Quando vemos um carro passando na rua hoje em dia, muitas vezes conseguimos identificar apenas pela sua aparência a qual fabricante ele pertence, sem precisar conferir os emblemas e logomarcas na carroceria. Isto chama-se identidade da marca. Está cada vez mais difícil diferenciar as marcas, pois tudo está migrando para um senso comum e a cópia da concorrência, o que aos poucos arranca o espírito da fábrica.
Alguns fabricantes, em geral os mais antigos, possuem identidades clássicas, como as três grandes alemãs Audi, BMW e Mercedes-Benz. Um Audi sempre tem cara de Audi. Os traços da carroceria, as proporções de volume e alguns elementos de design são tradicionais e atemporais, ou seja, nas mãos de designers qualificados, a tradição evolui junto com o desenho, sem perder a identidade.
Hoje falamos de identidade de marca, mas este conceito de identidade já foi mais abrangente. No passado, além dos fabricantes possuírem suas características marcantes, os estúdios independentes de design também tinham suas próprias identidades. Assim como hoje reconhecemos um Chevrolet ou um Alfa Romeo, no passado reconhecíamos um carro desenhado pela Pininfarina ou um feito pela Bertone. A “mão” de cada designer estava presente com seu estilo próprio, como uma assinatura pessoal.
Em outras épocas, o desenho dos carros eram entregues aos especialistas, que em grande parte eram empresas independentes que criavam carrocerias para diversos fabricantes, mesmo em pequenas quantidades. Bertone, Pininfarina, Giugiaro e tantos outros. Era um mundo diferente, impossível de se imaginar hoje em dia quando falamos em volume de produção em massa e lucratividade. Hoje os estúdios ainda existem, mas trabalham como se fossem partes integrantes das fábricas, seguindo as regras de cada marca.
No passado, estes estúdios de design e os encarroçadores independentes tinham suas próprias identidades. Além de carros-conceito e estudos para novos produtos, e isto vem desde os primórdios do automóvel, carrocerias especiais foram criadas também para clientes especiais, como uma forma de diferenciação e exclusividade, mesmo para carros de produção em série. Era a maior forma de expressão “livre” do design de cada estúdio.
Aqui vão alguns dos carros que foram criados por estes encarroçadores para que saíssem do senso comum e se destacassem em meio aos demais, cada um com sua história particular.
Jaguar XK120 Supersonic Ghia Coupé
Quando a Jaguar lançou o XK120 em 1948, foi a redefinição do termo carro esporte. A velocidade máxima de 120 milhas por hora deu o nome ao carro, número este atestado pessoalmente na pista de Silverstone por Sir William Lyons, criador da Jaguar.
A primeira geração do XK120 que durou de 1948 a 1950 tinha uma carroceria de alumínio, estampada uma a uma para cada carro. A produção seriada do carro começou em 1950 em função da alta demanda do carro, que passou a ter a carroceria estampada em aço já com ferramentas próprias para grandes volumes.
Alguns raros carros foram vendidos sem carroceria, apenas o chassi rolante e o lendário motor de seis cilindros, justamente para que os proprietários pudessem mandar os carros para ter o design conforme sua preferência. Em 1952, três XK120 foram direcionados para a italiana Carrozzeria Ghia italiana para receber a nova carroceria esculpida em alumínio, design este batizado de Supersonic em alusão tanto ao primeiro vôo supersônico nivelado, o do Bell X-1 em 14/10/47, quanto à era dos foguetes pós-guerra.
Este design Supersonic da Ghia aparece em outros carros como alguns Alfa Romeo e Fiat da mesma época.
Aston Martin DB7 Vantage Zagato
A Zagato possui uma forte ligação com a Aston Martin desde os anos 1960, quando desde então diversos carros com carrocerias diferenciadas foram feitos pelo estúdio italiano nos carros da marca inglesa. Aston-Zagato é uma combinação que vemos nos melhores concursos de carros antigos pelo mundo todo.
Em 2003, novamente a parceria entre as duas empresas resultou em um carro exclusivo com linhas clássicas, tanto da Zagato como da Aston Martin. A produção de 99 unidades do carro foi encomendada pela Aston para celebrar uma tiragem limitada de DB7 especiais.
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A carroceria de alumínio reduziu o peso do carro original, mas o fator exclusividade é o principal atributo. O legal destes DB7 é que, assim como no passado, são carros de produção normal porém com carrocerias especiais, altamente colecionáveis hoje.
