a equipe Ford estava orgulhosa do excelente produto que estava sendo apresentado em traje de gala. Eu particularmente fazia a ligação direta entre a Engenharia do Produto da Ford com a imprensa especializada, dando apoio às apresentações e todo o meio de campo necessário ao sucesso do evento.
Nossa preocupação maior era garantir a qualidade do Focus sendo produzido na fábrica de General Pacheco, região metropolitana de Buenos Aires. Com toda a linha de montagem remodelada em suas instalações, o time de manufatura deu conta do recado conseguindo manter a qualidade do Focus semelhante aos seus irmãos europeus.
Tinha tudo para dar certo e deu!
Em fim, tínhamos um veículo que competia em pé de igualdade com o VW Golf. Conjuntos diferentes mas com a mesma interação dos atributos que tem feito a grande diferença ao longo dos anos.
Hoje o VW Golf em sua sétima geração e o Ford Focus, em sua terceira, continuam a ser referências nos segmento dos carros médios mundiais. Na realidade podemos situá-los como ícones, com todo o respeito.
Termino esta matéria com duas fotos como homenagem a estes brilhantes conjuntos que têm valorizado a indústria de automóveis mundialmente!
Aqui entre nós, quase perdi a vontade de colocar o oval Ford no VW Golf…
CM
Crédito das fotos: arquivo pessoal do autor, bestcars.uol.com.br