Este artigo conta um pouco da história de um tipo de decoração de veículos no Paquistão, uma arte única e tradicional naquele país e suas vertentes e mostra exemplos em Fuscas decorados.
O carro do título é um Fusca 1960, que Nasir Shaikh, seu dono, mandou decorar no mais puro estilo paquistanês. Billo é a palavra Punjabi para uma “donzela de olhos azuis.” Aqui a referência é para a cor azul turquesa do carro. Esta foto foi tirada no Canadá durante a estada de cinco anos do carro naquele país. Este é um de nossos heróis nesta matéria, aquele que motivou o estudo desta arte.
Mas para entender bem a decoração do Billo e de outros Fuscas é preciso entrar no âmago deste país do sul da Ásia que ocupa área de 880.940 km², pouco mais que a décima parte do território brasileiro mas tem uma população próxima à nossa, 185 milhões de habitantes, que tem uma arte sui generis, a de usar caminhões para expressão de arte.
Das margens do Oceano Índico aos picos do Himalaia, as estradas do Paquistão estão cheias de telas móveis, obras de arte ambulantes. A arte em caminhões é uma prática única de transformar os transportadores de carga em obras de arte e tem sido muito popular há muito tempo. Em todo o Paquistão, enormes somas de dinheiro, anos de experiência, e detalhes meticulosos trouxeram estas obras de arte para cada cidade, vila e porto com acesso a uma estrada.
Este fenômeno encontra o extraordinário no ordinário e eleva a habilidade dos artesãos a uma forma de arte. Inclusive uma destas obras de arte foi exibida no Festival de Folclore do Instituto Smithsoniano de Washington, EUA, em 2002.
A maioria dos caminhões que roda nas estradas no Paquistão está decorada de cima a baixo e até mesmo os tanques de combustível e rodas recebem tratamento de embelezamento, sem esquecer do interior das cabines dos caminhões. Os principais temas da decoração são ditados pela escolha dos proprietários para refletir a sua herança cultural, o seu gosto, imaginação, filiação política etc.
O interior de um caminhão paquistanês costuma ser intensamente decorado com pinturas e diversos penduricalhos. A invasão da área útil dos pára-brisas está sendo reprimida pela polícia rodoviária de lá gerando um choque cultural. Os desenhos consistem em padrões geométricos e florais, paisagens, mesquitas (a mais popular é a mesquita Faisal com os seus minaretes em forma de mísseis), faisões, pavões, cavalos, tigres pulando em cima de suas presas e belas artistas celebradas em filmes. Um favorito de todos os tempos é o cavalo alado com uma cara de mulher que representa Buraq — transporte usado pelo profeta Maomé quando ele visitou o céu. Os artistas envolvidos nesta arte incrível quase sempre são analfabetos, sem educação formal ou formação em arte. Eles usam sua imaginação para criar suas obras de arte. Os estilos variam conforme a localização geográfica de cada artista que aperfeiçoou sua arte do seu próprio modo. A herança étnica contribui para o estilo diferente da arte do caminhão em cada província. Algumas das cenas de paisagem mais populares, aquelas que representam os leões e tigres, galos e patos, cenas de caçadas ou uma donzela cheirando uma rosa, parecem cenas tiradas diretamente das pinturas Mogul.
A pintura Mogul é um estilo particular de pintura do sul da Ásia, geralmente restrita a miniaturas ou como ilustrações de livros, ou como uma única obra a ser mantida em álbuns, estilo este que surgiu a partir da pintura em miniatura persa, com influências hindus, jainistas, budistas, e que foi desenvolvida em grande parte na corte do Império Mogul (entre os séculos 16 e 19), que depois se espalhou por outras cortes indianas, tanto muçulmanas, como hindus e sikhs.
Os desenhos mais intrincados são, de longe, aqueles feitos em Quetta (Baluquistão). A razão disto pode ser a influência iraniana. Esses caminhões são quase sempre desprovidos de figuras humanas. Os caminhões decorados em Peshawar são uma mistura de painéis de madeira de nogueira entalhada, trabalhos de pintura e colagens.
Enquanto a maioria dos Pukhtoons (moradores da Província da Fronteira Noroeste que falam o idioma Pushto) escolhe o Marechal Ayub Khanimagem por razões óbvias — ele erada Província da Fronteira Noroeste) para decorar o painel traseiro de seus caminhões, uma significativa proporção escolhe a imagem de uma heroína de filmes do passado com proporções muito saudáveis e generosas.