Chevrolet Corvette Scaglietti
O Corvette é um dos carros americanos mais europeu de todos os tempos. Carro esporte, dois lugares, carroceria de compósito de fibra de vidro e suspensão independente nas quatro rodas (a partir da 2ª geração, no final de 1962) formavam a receita ideal para que este Chevrolet fosse bem-sucedido no meio do automobilismo e dos carros esporte do período pós-guerra.
Em 1959, três chassis de Corvette foram retirados da linha de montagem e enviados para a Itália, para receber nova carroceria feita em alumínio pelas mãos de Sergio Scaglietti, um dos maiores nomes do design automobilístico.
Estes carros foram criados por conta de um projeto do texano Gary Laughlin, um rico piloto amador da época e proprietário de algumas concessionárias Chevrolet que estava frustrado com a quebra de seu Ferrari Monza de corrida, e envolveu nomes como Carroll Shelby e Ed Cole, então diretor na General Motors.
Esta é uma história que merece ser contada com mais detalhes em um post aqui no Ae, em breve. Vale a pena olhar também o Corvette feito pela Pininfarina em 1963, que também vamos falar aqui no Ae numa próxima matéria post.
Lincoln Indianapolis Boano Coupé
A Lincoln é a marca de luxo da Ford, assim como a Cadillac é da Chevrolet. Nos anos 1950, a revolução do design automobilístico fez acender a chama que resultaria em alguns dos carros especiais mais interessantes já feitos nos Estados Unidos.
Para atualizar a linha de produtos da Lincoln e tentar se destacar no mercado, Henry Ford II, por meio de contatos diretos com Felice Mario Boano, fundador da Carrozzeria Boano, enviou para a Itália um chassi de Lincoln para que fosse encarroçado com algo único e incrível, para atrair os olhares do público no Salão de Turim de 1955. O carro foi nomeado de Indianapolis, o mais tradicional circuito de corrida americano.
Depois de cumprir a missão de mostrar o nome Lincoln na Europa, o carro voltou para os EUA e ficou com o próprio Henry Ford II. O carro foi um sucesso para a Ford e para Boano, que conseguiu chamar a atenção da Fiat para que este liderasse o novo estúdio de design da marca.
Maserati A6GCS Berlinetta Pininfarina
O poder de Enzo Ferrari na Itália era notório. Homem forte da indústria, mesmo ao comando de uma empresa pequena frente a outros nomes como a própria Fiat, era capaz de agir até mesmo em suas rivais.
A Maserati estava com seu novo modelo A6GCS em desenvolvimento, baseado no antigo chassi de corrida da marca e o motor de seis cilindros agora com duplo comando para corrida com quase 200 cv. O desenho da carroceria foi eleito para ser criado na Pininfarina, um dos mais renomados carrozzieri italianos. O desenho ficou sensacional, uma verdadeira obra de arte, provavelmente o mais belo Maserati já feito.
Pelo o que a história conta, o único problema é que a Maserati não podia vender o carro. Como a Pininfarina estava fechando um acordo com a Ferrari para ser fornecedor de carrocerias, a venda de um design para a concorrente Maserati seria um impeditivo ao acordo. A solução foi dada por Giuglielmo Dei, um revendedor da marca em Roma que “comprou” seis chassis da fábrica e enviou para a Pininfarina “por sua conta”. Quatro carros foram feitos, com pequenas diferenças entre eles, depois mais dois foram completados.
Vale a pena dar uma olhada também no Lancia Aurelia B52 PF200, desenhado pela Pininfarina na mesma época. É possível ver a semelhança entre os dois carros — o que falamos da identidade do design da época.
Alfa Romeo BATs Bertone
Nos anos 1950, os estudos de aerodinâmica veicular estavam sendo desenvolvidos em diversos cantos do mundo. Em Turim, a Bertone trabalhava para otimizar seus estudos para alguns dos fabricantes italianos, em especial Fiat e Alfa Romeo.
Dos estudos feitos, os que mais marcaram a Bertone foram três carros feitos como um trio de propostas para a Alfa Romeo, denominados Berlinetta Aerodinamica Tecnica (B.A.T.) e numerados de 5, 7 e 9d. A base do design original veio do Abarth 1400 e a mecânica, do Alfa 1900 Sprint.
Começando pelo 5, evoluindo para o 7 e concluindo com o 9d, a Bertone aprimorou a cada novo carro os estudos com a proposta de reduzir o arrasto aerodinâmico e a tendência de flutuação em alta velocidade. Os recursos para análise de aerodinâmica eram escassos se comparados a hoje em dia, logo a solução era criar e testar.
As formas criadas pela Bertone são incríveis, é difícil imaginar como foram feitos em função da complexidade das formas e dos processos produtivos da época. São mesmo esculturas sobre rodas feitas por artistas, apenas isso.