Artistas em Pir Wadahi (um subúrbio de Islamabad) e Badami Bagh (o distrito de transportadoras de Lahore) e proprietários de caminhões em Punjab preferem paisagens, formas geométricas e flores em relevo em chapa de aço inoxidável preenchidas com fita refletiva 3M, assim como retratos de estrelas de cinema. Caminhões em Sindh quase sempre apresentam paisagens pintadas com lagos rios, cachoeiras, picos de montanhas cobertas de neve, flores e mesquitas. Os materiais escolhidos para decorar os caminhões em conjunto com o estilo geral empregado, em última análise, servem como uma representação cultural da província em questão. Através dos anos, os materiais utilizados foram evoluindo a partir de madeira, passando para pintura, chapa metálica cromada, plástico e fita de vinil reflexivo.
As estradas intermunicipais no Paquistão não são iluminadas, de maneira que as decorações refletivas servem como uma segurança essencial.
Nos últimos anos caminhões e ônibus foram decorados adicionalmente com painéis cravejados com LEDs. Os artistas competem para ver quem pode executar as obras de arte mais ousadas, coloridas, por vezes deslumbrantes, em caminhões, ônibus, navios, picapes e riquixás. As cores usadas são vermelho elétrico, laranja e amarelo, rosa choque, verde e azul.
De pára-lamas dianteiros a traseiros, arcos das rodas, laterais e todas as outras áreas imagináveis pendem correntes de metal. O comprimento dessas correntes é ajustado de tal forma que pequenas peças de metal tocam a estrada no ponto mais baixo, produzindo um tilintar agradável quando os caminhões sobrecarregados balançam de um lado para outro pelas estradas, que estão longe de serem perfeitas. Pequenos sinos de bronze também são pendurados a estas correntes.
As Filipinas têm seus Jeepnies, a Tailândia tem os seus tuk-tuks pintados, mas em nenhum lugar do mundo os artistas automobilísticos vão a extremos como no Paquistão!
.
O Billo, um Fusca com muito estilo
Nasir Shaikh, um Fuscamaniaco paquistanês membro do Volkswagen Club of Pakistan (VWCOP), decidiu incrementar um de seus carros, no caso o seu Fusca 1960, o Billo, com uma decoração típica de seu país, isto depois de ter feito uma cuidadosa reforma do carro, que incluiu uma repintura na sua cor original. O trabalho foi feito em 2006 na localidade de Rawalpindi, que fica junto à capital Islamabad, localidade que é um tipo de “Meca” da decoração de veículos à moda paquistanesa. Neste caso o material usado foram fitas de vinil refletivo da 3M. O trabalho começou pelas calotas e foi se alastrando por outras partes do carro até um ponto que o Nasir achou suficiente para que o carro refletisse a cultura típica dos caminhões paquistaneses. Todos os desenhos foram meticulosamente recortados e colados em camadas de maneira a formar a delicada e elegante decoração do seu Fusca, algo realmente impressionante quando se observam os detalhes. Nada como dar uma olhada nos detalhes desta transformação, desde o início dos trabalhos no Billo, até a sua conclusão com os ricos detalhes baseados na técnica usada nos caminhões paquistaneses.
A foto seguinte serve muito bem para demonstrar que o trabalho todo foi feito em material refletivo; ela foi tirada dento de um ferryboat na época que o Billo “morou” no Canadá:
Um Fusca para ir de carro de Islamabad a Paris
Como já dissemos, a localidade de Rawalpindi é um centro de decoração no estilo dos caminhões paquistaneses, e lá foi decorado um outro Fusca usando uma outra técnica, bem mais antiga, que é a de pintar a decoração sobre a chapa, conhecida com Truck-Art — arte de caminhões. Assim como nos caminhões, a decoração é pintada tanto do lado de dentro como no lado de fora dos veículos.
Este Fusca acabou sendo batizado de Foxy Shahzadi, onde Foxy é uma das formas que o Fusca é chamado no Paquistão e Shahzadi quer dizer princesa, que foi a exclamação de um dos envolvidos na reforma quando o carro ficou pronto no dia 13 de setembro de 2009 depois de quatro meses de trabalho. Ele exclamou: “Está saindo a princesa…”
Tudo começou quando um médico francês da ONG Médicos Sem Fronteiras estava terminando o seu contrato de três anos de trabalho de intensivista na capital Islamabad e decidiu que a volta para Paris seria num Fusca decorado no estilo Truck-Art. Isso para que, no caminho que atravessaria vários países, fosse apresentado o “lado soft” do Paquistão através da arte com a qual seus caminhões são decorados. Isto num tempo em que o terrorismo interno estava na ordem do dia na imprensa internacional e, internamente, afetava fortemente a vida nas grandes cidades do Paquistão.
O Foxy Shahzadi inicialmente era um carro abandonado em uma das ruas de Islamabad, uma sucata, e foi “reformado” para poder enfrentar os 10.000 km até Paris, passando pelo Irã, Turquia, Grécia e Itália. Dois amigos, outro médico, Vincent Loos, e um engenheiro de TI, Salman Rashid, se uniram ao mentor do plano, Haroon Khan e partiram para Paris. Na foto, já em Lahore, o destaque no fundo, à esquerda, é a Torre de Lahore a Minar-e-Pakistan.
A “reforma” deste carro e os extensos trabalhos de decoração foram registrados no blog que registrou a aventura. O vídeo que segue mostra algumas fotos deste processo, praticamente da sucata ao Fusca decorado:
O Foxy Shahzadi, chegou a Paris e ficou por lá, onde continua a divulgar a Truck-Art paquistanesa tanto para os franceses quanto para os turistas, pois volta e meia ele faz passeios pelas ruas da Cidade-Luz.
Mais um Fusca “transcontinental” decorado com Truck-Art, agora com destino a Berlim, Alemanha
Este projeto de viagem foi lançado por um empreendedor alemão da área de energia que estava terminando a sua estada de um ano em Islamabad e decidiu voltar rodando para Berlim, uma interessante aventura, um desafiador modo de voltar para casa.
Decorado com algumas imagens tradicionais do estilo Truck-Art, o carro também recebeu alguns detalhes mais originais. Os pássaros são certamente algumas das formas de representação mais comuns, que aparecem em vários locais. Há um bem-pintado Buraq, o cavalo do profeta, retratado como ele normalmente aparece na arte de caminhões. Há alguns animais da selva, incluindo elefantes e girafas, que são menos comuns. Ao invés de retratar quaisquer líderes paquistaneses individuais, a obra de arte retrata locais paquistanesas notáveis, como Torre de Lahore a Minar-e-Pakistan, onde o Estado paquistanês foi oficialmente criado, e o icônico Portão de Khyber, que marca a entrada do Passo de Khyber, que liga o Paquistão ao Afeganistão. Aliás, estes símbolos paquistaneses, juntamente com a Mesquita de Faisal, são muito apreciados pelos caminhoneiros, tanto que podem ser vistos várias vezes nas pinturas apresentadas nesta matéria.
Algumas fotos do “Fusca do Alemão” com seus detalhes peculiares. Na foto seguinte se pode ver no pára-lama traseiro direito o Buraq, cavalo do profeta, e o Portão de Khyber, elementos freqüentes. Um pássaro na lateral direita traseira, uma zebra na lateral direita traseira e um elefante no pára-lamas dianteiro direito, elementos raros neste tipo de decoração. Detalhe para os guizos presos ao estribo, imitando as correntes que os caminhões recebem. É interessante que neste caso as calotas não foram decoradas.
Nesta foto do carro a frase “Pakistan to Germany 2010” (Do Paquistão à Alemanha 2010) chama a atenção, e ela é completada pelas bandeiras da Alemanha e do Paquistão na tampa do motor. Nesta também aparece a Torre de Lahore, além de quatro cabeças de pássaros diferentes. O para-choque foi decorado.
Comparando com o Foxy Shahzadi, os desenhos do “Fusca do Alemão” tem contornos mais finos e os desenho são mais detalhados. Um trabalho cuidadoso e um resultado impressionante e belo. A decoração invade a área do pára-brisa e dos demais vidros do carro.
Enquanto o seu dono não conseguia o visto para trafegar pelo Irã, o “Fusca do Alemão” ficou morando no pátio onde ele foi pintado, disputando espaço com os caminhões.
Este Fusca aparece neste vídeo da BBC que fala das pinturas tipo Truck-Art. O vídeo mostra detalhes dos trabalhos dos artistas e serve como um bom arremate sobre o assunto. Veja-o:
A “Velha Senhora” também é submetida à decoração Truck-Art, e aqui vai um exemplo, num estilo de desenho menos detalhado:
Temos o nosso estilo brasileiro de decoração de caminhões, uma arte que lentamente está se perdendo, como ocorreu com as deliciosas frases de para-choques que infelizmente caíram em desuso, mas foram até motivo de livros de pessoas que as iam recolhendo. Por falar nisto uma das que eu mais gostei foi:
Minha sogra caiu do céu…
…é que quebrou a vassoura dela…
AGr
Nota do Autor: este material, em sua versão resumida, foi originalmente publicado na minha coluna “Volkswagen World”, do Portal Maxicar (www.maxicar.com.br), e esta publicação ocorre de comum acordo com o meu amigo Fernando Barenco, gestor do MAXICAR, companheiro de muitos anos de trabalho em prol da preservação dos veículos VW históricos e de sua interessante história. O conteúdo foi revisado, ampliado e atualizado. O seu conteúdo é de interesse histórico e representa uma pesquisa bastante aprofundada do assunto. Colaboração e consultoria de: Nasir Shaikh. Pesquisas complementares na Internet por Alexander Gromow. Ilustrações: Nasir Shaikh e pesquisa na Internet.
A coluna “Falando de Fusca” é de total responsabilidade do seu autor e não reflete necessariamente a opinião do AUTOentusiastas.