Cadillac Série 62 Ghia Coupé
Que melhor forma de se presentear uma atriz de cinema dos anos 1950 do que com um Cadillac único no mundo? Na verdade, único mas com um irmão gêmeo, mas não é este o ponto. O bilionário Aly Khan, príncipe do Paquistão mas nascido na Itália, encomendou o carro para dar de presente a Rita Hayworth, atriz de filmes como “Gilda” e “A Dama de Shangai”, e que por acaso era sua esposa.
O Série 62 foi encomendado sem carroceria na Cadillac e enviado para a Itália, diretamente para o Studio Ghia, onde recebeu a nova carroceria feita em aço e o novo interior. A mecânica Cadillac, potente e confiável, empurrava o grande cupê com vigor.
A Pininfarina também fez um Cadillac em 1954, com um estilo mais moderno e que remete aos design aeroespaciais da época.
Rolls-Royce Phantom I Jonckheere Coupe
Quando falamos de Rolls-Royce, falamos de tradição e conservadorismo. Ao longo de sua existência como um dos fabricantes mais refinados do mundo, as linhas de um Rolls sempre são facilmente identificáveis.
Pouco se sabe sobre quem encomendou o carro, pois os registros foram perdidos por conta de um incêndio no encarroçador, a empresa belga Jonckheere, de Henri Jonckheere e Joseph Jonckheere, pai e filho respectivamente. Sabe-se que este Rolls nasceu como um conversível convencional 1925 com carroceria Hooper e só quase dez anos depois recebeu a nova carroceria na Bélgica.
Este é um dos poucos Rolls-Royce que fogem do tradicionalismo da marca, uma expressão livre da arte moderna automobilística dos anos 1930, capaz de ser elegante ao mesmo tempo que é extravagante. A grade clássica do radiador está presente para caracterizar o carro, enquanto que as portas ovais e a barbatana central na traseira provocam a mente de quem aprecia suas linhas.
Hispano-Suiza H6C Dubonnet Xenia Saoutchik
A marca Hispano-Suiza foi um dos maiores nomes da indústria automobilística de luxo européia do começo do século 20. Além de automóveis, a empresa trabalhava com motores aeronáuticos no período entre guerras mundiais.
André Dubonnet era um piloto francês, tanto de aviões quanto de carros de corrida, e também um inventor. Correndo com carros da Bugatti e da Hispano, André viu potencial em melhorar a suspensão dos carros de corrida, e criou um sistema de suspensão independente com molas helicoidais para o eixo dianteiro, que foi chamado de Suspensão Dubonnet, posteriormente empregada em diversos outros fabricantes. Era chamada também de suspensão de ação de joelho (knee action suspension).
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Para demonstrar sua nova suspensão, um chassi de Hispano-Suiza H6C, o mais moderno da fábrica na época, foi entregue a empresa francesa Saoutchik para receber uma das mais modernas carrocerias feitas nos anos 1930. A forma aerodinâmica de gota, as portas com abertura paralela e o painel puramente aeronáutico destacavam o Hispano-Suiza dos demais carros da época, claramente anos à frente de todos.
Delahaye 175S Saoutchik Roadster
Após a Segunda Guerra Mundial, a Delahaye procurou a melhor forma de se destacar no mercado europeu, uma vez que as condições econômicas francesas não eram das melhores. A idéia de fabricar um carro para ser apresentado nos salões da Europa e concursos de ele foi eleita como a melhor estratégia de marketing para o momento.
O primeiro chassi fabricado depois da guerra, modelo 175S com motor seis-em-linha de corrida, foi entregue para a Saoutchik aplicar o que tinha de melhor em termos de design automotivo, elegância e arrojo. O resultado foi um roadster que poderia muito bem ser usado como escultura na entrada de uma galeria de arte no centro do Paris.
As quatro rodas cobertas, o extensivo uso de cromados e linhas suaves e fluidas marcaram o carro como um dos mais dramáticos desenhos automotivos de todos os tempos. Mesmo exagerado, o design da Saoutchik é harmonioso e suave. Curiosamente, este chassi tinha a suspensão Dubonnet similar à usada no Hispano-Suiza citado acima.
Estes e outros automóveis similares fazem parte de um grupo muito especial, o grupo dos carros que não apenas são representações da visão de seus criadores que carregam seus elementos tradicionais, mas também são legítimas obras de arte, esculpidas por artistas que hoje em dia estão em extinção em tempos em que a expressão e criação eram livres e sem limites.
MB